As Aventuras do Senhor Lourenço (§6 da imperfeição que redime)

(cont.)

Lourenço ficou embaraçado, enredado no sem-sentido que costuma atacar quem se põe ao lado da via estritamente instintiva da sexualidade. Lourenço não fez sexo, mas para-sexo e, nalguns momentos, meta-sexo. Também sentia frio, esse que invade lentamente até às entranhas, como nos Descobrimentos. Preparou uma frase, depois outra, e ainda outra. Umas já feitas, outras quase inventadas no momento. Nenhuma servia, sabia-o mesmo antes de as formular ou encontrar. Talvez um grito!? Assustava Manuela e ela dava um pinote, achando-o louco, e nunca mais se falava no assunto. Antigamente, quando se fumava na cama (cliché fundamental no cinemavanguardista), na cama e em todo o lado, até, e por vezes sobretudo, nos hospitais, para desanuviar o medo de poder chocar de frente com a morte, mesmo com a própria morte, punha-se uma pose a la Pierrot le Fou, e toca a andar. Fumava-se um cigarro e, pelo menos em imaginação, corria-se heroicamente para os braços da morte ou da vida plena. Nada disto aconteceria neste caso, Lourenço estava despojado de qualquer esperança, prometido, sabia-o bem, à irrelevância e ao ridículo.

– Giro. Não foi? – Perguntou assertivamente Manuela.

– Sim, fantástico. – Sussurrou Lourenço.

– Sabes, eu gosto de sexo, gosto mesmo. Aliás, acho que todas as mulheres gostam, até as santinhas do sofá azul. – Tratava-se de 4 ou 5 colegas que, sempre sentadas no mesmo sítio (Lourenço julgava até que elas não punham os pés numa sala de aula há décadas), invocavam frequentemente a presença do espírito santo para censurar as conversas mais picantes dos pobres professores, cuja libido residia agora sobretudo na memória.

– Pois, a espécie precisa de sobreviver. – Que raio, a espécie humana já não precisa do coito, Lourenço. Se queres arruinar a possibilidade de voltar sequer a beijar a Manuela, então vai por aí!

Manuela levantou-se, e deu-se uma revelação. Por cima da sua nádega esquerda (mais bela do que as do Renascimento) havia uma reentrância do tamanho de um punho, coberta por uma pele estranha, mistura de zona queimada e suturada, Lourenço nunca tinha vista nada igual. “Era um defeito!” Manuela tinha clara e inequivocamente um defeito, bastante grande, por sinal. Não desequilibrava a sua anatomia e até podia passar despercebido, mas Lourenço concentrou-se nesta tábua de salvação, “Manuela é defeituosa, eu também, mas não como ela”.

– Estás a olhar para a cratera? – Perguntou Manuela.

 – Cratera?

– Sim, aí ao fundo das costas?

– Ah, nem tinha reparado, quase não se dá por ele.

– Não digas disparates, claro que se dá por ele e claro que estavas a analisá-lo. Foi um tiro de caçadeira, tinha 10 anos e o meu pai disparou a arma, o seu grande e único amor, sem querer.

– Que chatice.

– Nada disso, é a única marca que tenho quase desde sempre e para sempre, o resto vai e vem, aparece e desaparece, isto fica. É uma tatuagem mais funda e mais definitiva. Por outro lado, assusta os cocós que nos querem parecidas com bonecas insufláveis sem percalços.

Certo, Manuela até podia escrever o poema mais bonito em torno da “cratera”, mas Lourenço permaneceu atento aos “defeitos da boneca insuflável”, e isso redimia-o, num grau tão elevado que é difícil imaginá-lo. O mal dos outros é o nosso bem, daí a tendência para o fracasso atrair o fracasso. Lourenço só podia, pois, aliar-se a personagens menores, e agora, pelo menos para ele, Manuela entrava nessa menoridade. Bem diferente é o que se passa a nível atómico, tudo é exacto. Podemos ver o mesmo princípio do “mais é mais” na natureza, sem a intervenção humana, o mundo natural vive exclusivamente na perfeição,

[talvez por isso David Henri Thoreau tenha dito que um livro deve ser tão natural e inexplicavelmente belo e perfeito como uma flor silvestre. Mas como fazer agora isso se a maioria dos leitores não sabe o que é uma “flor silvestre”?]

Manuela começou a vestir-se, primeiro as cuecas, um pé ligeiramente no ar para enfiar uma parte, depois o outro, no final puxou de uma só vez o conjunto e deu um ligeiro salto, e tudo ficou admiravelmente no sítio, as cuecas azuis terminaram na posição exacta, dando uma beleza sufocante ao seu rabo. Aquele salto, feito de forma tão natural, tinha uma tal profundidade estética que revoltou Lourenço por estar garantido à morte. E depois, a “cratera”, logo acima, a denunciar a outra realidade da Manuela, a imperfeição que a tornava humana e viabilizava um próximo encontro.

