As Aventuras do Senhor Lourenço (§5 entre revoluções copernicanas e sexo)

(cont.)

Um dia, Lourenço olhou para o Sol e decidiu fazer uma revolução copernicana ao contrário (de Kant): tudo passaria a girar em torno de uma pedra angular situada imprecisamente numa qualquer constelação de alteridades, preenchida por coisas, pessoas e outros organismos. Ele seria o não-centro central, um ponto de ausência que ainda assim definiria, através de uma extremada discrepância ontológica, o núcleo de atracção fora de si. Talvez os buracos negros funcionem desta forma. Em qualquer dos casos, era isto que lhe apetecia imaginar ser.

[caros leitores, relato este episódio sem o perceber muito bem, mas a intensidade compensa a obscuridade. Por outro lado, como dizia Sartre, enquanto houver liberdade, o pior dos crápulas pode tornar-se digno e a pessoa mais corajosa ficar ignóbil]

Durante algum tempo, Lourenço foi a pessoa mais amável que alguma vez conheci. Todo ele era cortesia, ajudava como podia uma associação animalista, limpava praias, dava prioridade aos outros automóveis (normalmente atribuo sentimentos a estes objectos animados), enfim, era um buraco negro virado do avesso, expelindo simpatia e generosidade sem contar. Esta metamorfose teve consequências. Muitos passaram a gostar do Lourenço, rendidos à sua nova bondade e, talvez a maioria, sossegados pela mansidão que o tinha capturado.

Mas não foram só as relações sociais que se alteraram. Fisicamente, Lourenço ficou com o corpo mais roliço, ganhou um brilho nos olhos e, coisa estranha e nunca explicada, a face harmonizou-se de tal forma que alguns suspeitaram de bisturi estético.

– Lourenço, Lourenço, espera!

Era a Manuela, amiga do João e divorciada há pouco tempo de um marido meio toureiro meio gestor, capaz de esvaziar uma grade de cervejas sem qualquer remorso ou desequilíbrio. Um verdadeiro campeão. Mas esgotado na vida familiar, não brincava com as filhas nem comia a mulher. A porta de casa era uma figura de Janus de valor antagónico: o lado da entrada deprimia-o, o da saída exaltava-o.

– Olá, Manuela, vens para baixo?  – A escola ficava num pequeno alto, como se tivesse sido pensada à maneira da Academia platónica (Portugal tem a mania das grandezas académicas).

– Vou, posso acompanhar-te... Olha, sabes que o 10.º C [turma de alunos] anda a portar-se mal?

– Como?

– Então não é que a Júlia estava aos beijos ao Ricardo em plena aula [Física e Química]!

– Coisas da idade. – Respondeu Lourenço, usando a ideia estafada, mas agradável, do cio associal adolescente.

– Sim, continuou Manuela num tom ligeiramente esganiçado, mas isso não se faz, pu-los na rua e dei um sermão à turma.

– Sermão para quê?

– Para quê?! Eles têm de saber que numa sala de aulas não pode haver determinados comportamentos. Que não estamos sozinhos, que têm de respeitar o professor...

Lourenço conhecia bem esta ladainha, ouvira-a centenas de vezes. Noutros tempos ainda atendia às pequeníssimas variações que faziam com que cada relato ganhasse alguma individualidade. Agora não, punha uma face de interlocutor interessado e fingia escutar.

Talvez o leitor se pergunte se isto não prova que Lourenço nunca ultrapassou o estrato do cinismo, dissimulando o desdém por detrás de uma bondade encenada. Não saberei responder, eu próprio, o seu amigo mais consistente, guardo dúvidas sobre a autenticidade deste período. Ao mesmo tempo, acredito que Lourenço se achava totalmente honesto no estilo de vida angélico que adoptou. A existir fingimento, é como se houvesse algo que mentisse nele apesar dele. Um terceiro elemento acima, e ao lado, de si e dos outros, um vector cósmico com preocupações sociais que tivesse escolhido este rumo para salvar Lourenço de si mesmo.

Naquela tarde lanchou com a Manuela e depois fodeu-a, ou melhor, fez amor com ela, mas estava tão preocupado com os seus orgasmos que não chegou a vir-se.

