As Aventuras do Senhor Lourenço (§28 nas nuvens)

Alfred Stieglitz, 1925

(cont.)

A inspectora considerava-se uma nostálgica, vivia a utopia e a esperança ao contrário. Como o passado mítico remete sempre para uma ordem harmoniosa, tendia, por vingança contra o presente, a castigar severamente os incumpridores da educação, professores falhados, indolentes, maltrapilhos, estúpidos, no máximo estultos... Formavam uma galaria de informes que deviam ser expulsos do ensino. Frutos podres da decadência actual, sem valores fortes e precisos. Por isso, apesar da cordialidade, aprendida no convento mais do que no mundo secular, com que tratou Lourenço, soube desde o início que lhe daria um castigo pesado. Tanto mais que ele tivera todos os deuses do seu lado para formar uma referência ética na classe dos professores, banir os maus olhados e o desdém com que metade da população vê, impulsivamente, aqueles que ensinam e, sobretudo, avaliam, às vezes arbitrariamente é verdade, gerações de neófitos sem vocação para anos de aplicação monótona a troco, muitas vezes, de um emprego mal pago e com pouco sentido. Lourenço comentou comigo logo no início que a inspectora tinha uma vontade grande de parar o tempo, parecia-lhe ver nela a insegurança dos que não sabem envelhecer, dos que ao olhar para diante antecipam apenas rugas, sofrimento e morte. Tanto mais que uma pele de Branca de Neve indicava que veria no bronzeado mais uma futilidade da nossa época. E como se sabe, bronzear é um dos principais passatempos sérios dos portugueses. Era, portanto, contra o Portugal presente que a inspectora agia. E Lourenço fora uma amostra do país, com a sua falta de rigor e coerência assustadoras na narrativa de heroísmo que, voluntária ou involuntariamente, constituiu.

– Dois meses suspenso sem ordenado! Dois meses? Injusto, totalmente injusto, arbitrário, infundado. – Lourenço continuou a desfiar acelerada e ininterruptamente um conjunto de asneiras que não pertenciam ao seu vocabulário. Pergunto-me onde terá ele aprendido esse jargão de taberna, e por que razão usá-lo agora. Nada havia a fazer, e não me pareceu útil, disse-lhe mais tarde, destilar toda a sua frustração ao pé da Directora, que devia estar mais satisfeita do que um leão depois de comer a presa.

Tudo em vão. Foi para casa, na verdade um quarto arrendado numa casa velha da Duque de Loulé, escadas sem luz, soalho com buracos, teto com várias marcas de inundações, e uma senhoria que “queria companhia” enquanto via a novela da noite. Lourenço feito refém das circunstâncias que ajudou a criar. Daí que uma energia negativa ganhava cada vez mais o seu ser. Fui lá um dia com o Joaquim e saímos deprimidos. Nós que compreendemos muito bem o niilismo, assustamo-nos com o poço sem fundo onde Lourenço tinha caído.

[fico agora na posição de narrador omnisciente, mas compreendo que duvidem do que vou dizer]

Por seu turno, como quase sempre depois de castigar, a inspectora sentia-se harmoniosa, sensual, quase bela. Mas desta vez havia uma pequena insegurança que a consumia. Continuava a amar antes de tudo as nuvens de Stieglitz e os céus de Turner, era lá em Cima que estava a sua ambição, agora sem a presença de deuses parecidos connosco. Um amor sem condições, como, por curtíssimos períodos, tinha tido por Deus, não o do Universo desencarnado, antes pelo seu filho, pregado na cruz, abdominais exemplares e a beleza facial triste, apropriada à dor sobre-humana. O belo símbolo do bem. Apesar desta espiritualidade, permanecia nela o prazer eléctrico que vinha do poder que tinha por ser inspectora, sabia-lhe bem infligir um certo medo. Mas o processo de Lourenço tinha mudado qualquer coisa nela, às vezes parecia ver parcelas da sua figura desenhadas nas nuvens. Nada de muito claro, pequenos indícios que provocavam micro-inquietações. Perguntava-se, talvez pela primeira vez, se teria sido justa, se aquele colega, desfeito pela incapacidade de corresponder às exigências do heroísmo, conseguiria aguentar mais esta desfeita. Além do mais, sabia que tinha dado um enorme prazer à parvinha da Directora, cheia de si dentro da maior das vacuidades.