Manuela despediu-se, quase como o fazia na escola. Lourenço ficou só, com o mundo inteiro a vigiá-lo, sobretudo as televisões tablóides, esperando que saltasse da janela. Mal sabia o mundo, e os jornalistas televisivos de meia tijela, que Lourenço tinha encontrado a salvação na “cratera”. 

Uma diabólica sombra de suspeita para cada proclamação de verdade: Umberto Eco (1932-2016)

No tempo do liceu, onde nas aulas de literatura éramos ensinados a escrever comentários de texto, o que, olhando para trás, pode bem ser interpretado como um aborrecido exercício preparatório, espécie de imitação paródica, para a subserviência a todas as autoridades a que mais tarde seremos convidados a conformar-nos (obedecer ao texto, depois ao resto), encontrei-me com o romance de Umberto Eco, O Nome da Rosa. Isso aconteceu num Inverno particularmente chuvoso, em que adoeci intermitentemente com uma sucessão de gripes mal curadas e portanto passei boa parte do Inverno a ler.

A minha descoberta desse livro de Eco aconteceu numa altura em que achava que toda a história que importava era Rómulo e Remo, Cícero e as Filípicas, os dois triunviratos e Augusto, e por fim, cereja no topo, a instituição do Império Romano, não sem antes o coração acelerar com o golpe dramático do suicídio de António e Cleópatra, no meu entendimento anacrónico a primeira lição sobre a dignidade que sobra aos derrotados em sistemas na iminência de se tornarem radicalmente autocráticos, sistemas cuja sobrevivência se garante por, e assenta em, como não?, populismo. A notícia do saque de Roma por Alarico, a chegada dos bárbaros, o fim do Império, numa das aulas do último ano de latim no liceu, foi um golpe difícil de suportar, a decadência do fim de uma era na história da humanidade a imitar a decadência do fim de uma época da minha vida.

É fácil para um adolescente com uma imaginação inquieta apaixonar-se pela longa sucessão de intrigas políticas que é a história do Império Romano. Depois desse esplendor, chegar a uma ideia da Idade Média enquanto tempo de uma aventura ao mesmo tempo intelectual e espiritual, para qualquer adolescente previamente exposto a Catulo, Horácio, Cícero e Vergílio, pode ser algo bem mais desafiante. Na minha imaginação ignorante, isto continuava a ser um facto: nenhum santo deixou para trás uma linha que pudesse rivalizar com a beleza de ibant obscuri sola sub nocte per umbram, e as Confissões só chegaram muito mais tarde. Tal como só um pouco mais tarde me chegou a ideia de que a forma como nos entendemos enquanto Europeus, enquanto herdeiros de uma cultura comum, que une e define, e por fim separa, os países de um continente heterogéneo e fragmentado, tem as suas fundações nos processos culturais que estão em jogo na continuidade entre estes dois períodos, que de alguma forma serão reconfigurados e reinventados pela imaginação dos Renascentistas (incluindo, de novo, uma demonização quase adolescente da Idade Média em detrimento da Antiguidade Clássica). Eco falou sobre o fascínio da Idade Média numa entrevista à Paris Review (The Art of Fiction n.º 197):

Why do you fall in love? If I had to explain it, I would say that it’s because the period is exactly the opposite of the way people imagine it. To me, they were not the Dark Ages. They were a luminous time, the fertile soil out of which would spring the Renaissance. A period of chaotic and effervescent transition—the birth of the modern city, of the banking system, of the university, of our modern idea of Europe, with its languages, nations, and cultures.

As personagens de Eco em O Nome da Rosa são, em certo sentido, herdeiras das tensões entre esses mundos, e foi aí que eu primeiro percebi essa continuidade. Essas personagens fantásticas que são capazes de descrever um homem e um quadrúpede pelas pegadas que estes deixam na neve são, na totalidade dos seus percursos, representativas de um tipo de inteligência ao mesmo tempo medieval, em que os contextos éticos se tornam intimamente ligados a um conceito mais profundo de viagem espiritual, e são também, quase paradoxalmente, herdeiras do pragmatismo dos Romanos. Descobrir Eco é, neste sentido, um exercício de aprendizagem sobre o diálogo constante que existe entre o passado e o presente, um exercício sobre a profundidade do nosso próprio tempo no mundo. É também um exercício sobre o que outro autor italiano, Pietro Citati, a propósito do Ulisses de Homero, apelidou de "a mente colorida", numa referência à inteligência complexa, cheia de energia e de ardis do herói grego. 

