Mingus and the Poor Chef’s Dream

There is a long hallway in an apartment building. The carpet is gray and the walls are an ugly yellow color, like from the 50’s. There is no trash or any sort of mess on the floor, but everything is dusty from so little use. You cannot stay there anymore, out in the open. Something is following you. You have not seen it yet but you can feel it getting closer. A door to your right opens. You think that on this side of the building must be the fire escape. That will let you get down to the street.

 

 From the entrance of the apartment you can see that everything is clean, white, modern. You keep moving forward into the room without stopping for anything. Your watch says that it is almost four, but with daylight saving’s time you really have no way of knowing. The inside almost looks like a hotel room, like when you were in Myrtle Beach on vacation. You start to fixate on the soft colored furniture and then the tall glass doors which open up to a sort of balcony and a blue sky. You take off your glasses and clean them so you can see everything better. They are in your hand when you realize a strong smell of spices and vegetables has steadily been filling the room. You imagine every corner of the apartment almost bursting from the delicious odors of some unknown chef. In fact, now you see a tall black man standing in front of a stove behind you. You take a few steps towards him. He is a real giant.

Read More

O Poeta Despede-se de Algo Infinito

Hei de regressar
mas será no inverno
em alguma casa
diante da praia:
o tédio, o sal,
a pele ferida,
ferrugem que a noite
põe nas dobradiças
das portas quebradas
e no coração
que ficou – brinquedo
também esquecido,
carrossel de ferro
que ainda gira entre
risos e ruínas.

No imenso amanhã
o início da chuva
lava até os ossos,
as gaivotas somam
o branco ao branco,
sombras e memórias
(bafejo de nada)
hei de regressar
na aurora depois
das questões inúteis:
brindar com arsênico,
abrir os pulmões
ao vácuo estelar,
escavar a luz
nos subterrâneos.

2. 

No imenso amanhã
um bafejo de sal
o início da chuva
que lava até os ossos
as gaivotas somando
o branco ao branco
e eu de regresso
sombra e memória
na aurora depois
das cogitações inúteis:
beber arsênico
abrir os pulmões
ao vácuo nas nebulosas
escavar a luz
no claustro subterrâneo
abandonar o meu nome
à sorte das raízes.

Um novíssimo veterano

Falar de poesia leva-nos quase sempre a falar de nós. A frase soa a lugar comum, a qualquer aforismo barato de redes sociais, mas se o enquadrarmos em determinados contextos é tão evidente quanto inevitável. É isso que sinto quando falo da poesia de Hugo Milhanas Machado, poesia que me está vizinha (roubando um certo sintaxe italiano aqui), mas sobretudo uma poesia que pude ver crescer ao longo dos anos. Sim, conheço o Hugo há mais de uma década; sim, tenho com ele uma forte amizade praticamente desde o primeiro dia; sim, no nosso percurso há muitos mais encontros que desencontros, como a Cooperativa Literária e callema, que valente e orgulhosamente erguemos com a malta, as bancas de poesia na FCSH e, caramba, porque não?, o Nauseabundo, onde nos divertíamos e conseguíamos chatear. Mas é esse percurso comum que nos faz tantas vezes ser mais críticos do que os críticos em si. Crescer, neste meio, é resistir a modas, a simpatias e sobretudo a clones. É saber encontrar a sua voz e não escrever com as mesmas palavras que já foram repetidas. É usar o léxico da forma mais simples possível mas também mais semanticamente cheia. Para mim isto é poesia e é o que o Hugo faz.

Dentro destas últimas palavras, Hugo Milhanas Machado – o poeta – é dos que mais me chama a atenção dentro na nova geração. O porquê pode levantar várias questões, mas será de consenso geral que a linguagem poética por ele apresentada é sem dúvida diferente e, mais importante, nova. É também um autor arrojado no sentido experimental, recorrendo a um léxico que não se encontra em mais nenhum poeta actualmente em Portugal, além de explorar muitas vezes campos semânticos que saem totalmente daquele que é considerado o cânone. Partindo de uma experimentação para uma concretização linguística totalmente nova, HMM pratica a ruptura não através da temática e da insatisfação objectiva, mas sim da linguagem. Rompe não só com as gerações anteriores mas também com aquela que será a sua própria geração. Tomemos como exemplo este seu novo poemário, Onde fingimos dormir como nos campismos.