Decidiu, por isso, ir a casa de Lourenço.

Animais políticos numa sexta-feira à tarde: Algumas notas

1.    Há uns meses que ando a ler o jornal sem pagar. Ao fim do dia o rapaz na estação de comboio simplesmente não quer saber. Depois das quatro da tarde os jornais são apenas mais uma das tarefas que o esperam antes de fechar o estabelecimento, que, como todos os cafés de Inglaterra, fecha cedo, deixando a estação aos cães, aos últimos passageiros do dia e à indolência de carruagens que se alongam por estações cada vez mais desertas. É na fantasmagoria das estações de comboio deste país que melhor se entende o amor que une Inglaterra a um dos géneros literários nacionais, os romances policiais.

2.     O verão em Inglaterra pode ser mais ou menos insuportável, mas sobretudo mais ou menos inexistente. A meteorologia entra no mais completo descontrolo, como um barómetro avariado. A ilha simplesmente não foi desenhada para suportar o calor, são precisos vários dias de chuva para que se produza um dia quente, a que imediatamente sucede, claro, mais água. Foi Karl Ove Knausgaard quem escreveu, no primeiro volume de A Minha Luta, que os humores humanos são como a meteorologia, estão lá sempre, não é possível livrarmo-nos deles, a que se devia acrescentar que há uma ligação indelével entre humor e meteorologia, que quanto mais solar ou mais cinzento o tempo, assim de vez em quando o temperamento.  

3.     O humor é a atmosfera da empatia. Actos básicos de gentileza serão repartidos pelos dias segundo as flutuações desta moeda. Virtude (palavra que talvez só exista em sentido moral) é controlar o humor. Ausência de controlo resulta ou em injustiça ou em poesia ao género da do neo-romantismo, ao gosto de um Feliciano Castilho ou Bulhão Pato. Sabiam-no os estóicos e os epicuristas. Dois sistemas filosóficos, de resto, para os quais nunca tive muita paciência, sobretudo por me parecer que estão desenhados para contradizer os impulsos vitais mais básicos, que alguma coisa neles traduz avant la lettre a lógica de pecado e punição do catolicismo, e mesmo que isto não seja certo, T.S. Eliot tinha razão quando escreveu que o passado é constantemente alterado pelo presente, a nossa leitura dele pelo menos. Assim a minha embirração com os estóicos, olhando para eles depois de Cristo. Manter o nosso humor sobre controlo, sim, mas até isso com moderação.

4.     O moderado rapaz da banca do jornal, no entanto, tem um trabalho difícil e de um modo geral pouco apreciado. Por exemplo, não é raro trabalhar turnos invulgarmente longos, desde as seis da manhã até às seis tarde. Não é fácil aturar os transeuntes desta estação, dos adolescentes de uniforme aos ocasionais skinheads da English Defense League, consumidores de cerveja às 7 da manhã. O rapaz da banca de jornais, no entanto, parecendo que não, a sua vai tornar-se para mim uma dessas presenças silenciosas com quem se troca poucas palavras de cada vez, e que no entanto se sabe que, quando olharmos para trás, essa mesma presença há-de voltar como uma espécie de símbolo de toda uma época da nossa vida. Afinal, ele tem estado aqui desde o primeiro dia.