Uma das minhas citações favoritas de Walter Benjamin pode ser lida no fim de O Anjo da História, em que se diz que existe um acordo secreto entre as gerações passadas e a nossa, que é assim que sabemos que fomos esperados nesta terra, e que entre nós e as gerações que nos precederam está vivo o acordo de uma ténue força messiânica, a que o passado tem direito. Isto explica porque é que os mortos precisam dos vivos para continuarem vivos. O romance de Eco, que cruza a Idade Média com o argumento de um policial, pode ser entendido como uma versão da força desta ideia.

Aprende-se mais tarde: o Inverno é um bom tempo para ler Santo Agostinho, São Tomás de Aquino, e para romances policiais passados na Idade Média, subcategoria especial do género “romance policial histórico,” que viria a ser preenchida, e talvez  totalmente inventada, por Eco para mim, como para milhares de leitores antes de mim, nesse Inverno. É difícil de descrever a adequação que existe entre noites de Inverno e um livro com um enredo intricado, adequação essa prolongada pela solidão da luz de um candeeiro numa mesa de cabeceira, chá, laranjas e febre.

O Nome da Rosa é um romance bom para gente com uma imaginação febril. Se acreditarmos no que Eco disse numa entrevista ao The Guardian em 2011, a propósito do sucesso menor do mais comercial do seus romances, muito mais pessoas descobriram que gostavam de ser desafiadas por um romance para literatos com especial interesse na Idade Média do que Eco talvez alguma vez tivesse esperado. Nesse romance, Eco escreve algures que não nos devemos preocupar com o que os livros dizem mas com o que eles significam. Na altura em que percebi que queria passar o resto da minha vida a estudar literatura e tudo o que me diziam acerca dela é que o que importa para ter uma boa nota no exame é prestar atenção ao que se diz e ao como é dito, esta frase fez toda a diferença. Introduziu o tipo de suspeita fundamental que acaba por decidir que tipo de inteligência é a de Adso de Melk em O Nome da Rosa. Sobre o papel da suspeita (e do cómico) nas nossas vidas, vale a pena lembrar de novo a mesma entrevista de Eco, citada acima:

And I believe that in The Name of the Rose, I did, in narrative form, flesh out a certain theory of the comic. The comic as a critical way of undercutting fanaticism. A diabolical shade of suspicion behind every proclamation of truth.

E nessa altura ainda estava longe a alegria de ler o Diário Mínimo. Um dos ensaios desse livro ficcionaliza o relatório de um editor que se vê no papel de avaliar o potencial da Bíblia enquanto eventual bestseller. Os melhores livros que vamos ler deixam-nos redescobrir as coisas a partir dos ângulos mais inesperados, alimentam a nossa imaginação durante dias, durante os mais longos Invernos, deixam-nos perceber as formas em que a nossa curiosidade está viva e é um instrumento para sobreviver a rotinas, a gestos repetidos quotidianamente, que de outra forma nos estupidificariam, deixando-nos um pouco menos humanos. Bons livros permitem-nos continuar a estranhar a realidade. Estamos mais vivos com uma imaginação melhor. Para terminar quase na forma de um silogismo aristotélico, o que Eco apreciaria, este talvez seja o melhor epitáfio: a nossa imaginação melhora com Umberto Eco. 


Mais sobre Umberto Eco:

Umberto Eco, The Art of Fiction n.º 197The Paris Review. 

Umberto Eco, Ur-FascismThe New York Review of Books. 

Umberto Eco in Ten Quotes, The Guardian. 

People are Tired of Simple Things, entrevista ao The Guardian. 

A Guide to Thesis Writing that is a Guide to Life, New Yorker. 

Umberto Eco, Guardian Live Event. 

Umberto Eco: The Name of the Rose, World Book Club, BBC World Service

Obituário, Corriere della Sera.

Oráculo 0

Uma flor selvagem
ou uma subtilíssima rosa de terror a enlaçar-nos o tornozelo
como uma estrela felina
um cordão de sangue subitamente desatado
a empurrar-nos gota a gota contra o verso transbordante
a afiar-nos as navalhas
a compelir-nos docilmente sobre o esforço de cair

Ou o nome,
apenas o nome original
o nome incendiário por entre as vozes ascendentes das mulheres
esquerdinas
e os plátanos dos palácios incendiados
e leopardos que brilhavam ao redor da madrugada

una forma de arder, 7

Dije:
un poema ardiendo es la salvación,

y me golpeaste hasta desfallecer,
me dijiste, observa:

ahora el verso es una gran cicatriz perenne
sin dueño
un cuchillo que cae y se pierde en la herida.


Ángel de la Torre, Córdoba, 1991. Licenciado en Filología Árabe. Este poema pertenece a El río es un decir, publicado en La Bella Varsovia. 


Un animal lame el dolor como lame una pata, un hocico o los restos de
carne en el cuenco. Con la misma insistencia.

