Vou indo

Eu vou. 
O espelho diz-me então 
que tenho sete vidas (mais não) 
e poderei regressar ainda viva da mina 
de carvão que fica na ponta oeste do 
vale da velha união, onde foi rogada a praga 
da vidente ensimesmada que afastou para sempre 
moças e mancebos da terra de seus pais para 
países longínquos onde becos, esquinas, vielas 
e sinuosidades escuras servem de tronos reais. 
 
O ás de espadas fará as apresentações 
da manilha de anões que, à entrada 
da cave oficial do centro de desemprego, 
filão empregador de jovens muito velhos, 
deverei incorporar: o cordial, o amável 
o estratega, o submisso, o faz-tudo 
o abnegado e o mudo, muito mudo. 
 
A bela adormecida acordou sem 
beijos e já se meteu a caminho, 
evitando a ordem de despejo: 
para o trabalho, eu vou 
eu vou, eu vou. 
 
 
 Nota: A primeira versão deste poema foi originalmente publicada no livro Dívida Soberana (Mariposa Azual, 2012)

Caixa de Velocidades

O carro arde, é 
verão, falha-me 
a embraiagem 
(confesso que 
 tenho medo). 
 
É por Monsanto que 
sigo para recuperar 
no opifício do comercial 
centro a celeridade e 
beijar as montras do 
auto-conhecimento. 
 
Faço aquisições, toco 
na pele do pêssego. 
 
Posso porque conheço 
tão bem o curso que 
me transporta para o
nível menos um
como a família
de feudatários
da qual descendo.
respiro o condicionado
ar e a consolação de
um austero
estacionamento.  

Está escuro 
está fresco 
reina o silêncio. 
 
Regresso ao vermelho 
lugar e espera-me 
aí – ar gasoso e suspenso 
 
o garagista com olhos de Cristo 
e é com mãos nos bolsos 
que me aponta 
o dedo. 
 
De mão dada com 
o meu saco plástico, 
não me mexo. 
 
De olhos fechados 
conto até três 
(como Ele pede) 
mas é ponto 
assente:
Pulverizados podem 
seguir outros corpos 
em nuvens isentas 
financeiros túneis ou 
vias rápidas mas 
face ao ultimato 
não concedo 
 
Penso em nós – 
súbditos amantes 
no fundo do 
saco de polietileno – 
e simplesmente 
 
não desapareço.