5.     O rapaz da banca do jornal reparte pequenos actos de gentileza pelos dias, de que deixar os passageiros ler os jornais que sobram ao fim do dia talvez seja apenas uma manifestação ínfima. A rotina das cidades condensa isto: há estranhos que se nos vão tornando cada vez mais familiares. Quando um de nós falhar este breve encontro diário, o outro notará essa ausência. O que permanecer há-de atentar na instabilidade introduzida pela ausência do outro.

6.     O futuro são as pessoas que comparecem às suas rotinas diárias. Nem tudo numa rotina é anestesia da repetição. Tudo o que se repete pode deixar-nos em guarda para a repetição excessiva. A banalidade de alguns gestos prepara o dia seguinte, traz o capítulo seguinte. O tecido das sociedades em que vivemos, o nosso conhecimento dos outros, assentam no reconhecimento prévio desse guião. A maior parte dos trabalhos que nos rodeiam são mais ou menos invisíveis.

7.     Parte da minha rotina implica esta estação de comboio e, assim, encarar mais ou menos diariamente com as primeiras páginas dos tabloids britânicos, o que garante que raramente me falta uma dose diária de indignação. Todos os jornais na Grã-Bretanha, do The Guardian ao Daily Mirror são abertamente facciosos.

8.     Talvez nada tenha clarificado este ponto para lá de qualquer dúvida como o período que antecedeu o referendo que ditou a vitória do Leave. As intenções de voto podiam ser facilmente previstas pelo jornal debaixo do braço. Boa parte do que se confunde ou não se confunde com jornalismo neste país serviu para ditar que esta votação não foi produto de uma reflexão sobre factos, mas sobre emoções, com a raiva e o descontentamento a explicar que se pudessem encontrar nas caixas de comentários de jornais pérolas como: “I’m voting leave: Muslims out!” Ou o meu prazer culpado de ler as crónicas da Marina Hyde no The Guardian, com a certeza de que aquela que esta colunista dedica ao último dia de Cameron no Parlamento foi escrita para mim, nemesis por outra manhã numa página de Orwell.

9.     Não que não haja margens para a surpresa, como encarar com a primeira página do Daily Mirror no dia anterior ao referendo, e ver a versão mais populista de um slogan a favor do Remain que nenhum partido de esquerda neste país se atreveu a cifrar: for your jobs, your NHS, for your children. Quoque tu, Daily Mirror?

10.  Nada me deixou entender tão amplamente as reservas que Platão mantém em relação aos poetas na República como a actuação dos políticos pro-Brexit nesta campanha, no sentido em que bons autores de ficção, poetas do calibre de um Farage e de um Boris Johnson, serão sempre bons a manipular as emoções dos cidadãos. É o grande ponto fraco da democracia. Uma explicação ética dos factos, segundo Aristóteles, bastaria para compensar esta limitação. Esta campanha demonstrou que basta as falsas opiniões circularem livremente, sem um contraditório que as prenda aos factos, para um milénio de fé na capacidade dos humanos para o bem ruir como um castelo de cartas. Penso que não deve haver teoria moral que sobreviva a um descontentamento podre em que um populista possa tocar com um dedo. Os mais pessimistas entretém comparações com a Europa dos anos 30.  

11.  Há um elo entre a banalização de tudo e a hegemonia da opinião sem factos que explica a ascensão (e esperamos que a queda) de um Donald Trump, de uma Marine Le Pen, de um Boris Johnson ou de um Nigel Farage. A opinião e o oportunismo dependem ambas de curtos intervalos de tempo e servem para alimentar o barulho que para os mais manipuláveis (ou os mais dispostos a serem manipulados) limita todo e qualquer espaço que pudesse ser dedicado a uma séria reflexão. A falta de tempo que nos instrumentaliza em casa e no trabalho é também parte deste problema. Quanto menos tempo mais raiva e menos reflexão, mais expostos nos tornamos ao populismo e ao oportunismo.