Una astilla no grita, no tiembla o se ríe; es la certeza del dolor quien se
Aproxima desnuda, como lo hacen la sed, el hambre o el miedo.


Uxue Juárez,Pamplona, 1981) es escritora y profesora de instituto. Este poema pertenece a Bajo la lengua, bichos, publicado junto a las ilustraciones de Daniela Spoto por Stendhal books.

Agustina e a adopção completa do fogo

João Vuvu, personagem principal de Vai e Vem, de João César Monteiro, diz a Fausta que “o mundo das quimeras” cheira a “mofo”. 

Em Agustina Bessa-Luís, também os discursos emancipadores sofrem um desmantelamento intenso, uma vez que postulam uma redução do humano que, mais do que absurda, é perigosa: a amálgama, pretensamente generosa e benéfica da igualdade, aniquila a capacidade de transfiguração, em grande medida assente nas estrias provocadas pelo atrito. A individualidade, e não o individualismo como algumas leituras precipitadas fazem crer, é o que aparece preservado na obra da autora.

Por definição, todos as incontáveis rotas levadas a cabo nos livros de Agustina só admitem uma aproximação que se faça de frente, i.e., a transversalidade acarreta sempre a desconsideração de algumas características demasiado importantes: passar por cima do caos não é, no fundo, relacionarmo-nos com ele. Escolhemos, por isso, a personagem Amélia, de O Sermão do Fogo (1962). 

Lemos que “(...) a vida humana significa só duas coisas: resistência e desistência. Entre uma e outra, quanta palavra inútil e sentimentos escusados” (p. 162). Ora, essa é a inscrição de Amélia no mundo: resistência que é levada a cabo enquanto prerrogativa, ou seja, como potencialidade ou hipótese. O que não a faz desaguar na mera gratuitidade da abertura que tudo se dispõe a agregar: Amélia vai densificando a sua experimentação tendo como “bandeira” a “esperança”.

Prometeu, segundo Ésquilo, deu aos humanos não apenas o fogo mas também, muito especialmente, a esperança; e a esperança e o fogo (aqui, esperança-fogo) animam igualmente a questionação do Logos por parte de Heráclito. Todavia, aí - e neste Sermão - “esperança” não se insere num autismo ou sequer paliativo como resposta à realidade: é pela esperança, pelo assumir da liberdade e dos seus riscos, que Amélia incorpora o Pathos e fustiga os alicerces do determinismo. Daí que o combate por parte dessa pulsão de rompimento em Amélia se trave quer contra lógicas de eficácia – pós-modernismo e o apagar da diferença graças ao significante –, quer contra enunciados mitificadores – oráculo inquestionável e o dogma hermenêutico da essencialidade. Mas também não será o meio-termo: é “irromper pelo meio”, pegando na expressão de Deleuze.

Com efeito, Amélia ao perguntar “Mas o que é natural senão a uniformidade, e, de qualquer maneira, o descentrarmo-nos do fogo?” (p. 229), identifica com clareza aquele que é para si o motivo do amesquinhamento do carácter humano. E só uma personagem em constante contacto com o Outro consegue aperceber-se disso mesmo, daí que a postura de Amélia seja tudo menos alheada: é, pelo contrário, comprometida. 

O poder da relação dialógica com Maria Consolata é outro testemunho das cesuras através das quais Amélia vivencia o mundo: “O seu demónio mais pertinaz tinha sido enfim domado, e ela sabia que com ele se retiravam as mais profundas cláusulas do medo e da tristeza. A inconstância deixava enfim o seu coração, e havia nela agora uma identidade com Maria Consolata (…)” (p. 271). Aqui, não parece ser à derrota que se alude mas sim à superação da volatilidade dos temperamentos débeis. A criação de linhas de vida exige a elasticidade da deriva e, simultaneamente, a prudência anti-dissolução, uma vez que a desmesura anula, originando linhas de morte: a vontade de experienciar – obrigatória - convive com a imprevisibilidade.

Assim, a protagonista do romance O Sermão do Fogo ao fugir da tipificação literária canónica, serve de paradigma da insubmissão: “A vida, porém, aceite nessa nudez, a adopção completa do fogo, sem nomes líricos e sem fraternidades, a vida destacada em cada um na sua forma absoluta, isso é que faz as criaturas fantasmas divagadores.” (p. 192). Amélia, anti-Medusa, move-se pela procura instransigente do “ verdadeiro estado, alucinante estado de liberdade em que só o amor pode salvar” (p. 277).

Obra de paradoxo e de desafios éticos, a escrita de Agustina Bessa-Luís tem somente uma lição a dar-nos: a de que a atitude de recusa, para ter amplitude, carece da disponibilidade para o inapropriável, como acontece com a vida e com a Literatura