Tudo começou na pastelaria. Havia dois pretos manganões na mesa do lado, falavam uma língua estranha e o empregado nunca mais se despachava com a conta. Lourenço começou a sentir a velha indisposição de misantropo suburbano (pode-se viver em Lisboa e ser suburbano, até aldeão), que raio de africanos incultos, com corpos inchados por músculos exibicionistas e lábios demasiado carnudos que apetece espremer, não sabiam estar num espaço público sem esmagarem a linguagem com os seus vozeirões. E os empregados sem fibra para emigrarem à procura de vidas a sério arrastavam-se, fingindo trabalhar, prontos a lançar o ressentimento de medíocres licenciados em cima do primeiro cliente atípico. Foi isto, mais do que a beleza ou a libido, que o levou a perguntar a Manuela se não era melhor irem até casa dele acabar a conversa do 10.º C. Manuela ficou embaraçada, mas acabou pode dizer “pode ser”. Mal saíram da pastelaria, Lourenço sentiu um alívio profundo, como quando se volta a respirar depois de alguém nos apertar o pescoço durante um bom minuto. Sabia que a proposta era estúpida, a casa ficava num prédio degradado, estava imunda e nada tinha valor para além de uma estante carregada de livros de filosofia, que pouco deviam interessar a Manuela (e ao Menino Jesus, que pelo vistos não sabia ler). Tudo era velho e barato, até a televisão seguia o formato cubo. Antecipou o olhar de desagrado, preparou desculpas e pôs o ar de intelectual indiferente às coisas terrenas. Quando abriu a porta ouviu: “que giro, mesmo giro, parece confortável”.

– Senta-te, queres alguma coisa para beber ou comer?

– Não, estou bem, muito bem.

– Então fala lá do 10.º C.

– Tens razão, disse Manuela, são coisas da idade, talvez não valha a pena perdermos tempo com isso.

– Como queiras, e a vida como vai?

– Soubeste do meu divórcio?

– Sim, lamento.

– Porquê? Ele era uma besta, um bêbado, estúpido de merda, vou ficar com tudo, tudinho, nem a mota lhe deixo levar.

Silêncio. Lourenço olhava para a lombada da Crítica da Razão Pura, livro infinito que nos vem dizer que o conhecimento é finito, que não podemos conhecer tudo, que ignoraremos para sempre por que razão a alma é imortal, porque somos livres, o que é o mundo... Recordava que o tinha lido na íntegra aos 30 anos de idade, sem perceber muita coisa, mas era um feito assinalável, quantas pessoas se podiam gabar de tal vertigem?

– Desculpa Lourenço, vim perturbar a tua calma, se calhar até tens coisas para fazer, trazemos sempre trabalho para casa...

– Não, não, estava aqui a pensar... – a pensar no quê, não lhe podia falar da Crítica, nem no embaraço que sentia por tê-la ali, bem vestida e bonita, na sua espelunca –, estava a pensar que talvez... não sei, gostava muito...

– Sim, de quê?

– ... de te beijar...

Silêncio, agora de outro tipo, aquele que parece precipitar uma explosão. Lourenço preparava-se para a fúria ou, pior, a ironia: “quem és tu para me pedires um beijo, já olhaste bem para o espelho, és ridículo...” Preparava-se e nada acontecia. Cada segundo adensava mais o seu pavor, quis que os lábios da Manuela se colassem para sempre, que mais nenhuma palavra pudesse sair da sua boca. Quis até que um raio rasgasse o apartamento ao meio, ele para um lado ela para outro, esturricados até à medula. Mas não.

– Então anda cá. – Disse Manuela enquanto fazia um ligeiríssimo gesto condizente com o dedo, parcela de filme lamechas.