12.  É possível entender o descontentamento que a União Europeia provoca e não é algo que vem de hoje. Pode-se invocar a crise dos refugiados, ou recuando um pouco mais, a fraca resposta à ocupação da Crimeia, num país que afinal se manifestou pro-UE, ou a austeridade, ou muito antes disso, invocar lugares agora mais distantes, algures na Sérvia e na Jugoslávia. Surpreendentemente, nenhum destes argumentos ditou o resultado desta campanha, na qual de resto não se conduziu uma reflexão atenta acerca dos muitos problemas da UE hoje, uma que explicasse para lá de qualquer dúvida porque é que o caminho social e político aberto pelo Brexit seria tão mais preferível (sabemos agora que se ignora mais ou menos totalmente o que é este caminho ao certo). Onde as sondagens se viraram indecisamente para o não foi quando a emigração se tornou uma questão no referendo e, ligado a esta, o falso argumento da soberania. Mas a Inglaterra mantém-se um país soberano, com um parlamento com o poder de chumbar ou aprovar leis, e, até ver, o poder de controlar a sua emigração era mais forte enquanto estado-membro. É bastante improvável que a Inglaterra mantenha acesso ao mercado livre da União Europeia sem aceitar a livre circulação de pessoas. O último encontro entre May e Hollande parece confirmar esta ideia. Aí a grande mentira do Leave. Quando ouvimos Marine Le Pen em França descrever isto como uma vitória da democracia (uma vitória de 52% aliena apenas 48% da população de um país), sabemos que o populismo bateu tudo o resto aos pontos. 

13.  A banalização de tudo, que está ligada a esse furor da opinião que não questiona os factos, tem outro shortcoming, talvez mais preocupante do que os enumerados acima: é que arrasta a nossa empatia pela lama, torna-nos menos dispostos à gentileza sem a qual o mundo seguirá sendo a selva onde os fascistas de hoje, alguém como Trump, Le Pen, ou Farage, serão os últimos guardas da fronteira para lá da qual jaz tudo o que nos é alheio e que por isso deve ser exterminado ou deixado para morrer nos muros. É o movimento de nos virarmos para dentro, de irmos sendo cada vez menos cosmopolitas, que deixa adivinhar o fantasma do nacionalismo a pairar sobre a bandeira do patriotismo. Os patriotas que orquestraram o Brexit, com falsas promessas de mais dinheiro para o NHS, de resto, reconheceram todos a necessidade de correr de volta ao lar, abandonando a cena apressadamente  

14.  Na sexta-feira, 15 de Julho, encaminhando-me para a banca de jornais, paro e atento na capa de um dos tabloids. É tão conspícuo porque a imagem ocupa a capa toda. A princípio parece ser a estreia do filme da semana, um qualquer melodrama hollywoodesco, mas é uma fotografia tirada no passeio em Nice, na noite anterior, que atinge os transeuntes sem aviso. Vê-se um jovem casal estirado no pavimento, só um deles vivo. Uma imagem tirada de um pesadelo atirada para a banalidade sórdida de fazer vender tantos jornais quanto possível.

15.  Os últimos passageiros abrandam por instantes e seguem na indolência vagamente contente de sexta-feira à tarde para os vagões que os levarão às suas casas. Levinas escreveu, algures em Ética e Infinito: Entendo a responsabilidade como responsabilidade por outrem, portanto, como responsabilidade por aquilo que não fui eu que fiz , ou não me diz respeito; ou que precisamente me diz respeito, é por mim abordado como rosto.

 

Oxford, 19 de Julho de 2016

Diferente em tudo da esperança

Pintura de Eric Zener.

Pintura de Eric Zener.

