Sequestro

Um pouco por toda a sala o desejo é o mesmo. Fala-se porque é preciso iludir. Criam-se narrativas atrás de narrativas. Há sempre alguém que recorre às suas habilidades para entreter. E nós precisamos de paliativos sinceros, de gente que suba ao palco e nos conte histórias, porque as histórias são as benzodiazepinas de deus.

Os malditos sequestradores também se divertem. Usam e abusam do seu violento protagonismo. Sobem ao palco e fomentam a indisciplina. Há noites de sexo ao vivo e circo errático e inconsequente com as mais perfeitas esposas do reino. Somos todos obrigados a aplaudir.

Houve quem congeminasse, nos tempos mortos, em segredo, e até preparasse um plano de revolução mais ou menos exequível. Houve quem doasse um braço, um olho, uma vértebra, um pedaço importante do seu pudor e do seu perfil, só para evitar ver o seu filho sofrer.

A verdade é que o tempo passa e os resultados não são visíveis. Fala-se que o próximo passo é tentarmos a amizade com eles. Mas as baixas diárias não deixam sequer o melhor dos nossos actores intervir. Estamos todos intoxicados pela descrença

Amar o futuro

O desejo de prever o futuro deve ter nascido com as primeiras experimentações racionais da nossa espécie. Há teorias que vêem nas pinturas rupestres tentativas de condicionar o que se iria passar nas caçadas dos dias seguintes. E este “condicionar” é uma das melhores formas de previsão. A leitura das entranhas, humanas e não humanas, parece também ser um acto transcultural de adivinhação, bem como a quase indústria religiosa dos bons e maus auspícios, que numa das suas formas sublimadas deu origem à arte trágica, mostrando a húbris o limite do nosso poder analítico, e, noutro campo, o prazer da punição. Somos, então, partamos desta tese, animais prestidigitadores.

Mas em todas as épocas, com mais ou menos linhas de frustração, aceitou-se a imprevisibilidade das previsões (uma boa modéstia que agora nos escapa). Matava-se o Xamã, comprovava-se a menoridade humana em relação ao Olimpo, introduziam-se variáveis contra-produtivas (uma das vantagens do politeísmo), reinterpretava-se a realidade... e concluía-se, por vezes em narrativas longas e retorcidas, que tudo não passava de um jogo, com alguma crueldade à mistura, onde se ganhava e perdia.

Diferentemente, hoje vive-se uma insaciável vontade de controlo. Somos a época mais inábil a conviver com o imprevisto. Da antevisão do tempo às grandes projecções económicas (oxalá houvesse uma húbris para os economistas charlatões), da definição da esperança de vida aos cálculos probabilísticos das apostas desportivas online, dos seguros de vida (esta forma de evitar a morte serve a boa consciência e os cofres das seguradoras) aos voos protelados para os quais se fazem novas previsões. Ou então é toda um parafernália messiânica que alimenta as missas do progresso. Em suma, disseminamos as maiores e mais sofisticadas forças narrativas e tecnológicas para que o futuro não nos escape das mãos. Podemos ver mal o presente, ignorar estupidamente o passado, mas ai de quem nos tira o controlo do futuro.

Em boa verdade, por mais tecnologia e algoritmos que tenhamos, isso não passa de uma vã pretensão, basta pensar um pouco para ver o nevoeiro que cobre o futuro, mesmo o mais próximo. Noutra via, mais espiritual, a verdade é que a humanidade não evolui, como alguns julgam, de combate em combate até ao apaziguamento final, teleologia miraculosa. Ponham-se novamente em causa as litanias do materialismo dialéctico tanto quanto o optimismo cínico burguês (coincidentes na ideia de “progresso”, neo-messianismo pós-Iluminista).

Mas não é tanto esta constatação de impotência que me interessa relatar. Quero antes denunciar as consequências éticas (no sentido do carácter individual) que esse afã prestidigitador provoca. Parece-me que elas acontecem a dois níveis: 1- perda de liberdade (quem controla controla-se, não está disponível para o novo, o seu novo); 2- apagamento de uma poética do imprevisto (tudo o que acontece já era esperado, ou pelo menos acredita-se nisso). Em suma: prever é sempre seguir a linha de uma feiticeira.

No primeiro caso estamos perante mais um processo de alienação, de auto-alienação. Quando dizemos “sei o que vou fazer, ser, ter…” bloqueamos aquilo que nos podia desviar de nós e amplificamos o que somos, o que “estamos fartos de ser”. No segundo, impedimos o rejuvenescimento, a emergência de linhas de vida que desconhecemos e que viriam enriquecer o nosso mundo. E assim, na junção destes dois elementos (próximos) reduzimos o potencial de experiências de vida, vamo-nos tornando existencialmente subnutridos, de uma simplicidade (quanto mais simples mais previsível) assustadora.

Por isso, Nietzsche só podia dizer: “Amo a incerteza do futuro.” (Fragmento Póstumo, 1881-1882).

Vou indo

Eu vou. 
O espelho diz-me então 
que tenho sete vidas (mais não) 
e poderei regressar ainda viva da mina 
de carvão que fica na ponta oeste do 
vale da velha união, onde foi rogada a praga 
da vidente ensimesmada que afastou para sempre 
moças e mancebos da terra de seus pais para 
países longínquos onde becos, esquinas, vielas 
e sinuosidades escuras servem de tronos reais. 
 
O ás de espadas fará as apresentações 
da manilha de anões que, à entrada 
da cave oficial do centro de desemprego, 
filão empregador de jovens muito velhos, 
deverei incorporar: o cordial, o amável 
o estratega, o submisso, o faz-tudo 
o abnegado e o mudo, muito mudo. 
 
A bela adormecida acordou sem 
beijos e já se meteu a caminho, 
evitando a ordem de despejo: 
para o trabalho, eu vou 
eu vou, eu vou. 
 
 
 Nota: A primeira versão deste poema foi originalmente publicada no livro Dívida Soberana (Mariposa Azual, 2012)

Tirbuson

Eu tinha um saca-rolhas, para as garrafas de vinho. Ainda me lembro da cor. Era Bordeaux. O tom escuro de vinho tinto que me agrada tanto. Não tenho a certeza se essa cor muda com o tempo. Isto normalmente é o que acontece com as pessoas. Quero dizer, o tempo muda as pessoas. O pior é que não me lembro como me veio parar às mãos, se foi um presente de um ente querido. Lembro-me que uma vez vi uma faca pequena numa loja velha numa rua chuvosa. De um lado da faca estava escrito: “Talvez a minha dádiva seja uma que é pequena, mas tem cuidado porque se a perderes, vais perder-me a mim também.” Mas eu estava a falar do meu saca-rolhas, o meu primeiro e o único – até aqui – Tirbuson. Não me lembro se o comprei à pressa para abrir uma garrafa de vinho no Verão. Talvez este saca-rolhas me tenha pertencido só porque tive pressa de provar vinho com amigos ou com alguém de quem gostava, mas já não me lembro quem eram. Esta é a minha pena. Nem sequer me lembro se o encontrei na rua, esquecido por outro pessoa ou se o agarrei como um troféu de guerra. E se era uma relíquia de família? No caso de ser “um prémio de bravura”, gostava de saber em que guerra participei. Será que a venci para receber este tesouro? E se sim, quem eram os meus inimigos? Que lado era o certo? Espero que o meu fosse o certo, para que não tenha insultado a vontade de certos deuses zangados.

Read More