E Lourenço foi, e depois de ser apalpado, apalpou por sua vez. Tudo lhe parecia de óptima qualidade debaixo da roupa. Ela pôs-lhe a mão entre as pernas e Lourenço sentiu pela primeira vez que o céu existe, mas não o anódino que nos ensinam na Igreja, um outro cheio de almas prontas a estourar. Depois, despiram-se, um pouco à pressa, ela a deixar ver um corpo belo e espasmódico, ele encolhido, com a sua barriguinha irrecuperável e uma pelugem que não podia esconder o branco enfermaria da pele. Já no quarto, abriram a cama, cada um do seu lado. Lourenço espreitou os seios nus e pendentes da Manuela dobrada, uma mão a puxar a colcha e o lençol para trás, outra ligeiramente afastada do corpo com a responsabilidade de o equilibrar. Creio que nenhum pintor alguma vez se inspirou nestes momentos sem som, nunca ninguém viu o poder imagético, axiológico e fisiológico desta antecâmara sexual. Só Lourenço, só ele podia parar o tempo e desenhar mentalmente clichés eternos e mudos que depois de somados estabeleceriam o campo completo de categorias da vida.

Deitaram-se, a cama estava fria. Encostaram-se, de frente não dá muito jeito. Beijaram-se, e o Lourenço que por vezes cheirava um pouco mal da boca. Manuela não, tinha a boca mais fresca da escola, apetecia ir lá buscar comida. A mão esquerda do Lourenço no seio direito da Manuela. Manuela a puxá-lo, com força, um pouco de unhas (de gel). Lourenço atado pelo medo de se vir já ali, ainda nos preliminares dos preliminares. Manuela com a vagina a humidificar-se. Lourenço com o pénis a rebentar por todos os lados.

– Gostas de sexo oral. – Perguntou Lourenço.

– Claro, anda cá.

E Lourenço foi. Também a vagina sabia e cheirava bem, Manuela era pura. Esta parte demorou, tanto que depois foi só deixar que a Manuela fosse para cima, pusesse o pénis dentro dela, subisse e descesse algumas vezes, e aí estava ela a contorcer-se de prazer, gritando que “era isso”, “era isso”, “era isso!”

Tempo verbal estranho, pensou Lourenço. E ela a sair, a tirar o instrumento (ao arrepio do “trata sempre um pénis com um fim e nunca como um meio”), a deixar-se cair para o lado direito da cama. Lourenço puxou o lençol e ficou mais quieto e silencioso do que uma pedra. “E agora?”, pensou, pensou novamente, repensou, deixando-se colonizar totalmente pelo futuro próximo.

[moral provisória da história, que costumo repetir a mim mesmo: a bondade compensa mais do que ver pornografia ou fazer tatuagens; menos do que um BMW potente, é verdade, mas mais do que o velho marialvismo de pacotilha]

(cont.)

Amo volucres, Lydia, sic breves

Amo volucres, Lydia, sic breves
rosas eas quae hoc simul in die  
        quo terra de hortis Adonis
        progenuit, proxime necantur.  

nascentibus lux permanet semper haec  
rosis ubi iam sol natus et ortus est
        et antequam cursus Apollo
        visibiles radians relinquit   

mox finiunt hic. Vita dies ita
nobis sit unus sponteque, Lydia, 
        nil nesciamus post et ante
        futtile tempus in quo moremur.   

Ricardo Reis, 

Ode I.2 

Adaptação ao latim de Pedro Braga Falcão (em estrofe alcaica)


As rosas amo dos jardins de Adónis

As rosas amo dos jardins de Adónis,
Essas volucres amo, Lídia, rosas,
        Que em o dia em que nascem,
        Em esse dia morrem.


A luz para elas é eterna, porque
Nascem nascido já o Sol, e acabam
        Antes que Apolo deixe
        O seu curso visível.


Assim façamos nossa vida um dia,
Inscientes, Lídia, voluntariamente
        Que há noite antes e após
        O pouco que duramos.


11-7-1914

Odes de Ricardo Reis . Fernando Pessoa. (Notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946 (imp.1994), p. 34.


1ª publ. in Atena , nº 1. Lisboa: Out. 1924.

Rex

I.