Terapia, que terapia.  Gatafunhava e apagava, mascarrava a palma da mão e os dedos e a cara, amassava o papel, as palavras falhavam o alvo, atirava folhas ao chão, rosnava bosta de cavalo, escrita de bosta, atulhava de fanicos o quarto da cachopice, roía tampas e canetas, os dentes faziam tic-tic-tic no plástico, escrevia, aquilo não era escrever, grafava uns traços com a ponta da bota, parecia que era da ponta da bota que os rabiscos desabrochavam, e o que se lia no caderno mal abrangia um drama existencial sentido como intransferível para códigos linguísticos: «Se não te vir mais, quero que saibas que te adoro.» Se, horrorosa combinação, estafava começar frases com se. E o adoro, tão meloso. Pensava na separação. «Se um dia me deixares.» Mais uma folha a voar pela janela, pateta. Teria dado jeito aprender a escrever. Se e se. «Se me abandonares, dou um tiro na boca.» Radical, radical seria premir o gatilho sem conversas prévias, evitar teatros. «Salto da ponte.» Jerico. Saltaria da ponte e subiria a serra de bicicleta e rezaria o terço e fornicaria as beatas no fim da missa. Mastigava o papel, mandava as gavetas da escrivaninha contra o estrado da cama. Até a falar para dentro mentia. «Por ti emprego-me nas obras, carrego baldes de cimento. Ver outras mulheres é como ver nenhuma.» Frases de chachada. A cunhada. Pausa para amaciar os testículos. Amava-a e amava a namorada e a sogra e a si próprio, amava e odiava, se calhar odiava mais do que amava, não distinguia sentimentos. Amar. Odiar. Sublinhava, torcia o nariz, os vocábulos sabiam-lhe a algodão doce, a enjoo. Era impossível afastar uma fêmea de perna aberta a disparar ordinarices. Não resistia. Não fazia o esforço. A cunhada a rasgar as meias, as cuecas, a pedir uma demão de vermelho nas unhas, a encaixar nua no macho sentado na sanita. Dizer que não. Que viesse outro e recusasse o filete. «Tu és ela e ela és tu e eu sou as duas e os três somos o mesmo, a soma dos três dá um, na hora da morte seremos pó misturado num balde, e se não estivermos os três a planta seca.» Outra folha rasurada. Plantas secas em vez de peito, de tambor. Parras em vez de tum-tum-tum.  A parra murchou. Substancial alteração. O pénis murchou. O pénis murchou, deu um nó e explodiu. Escasseavam escribas de gabarito, eram tão raros que não escreviam. Dava voltas na cadeira. Não transpunha os sentimentos para o papel, ora que bela terapia. Exercitava a caneta: «Somos as estações do ano, frio, calor, nervo, tremuras.» Que fracasso, a beleza interior esquartejada no papel. Soava ridículo. Somos as estações. De modo nenhum. «A distância assusta, gostar de ti, ires para blá, blá, não te blá, blá, a distância é pânico.» Palha. O tal falhar melhor. Falhar pior. Dizes que te afastas, abres essa possibilidade. «Se não te vir mais. Perguntei se gozavas e disfarçava o pálido incómodo. Conheci-te ontem. Sofia, o meu passado, absurdo, nem tem cabimento mencionar o passado, coisinha deprimente. Não me canso de ti, não me canso da tua irmã. Não me arrependo, não sei quem sou, assalta-me esta dúvida, não sei quem sou, vocês assemelham-se a mim, respiro em ti, nela, pertenço aqui e ao universo. Não saber quem sou, nunca soube, a minha luta deveria ser descobrir-me primeiro, amar-me primeiro e depois aos outros. Ando de olhos fechados. O avião despenha-se no oceano, perde-se a vida, estou de olhos fechados, o autocarro atropela-te, definhas na calçada, não reparo, não compreendo, não fui a tempo de merecer outra coisa para além da culpa. Cercado por quilómetros de mar.» O cidadão universal compunha a gola da camisa, clareava a voz com um escarro e rescrevia cidadão universal, cidadão anão, ninguém. O que de bom acontecia, e era tão pouco, vinha com atraso. As mulheres não escapavam à regra. Duas décadas ou, mais precisamente, três décadas de virgindade atestavam a demora. Trinta anos agarrado à mão, a salivar por rabos e seios fugidios, a acenar à dama do quiosque, adeus, vais tarde, a assobiar à vizinha do cabelo caracolado, comia-te toda, comias nada. Trinta anos a cambalhotar na penumbra. Esquecer os problemas, a infância, a mamã. Renascer. Não mostraria a carta, não existia carta. Retraçava. Comia. Palitava papel. Escrevera mas escrever era transcender a parte animal, prescindir da parte bruta, talvez não tivesse escrito, aquilo não tinha relação com a escrita, gatafunhos, migalhas.