Passados quase dez anos da publicação de Poema em forma de nuvem, a evolução na poesia de HMM é não apenas notória mas sobretudo admirável. Neste novo poemário encontramos um poeta muito maduro, muito seguro no seu ritmo e na arte poética. Tal como um baixista ou um ciclista, alguém que se mostra já calejado nestas andanças. HMM escreve aquilo que vê, como vê, mas também como o sente. E como sente constrói a sua linguagem não através de frases memoráveis ou versos que lembremos isoladamente: a sua poesia é una, são vários poemas divididos por capítulos mas que se podem ler como um único poema, um poema em continuação. Quando no poema “o encosto” se diz: “Mas a técnica melhora/ e sei acumular a maneira do gosto”, provavelmente a intenção não seria a de se definir a ele próprio, ou talvez sim. A questão que fica latente é a de uma poesia cerebral, ainda que humilde do ponto de vista da pretensão. Não quer ser, é. O querer ser não o faz ser. Ou como diz “outra pedra parecida”, “nenhuma voz se parte a falar”. Mas seria injusto para o leitor estar a desvendar interpretações que se querem tão pessoais, estar a retirar toda a possibilidade que uma língua pode concentrar nos seu aspecto físico.

Essa linguagem como possibilidade – pedindo o nome emprestado a um seu ensaio – colocam-no num patamar diferente e sobretudo faz dele o que de novíssimo nos oferece a poesia contemporânea em Portugal, ou aquilo que Joaquim Manuel Magalhães se referia no seu Projecto:

 “O que pode ou não surgir como novo, como muitos muito bem sabem, não depende estritamente da vontade de produzir o novo e ainda menos da aprendizagem de como produzir o cânone do novo de uma determinada época. A novidade é um condicionamento que rompe dos contextos tornado dominantes de toda uma realidade epocal.”[1]

Este ensaio escrito em 1989 já apontava para alguns problemas que iriam subsistir, e talvez ainda subsistam, como por exemplo o do excesso prosaico na poesia de então e que se tornou um modelo para os anos que se seguiram. Esse verso livre, verso em prosa, teria de ser substituído pelo fulgor e pujança da silaba métrica, ou como lhe chama Magalhães, do “equilíbrio polifónico” que marcasse a diferença. Recorrer à tradição para romper com a modernidade. Passados quase 25 anos não encontro melhor justificação do que esta para dizer o porquê de Hugo Milhanas Machado ser algo de diferente. Algo novíssimo.

 

[1] Joaquim Manuel Magalhães, Um pouco da morte, pág. 175, Editorial Presença, Lisboa, 1989.

«Salsa», Rita Dove

Tradução de Nuno Quintas

 

1. As Plantações

Um papagaio imita a primavera
no palácio, de plumagem verde-salsa.
Do pântano emerge a cana

para nos assombrar, e cortamo-la. El General
busca uma palavra; ele é o mundo
inteiro. Como um papagaio que imita a primavera,

deitamo-nos aos gritos enquanto nos perfura a chuva
e brotamos verdes. Não conseguimos dizer um r
do pântano emerge a cana

e a montanha a que em rumores chamamos Katalina.
Os miúdos roem pontas de flecha.
Um papagaio imita a primavera.

El General encontrou a sua palavra: perejil.
Quem a disser vive. Ri-se, os dentes cintilam
no pântano. Emerge a cana

em sonhos nossos, açoitada por ventos e arroios.
E deitamo-nos. Por cada pingo de sangue,
um papagaio imita a primavera.
Do pântano emerge a cana.

 


2. O Palácio

A palavra escolhida pelo general é salsa.
É outono, quando a mente se ocupa
do amor e da morte; o general pensa
na mãe, como morreu no outono
e ele plantou a bengala dela no túmulo
e ela floriu, fria, formando todas as primaveras
flores de quatro estrelas. O general

calça as botas, pisa o palácio até
ao quarto dela, o que não tem
cortinas, o que tem um papagaio
num poleiro de latão. Enquanto anda pergunta-se:
Quem posso matar hoje. E por um instante
o nozinho de gritos
cala-se. O papagaio, que veio

este caminho todo da Austrália numa gaiola de
marfim, pratica, no recato de uma viúva,
a primavera. Desde a manhã em que
a mãe desmaiou na cozinha
quando fazia doces com a forma de caveiras
para os Finados que o general
detesta doces. Ordena que se traga
bolos à ave; chegam eles