ás vezes depois de já estar sentado
na poltrona do ônibus observando a noite
incidir sobre os estacionamentos
de supermercados e cruzamentos
e prédios sem carcaça
penso em como seria se eu fosse
esse tal vigilante noturno
trancado num colégio que ainda se ergue
encravado em um município de olhos de palha.

talvez nada mudasse subitamente.
talvez continuássemos a ir à praia
sendo regados pelo sol nos domingos aquarelados
e depois iriamos de mobilete até um fast food
ainda molhados a toda velocidade
o vento nos beijando loucamente
cabelos salinos ainda grudados em sargaços
e chegando lá comeríamos um sanduiche cada um
com hambúrguer cheddar cebola e bacon
acompanhados de batatas fritas e suco de laranja
talvez depois você passasse mal do estômago
talvez fosse remar contra a cultura e os humores murchos
talvez quisesse conversar sobre o paradeiro de kilgore trout
mas eu já deveria estar longe
navegando contra a correnteza de automóveis
indo vigiar o grilos e morcegos
dentro da embarcação em construção.

II.

eu iria ter um cachorro comigo.
daria o nome para ele de rex:
o mesmo nome do meu primeiro cão
que morreu engasgado com um osso
cujo corpo nunca cheguei a ver inerte numa caixa de sapatos.
ele andaria comigo pelo pátio do colégio fantasma
seria pardo ou talvez negro feita a sombra de uma pedra
eu beberia café sem açúcar e ele água da torneira
afagaria suas orelhas enquanto admirava seu sono dimensional
arremessaria gravetos para ele ir atrás
ele correria com a boca aberta
a língua estirada para fora como um tapete vermelho
e pegaria o graveto
mas não me devolveria
porque nunca fui bom em adestrar coisas que saltam
então ele guardaria o graveto para si
talvez o roesse talvez o mijasse
talvez o enterrasse junto as crisântemos
que ainda não estariam ali
para o entregar a alguém que fosse o amor para ele.

penso isso durante todo o trajeto
desde o teu último abraço
até meu primeiro passo de volta ao meu bairro
eu usaria um uniforme igual ao do meu pai.
você iria as vezes me afagar no portão.
rex seria nosso terceiro filho.
as noites se moveriam comprimidas e sem recuo
talvez eu precisasse tomar remédios
comer feito gado respirar repleto de musgo
ser um poeta morno odiar meus cabelos
respirar repleto feito poeta odiar meu gado
comer meus cabelos ser um musgo morno
odiar meu poeta ser gado respirar
meus cabelos mornos comer repleto de musgo
ser meus cabelos comer feito poeta
odiar repleto de musgo respirar meu gado morno
talvez eu não precisasse tomar remédios
e quando o colégio estivesse de pé
funcionando sem a ajuda de aparelhos
as crianças estudando de branco e azul marinho
professores fumando cigarros amargos nos intervalos
zeladores merendeiras e baratas como glóbulos brancos
adolescentes fumando cigarros salgados nos intervalos
as luzes acesas os olhos em stand by
e eu finalmente carregando mais tempo livre
pra você
pro rex
pros poemas pros desenhos
e pra admirar minhas calças
desbotando gradualmente
junto a ferrugem da praia.

 

[Ver perfil deVictor H.]

Sinéad Morrissey, Shostakovich

tradução de José Manuel Teixeira da Silva

O vento e seus instrumentos eram, em segredo, os meus mestres.
Na rua Podolskaya eu tocava piano para a minha mãe
- nota a nota, sem partitura- enquanto o sopro
percorria o apartamento devassado: com mão grossa batendo
nos vidros, gemendo no fogão, empurrando
a porta, uma e outra vez, em direcção ao patamar-
um fantasma por entre o mecanismo dos Dois Prelúdios de Beethoven

em todas as tonalidades maiores, e era então que eles mentiam.

Mais tarde, ficava-me pelos campos de trigo e ouvia música
no que o vento tocava. As notas agudas eram cascas:
turbulentas, mas também um nervoso e volúvel sussurro,
enquanto, subterrânea, pulsava a forte, feroz melodia
como se falso crescesse o grão ou a própria floresta.

Em todos os hinos de louvor, no cantochão, deixo o registo
do bater de botas desse homem escondido na montanha.