 

 

 

 

 

14 De Julho

Hoje, na varanda, enquanto engolia uns goles de sake à uma e meia
De uma noite clara do norte e olhava a bandeira orgulhosamente
Pendurada na varanda de emigrante, lembrei-me das primeiras bandeiras
Da minha vida, penduradas no posto da Guarda Fiscal e na aduaneira
Antes da ponte onde o meu pai comia as refeições quentes envolvidas
Em panos de cozinha que eu lhe levava, com os meus cinco seis anos,
Ele um herói de pistola à porta de Portugal, uma casa grande
Com cheiro a eucalipto e uma língua como a que se falava em casa,
Eu na altura era contrabandista de pastilhas elásticas e iogurtes,
Lutando contra a corrente do ribeiro para salvar os fantasmas
De plástico, brindes de um cromo premiado, caça-fantasmas,
Tinha a caixa de fósforos quase cheia de fantasmas minúsculos,
Todos corrente abaixo, menos eu, e do outro lado a senhora
Da mercearia galega uma língua igual à do Son Goku dobrado,
Nada de bandeiras nas pedras da ribeira que hoje atravessaria
Em três passos, hoje que um pontão e na ponte nem um bivaque,
Só o fóssil de um brasão de um lado e de outro, neste ano
Que ameaça tudo e mata mais os que de olhos no céu
Festejam a liberdade como se fosse algo que ainda exista,
Hoje, olhando uma bandeira, estrangeiro aqui como em todo lado,
Como a própria bandeira, a mesma daquele tempo em que
Ia ao pão com cem escudos e já era grande, e as couves cresciam
Apesar dos caracóis enormes e dos bolsos vazios de fantasmas,
Tão cheios de medo, não daquele medo da gabardina pendurada
No quarto onde dormia num divã, um medo de fogo-de-artifício,
Um medo de me distrair na felicidade num momento e ser
Engolido na loucura anónima que nos leva a erguer muros onde bandeiras.

15.07.2016

Turku

As Aventuras do Senhor Lourenço (§27 senhora inspectora)

(cont.)

A inspectora nomeada para o processo do Lourenço andava na casa dos 50, saia-casaco imaculado, camisa branca a deixar entrever a zona dos seios ("velho truque feminino", pensou Lourenço), maquiagem perfeita, sapatos fechados com salto alto, cabelo pintado de louro. Algum ouro no pescoço, uma pulseira, dois anéis e um Smartwatch da Apple completavam a toilette. Era, sem sombra de dúvidas, a mulher mais bela na escola, tinha aterrado ali, porém, para julgar e provavelmente castigar. Daí um sorriso que nunca desfazia a ambivalência, pondo os interlocutores à distância. Os inspectores, sempre achou isto, deviam ser mestres da distância.

Só falou com Lourenço 2 ou 3 dias depois de ter chegado. Foi no intervalo grande das aulas da manhã. Questão de marcarem, disse a inspectora, o “modus operandi” das audições. Ficou agendada uma sessão por dia, às 18 horas, durante  uma semana. Entretanto, ouviria alunos e pais, tendo já registado a versão, ou versões, da Direcção. Tudo muito eficiente, e isso deixava Lourenço mais descansado, a eficiência era a sua principal adição, não por qualquer impulso irracional, mas porque lhe parecia que continha sempre mais bem do que mal, preferia este critério moral do que as velhas regras que resultam sempre da cosmovisão dos grupos dominantes e, de uma ou de outra forma, impõem obediência e sectarismo.