cobertos de açúcar numa cama de renda.
Vai-se contraindo o nó na garganta;
vê as botas no primeiro dia de batalha
com pingos de lama e urina
enquanto um soldado lhe cai aos pés estupefacto
— como tinha um ar idiota! — ao som
de artilharia. Nunca pensei que cantasse,
disse o soldado, e morreu. Agora

o general vê as plantações de cana
de açúcar, açoitada por ventos e arroios.
Vê o sorriso da mãe, os dentes
que roem pontas de flecha. Ouve
os haitianos cantarem sem rr
enquanto agitam os grandes machetes:
Katalina, cantam, Katalina,

mi madle, mi amol en muelte. Sabe Deus
que a mãe estúpida não era; conseguia
enrolar um r como uma rainha. Até
um papagaio consegue enrolar um r! No quarto nu
as penas garridas arqueiam-se numa paródia
de verdura, enquanto as derradeiras migalhas
somem, pálidas, sob a língua enegrecida. Alguém

brada o seu nome numa voz
tão parecida à da mãe, pinga uma lágrima
surpresa na biqueira da bota direita.
Minha mãe, meu amor na morte.
O general recorda os raminhos verdes
que os aldeões punham nas capas
para honrar a morte de um filho. Vai
ordenar que, desta vez, se matem muitos

por uma palavra só, bela.

 

 

Notas: A 2 de Outubro de 1937, Rafael Trujillo (1891–1961), ditador da República Dominicana, ordenou a matança de 20 mil negros por não conseguirem pronunciar a letra r em perejil, palavra espanhola para «salsa».

 

 

 

 

1. The Cane Fields

There is a parrot imitating spring
in the palace, its feathers parsley green.
Out of the swamp the cane appears

to haunt us, and we cut it down. El General
searches for a word; he is all the world
there is. Like a parrot imitating spring,

we lie down screaming as rain punches through
and we come up green. We cannot speak an R—
out of the swamp, the cane appears

and then the mountain we call in whispers Katalina.
The children gnaw their teeth to arrowheads.
There is a parrot imitating spring.

El General has found his word: perejil.
Who says it, lives. He laughs, teeth shining
out of the swamp. The cane appears

in our dreams, lashed by wind and streaming.
And we lie down. For every drop of blood
there is a parrot imitating spring.
Out of the swamp the cane appears.
 
 

2. The Palace

The word the general’s chosen is parsley.
It is fall, when thoughts turn
to love and death; the general thinks
of his mother, how she died in the fall
and he planted her walking cane at the grave
and it flowered, each spring stolidly forming
four-star blossoms. The general

pulls on his boots, he stomps to
her room in the palace, the one without
curtains, the one with a parrot
in a brass ring. As he paces he wonders
Who can I kill today. And for a moment
the little knot of screams
is still. The parrot, who has traveled

all the way from Australia in an ivory
cage, is, coy as a widow, practising
spring. Ever since the morning
his mother collapsed in the kitchen
while baking skull-shaped candies
for the Day of the Dead, the general
has hated sweets. He orders pastries
brought up for the bird; they arrive

dusted with sugar on a bed of lace.
The knot in his throat starts to twitch;
he sees his boots the first day in battle
splashed with mud and urine
as a soldier falls at his feet amazed—
how stupid he looked!— at the sound
of artillery. I never thought it would sing
the soldier said, and died. Now

the general sees the fields of sugar
cane, lashed by rain and streaming.
He sees his mother’s smile, the teeth
gnawed to arrowheads. He hears
the Haitians sing without R’s
as they swing the great machetes:
Katalina, they sing, Katalina,

mi madle, mi amol en muelte. God knows
his mother was no stupid woman; she
could roll an R like a queen. Even
a parrot can roll an R! In the bare room
the bright feathers arch in a parody
of greenery, as the last pale crumbs
disappear under the blackened tongue. Someone

calls out his name in a voice
so like his mother’s, a startled tear
splashes the tip of his right boot.
My mother, my love in death.
The general remembers the tiny green sprigs
men of his village wore in their capes
to honor the birth of a son. He will
order many, this time, to be killed

for a single, beautiful word.

 

 

Notes: On October 2, 1937, Rafael Trujillo (1891-1961), dictator of the Dominican Republic, ordered 20,000 blacks killed because they could not pronounce the letter “r” in perejil, the Spanish word for parsley.

 

 

Rita Dove, «Parsley» in Museum (Pittsburgh: Carnegie Mellon University Press, 1983).