 

 Sinéad Morrissey  (Irlanda, 1972), Parallax, Carcanet, Manchester, 2013
 

 SHOSTAKOVICH

The wind and its instruments were my secret teachers.
In Podolskaya Street I played piano for my mother
-note for note, without a music sheet- while the wind
in the draughty flat kept up: tapping its fattened hand
against the glass, moaning through the stove, banging
a door repeatedly out on the landing-
the gost in the machine of Beethoven’s Two Preludes

Through All the Major Keys, that said they lied.

Later I stood in wheat field and heard the wind make music
from everything it touched. The top notes were the husks:
fractious but nervous, giddy, little-voiced,
while underneath a strong strange melody pulsed
as though the grain was rigging, or a forest.

In all my praise and plainsong I wrote down
the sound of a man´s boots from behind the mountain.

 

Do vigor irremediável da presença nómada

Texto de apresentação de Supertubos de Hugo Milhanas Machado, lido no dia do seu lançamento, 7 de Fevereiro de 2016, no Bar Irreal, Lisboa

0- Ao mesmo tempo que Hugo Milhanas Machado revê os marcadores ontológicos que povoam o mundo, faz emergir novíssimas possibilidades de sentido, a presença em vez da evanescência (ao contrário de Derrida, mais versado em “palavras nuas” ou “mitologia branca”). Tudo jogado em palimpsestos rústicos que nunca ganham a forma definitiva de uma inteligibilidade dominante, capazes, pois, de conjurar os velhos demónios da totalidade.

1- Supertubos é o mapa de uma viagem poética de 10 anos, tendo em conta a idade de Milhanas Machado, é o livro da sua vida adulta. Estranhamente coerente no estilo, pela aposta na desconstrução (que palavra tão gasta e tão ignorada) das regulações sintácticas. É como se buscasse uma para-sintaxe, refrescando os sentidos básicos que nos ligam ao mundo e a nós mesmos. Milhanas Machado reconsidera o óbvio pela dislexia calculada, mas nem sempre controlada, que introduz no estrato sintagmático do discurso.

1.1- A sua poesia é simultaneamente muito difícil e fácil, depende do ângulo de ataque. Podemos permanecer na sua musicalidade, dissonante, e deixar-nos envolver pelas palavras que conhecemos de uma longa tradição do léxico poético português (corpo, noite, viagem, céu, estrela, amigo, dança, amor, anjo, mar, praia, paisagem, café, sol, escuro, nevoeiro, barco, mundo, terra...). Mas se praticarmos uma leitura estética, então somos sacudidos por todos os lados, nada é suficientemente estável para repousarmos sequer um pouco numa eira de sentido já constituído, tudo é sempre outra coisa pelas possibilidades que se abrem logo na origem de cada fulguração (“Há aquele braço nas pedras / de colo parado da paisagem /quando é voz percebemos quase corpo / e agasalha se tornar a escutar”).

O espelho que reflecte esta arte poética é um “espelho torto”, talvez por isso tudo deva ser dito e lido circulando, seguindo o que Nietzsche escreveu sobre os benefícios do caos e das caminhadas.

2- Esboçará Supertubos uma poética do eu? De um eu, tantas vezes anjo e marinheiro, de um eu situado nos interstícios do descobridor que naufraga, que só porque fraqueja pode avistar ou inventar a praia onde repousar e beber um cocktail sentado na “areia maluca”. Mas ao mesmo tempo, talvez nunca um livro de poesia tenha tido tantos nomes de pessoas: zés, carlos, alfredos, paulos, vascos..., como se Milhanas Machado quisesse compensar o estilhaçamento do eu com processos tangíveis, carregados de história, de subjectivação.

Em marcha com “letra marinheira” rasga o invólucro frágil onde se guardam os antropónimos que fizeram a felicidade dos notários. Lacera também a gramática das vias terrestres GPScizadas, lineares e enfadonhas. Uma loucura controlada que se manifesta quase sempre através de ritmos dionisíacos recompõe a língua para atingir arqueologicamente as partículas que compõem os horizontes de sentido mais comuns.