A inspectora chamava-se Matilde, o nome fora-lhe dado muito antes de estar na moda, na altura era um nome de aldeia. Lourenço soube mais tarde que ela tinha fugido da miséria e do isolamento de uma aldeia beirã mostrando inclinação para servir a Deus num convento de freiras. Uma vocação oportunista, como aconteceu tantas vezes em Portugal. As regras espartanas e o hábito das leituras sagradas no convento tornaram-na uma excelente aluna, formou-se mais tarde em História na Universidade Clássica de Lisboa, com a média mais alta do seu ano. Foi professora durante quase duas décadas, sempre a mudar de lugar, até que concorreu para inspectora de educação, e ficou. Nunca se casou nem foi prolífica nos namoros, era demasiado rígida para seduzir os colegas. Além disso, nas escolas a desproporção entre feminino e masculino é tão grande que o melhor para as senhoras é irem pescar fora de portas. Com tanto por onde escolher, os pouco colegas interessantes apostaram noutras, mas talvez se tenham enganado, a inspectora era agora uma mulher em forma, apetitosa, quase femme-fatal, enquanto muitas das colegas que a tinham vencido há 25 anos ganharam pelo menos 3 barrigas, 20 quilos de gordura e já não se importavam com a roupa ou o penteado. Aliás, parte delas estava divorciada, e só um vibrador lhes podia dar alguma prazer sexual. É verdade que neste aspecto também a inspectora não sabia o que era um pénis há muito, mas se quisesse passar pelas chatices do engate longo, e não apenas levar com um macho apressado em cima dela depois de uma noite de copos, teria facilidade em acasalar, sexual e socialmente. Sentiu esse apelo algumas vezes, mas retraiu-se sempre, pesados os prós e contras, concluía que era melhor ficar quieta, redimindo-se com os sex-toys que tinha na mesinha de cabeceira, comprados nos últimos 10 anos, sempre durante os saldos, a maioria na Amazon. Tinha vários pénis de fantasia, dos mais realistas aos vibrantes e com câmara incorporada (gostava de ver as entranhas), objectos de alta tecnologia, com materiais amigos do ambiente, polidos até ao liso quase metafísico. A inspectora levava a masturbação a sério, encenava a peça sexual ao pormenor, onde o parceiro imaginário se portava à altura do seu desejo e caprichos. Os preliminares, feitos com um diálogo onde contava ao parceiro os seus principais fetiches (ser batida e insultada, sexo anal e oral, receber o sémen na cara), iniciavam a linha ascendente da excitação, cerca de 15 minutos depois estava húmida e começava a penetrar-se, primeiro na vagina, depois no ânus (preferia estes termos aos do jargão vulgar da pornografia). Cerca de meia-hora depois tinha o primeiro orgasmo, por vezes incontrolável. Seguiam-se mais 4 ou 5, geométricos, libertados no exacto momento em que atingia a máxima intensidade, uma espécie de explosão, ou implosão, controlada. Esta segunda leva era conseguida quer pela vagina quer pelo ânus. E pronto, um banho e atirava-se ao romance de cabeceira, ultimamente a reler os “clássicos dos clássicos” (Ulisses, Crime e Castigo, A Procura do Tempo Perdido e O Homem Sem Qualidades), à vez durante a semana, conseguindo não misturar as histórias ou os estilos. Uma leitora pós-moderna num corpo sexuado claramente moderno.

– Colega Lourenço, vamos lá então perceber o que se passou.

– Claro, senhora inspectora.

– Trate-me por Matilde, por favor.

– Com certeza.

– Comecemos pelo contexto: dia, aula e turma, pode ser?

– Claro.

Lourenço desenrolou o fio do novelo, guardado com objectividade na sua memória. Não lhe custou muito, e depois de se ouvir achou que a inspectora só poderia absolvê-lo.