Muitos vezes, Milhanas Machado abre espaços amplos, a que se chama por comodismo linguístico paisagens, onde o corpo se perde e se ganha, se dilui em algo mais vasto do que ele, ao mesmo tempo que se concentra furiosamente no único ponto certo, e cego, de si: pulsar, pulsar sem descanso. Certeza arrogante que talvez a paisagem não aceite manter.

3- Milhanas Machado desenha também uma indústria poética, uma “fábrica do gosto” que vai parindo palavras ligadas por fios de Ariadne electrificados. O caos, dizia Deleuze, não é a desordem, mas a velocidade infinita, é isso que nos choca, sem redenção possível. E na poesia de Milhanas Machado temos arranques bruscos, de corrida de bicicletas em perseguição por “caminhos anavalhados”, prontos a esfolhar e partir o corpo-ciclista, como se houvesse pressa em ir a tantos sítios quantos os que fazem e desfazem o absurdo, tudo “rumo ao futuro”. Porque ficamos “escangalhados sempre repousamos”, daí que não devamos passar de “campistas” ou ultrapassar a “babugem do clarão”.

4- Poética da desconstrução, as parcerias não duram nem na “sueca”. Foi a recuperação de linhas de memória escondidas nos batimentos da vida quotidiana que permitiram a Milhanas Machado ver, cheirar e tocar tanta coisa banal e fazer disso uma “vida jeitosa”. Uma banalidade que preenche biografias felizes e se eleva, com a força da metamorfose que acompanha a arte, até ao andar da cultura erudita. Numa espécie de homenagem metafísica, Milhanas Machado vai tricotando poemas com esse fio de vida passada. Trata-se, antes de mais, de feitiço, pegar nas coisas e repô-las em palavras, eterno retorno embruxado. Tanto mais que “dizemos por empréstimo”, pedir emprestado a outras vidas e a outros tempos para que a nossa se mantenha de pé, ora num pé ora noutro.

5- O amor acontece na dentada de um anzol. A corte faz-se como se pesca. Junto às rochas. A aventura pode ser miúda, como o peixe. Mas dará para a caldeirada.

6- Milhanas Machado reincide ao trazer a oralidade para a escrita divina da poesia, apontamentos de luz (em claro-obscuro: um brilho turvo de “fogueira de noite”, “alumiando um pouco diante do corpo”) despejados no caleidoscópio vital que recupera de uma memória descomplexada e prolífica. Tudo misturado com sons, muitos sons, imagens e por vezes cheiros, esbatidos por um tempo que oscila entre a eternidade e o instante. Talvez cada instante contenha a eternidade, não é preciso somá-los à força de máquinas de calcular para chegar aos números imensos, haver uma aproximação assíntota ao que dura desde sempre e para sempre. Mas também o instante carece de substancialidade, tudo se vai “esfrangalhando”.

7- Estrelas fora de nós e mar dentro de nós, para glosar, com deslizes, o grande/pequeno immanuel Kant. Pontos cardeais de Hugo Milhanas, ligados pelo voo incerto da linguagem e vividos num corpo inteiro, às vezes de anjo, não belo mas ferido, rasgado, demonstrando que vive acima da crença anódina das figuras de cera poéticas. Milhanas Machado encosta-se ao leitor e aponta um rumo, mas não o deixa tomar o leme, sugere linhas hermenêuticas vagas, desfralda uma ou outra vela, sopra o quente e o frio, sempre de través para evitar bolinar. Gostamos dele, como de um amigo, gostamos e antipatizamos, como a flecha que sai do arco.

8- É preciso “ver torto” e ler torto, são poemas em movimento, “mexem bastante”. Não nos levarão à “terra do nosso regresso”. Como podemos fiar-nos num verso que diz “sopra tão limpo cruel o fabuloso”? Mesmo com “pés gigantes e bronzeados”. Talvez as frases sirvam apenas de contraste ao “silêncio crepuscular”, o corpo é que tem de se bambolear à procura de um equilíbrio que evite uma e outra vez quedas na calçada, isto até chegar ao baloiçamento do barco (ou à biomecânica do ciclista em dia de montanha), mar a toda a volta, por cima e por baixo, esse mar infinito sem fronteiras que interrompam o viajante. Obliquemos e naveguemos pela vida fora!