Um excerto de «Impunidade»

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« Avançámos até ao fim da avenida e continuámos pela cidade velha. Demorei a encontrar a saída. À medida que avançava, o carro mergulhava num dédalo de ruas estreitas e sentidos únicos, onde cada opção parecia conduzir a um interior mais profundo, a uma rua ainda mais apertada, a um lugar mais distante de qualquer princípio de organização. O rapaz olhava alternadamente para mim e para as ruas que diante de nós se iam contraindo, com os muros cada vez mais colados às rodas do carro. Via-me prosseguir pelos empedrados, hesitar nos cruzamentos, continuar nos sentidos obrigatórios. Fixava o fim da rua, parecendo duvidar que o carro aí coubesse, voltava-se para mim. De um lado e do outro, paredes brancas, janelas com grades, portas fechadas. Levantava-se no banco e espreitava para trás, como se suspeitasse que a única saída viável fosse meter a marcha atrás e refazer, invertido, o percurso que ali nos conduzira. Metro a metro, centímetro a centímetro. Refazer o caminho, refazendo as dúvidas e as hesitações, e assumindo o erro de ter pretendido optar onde não havia opção. Tarde ou cedo acabaríamos numa rua barrada por um muro caiado. Continuámos ainda durante mais vinte minutos. Um percurso circular. Reconhecia as ruas, os edifícios, os empedrados. Por fim, ele sugeriu que deveríamos parar e perguntar a alguém. Respondi-lhe que não perguntava.
«Nunca.»
Acenou com a cabeça. Talvez compreendesse. Acelerei. Minutos depois acabámos por desembocar junto do rio, não muito longe da ponte romana. Nenhum de nós disse nada. Contornámos os bairros antigos e apanhámos as avenidas novas. Duas faixas em cada sentido.»


Impunidade  (Relógio d' Água, Lisboa, Junho de 2013), de onde foi extraído o excerto que aqui se apresenta, é o mais recente livro de H. G. Cancela

2 grados de más

a César Rina
 

Estar enfermo es mantenerse en alerta. Es estar doblemente vivo

para afrontar lo que vendrá.
La poesía es estar enfermo. Imagino que esto lo dijo antes algún escritor.

Yo lo escribo con fiebre, en la cama, 2 grados por encima de la realidad común, literalmente enfermo. 
Lo ven, todo queda reducido a palabras. Un cosmos mínimo que te besa en la frente 
cuando nos dejan solos.
Ahora que lo recuerdo, Bolaño escribió sobre la relación enfermedad-literatura.

Pero él estaba verdaderamente enfermo y, de la misma manera, doblemente en alerta. Por eso su lucidez discutía a menudo con la realidad que está por debajo

de los 37 grados.

La poesía que concibo aparece en los mapas rodeada de países y, aún así,

con salida al mar. Sus tesoros corretean por debajo de su extensión

como cangrejos bajo la basura que flota  en los océanos.

La fertilidad de su pueblo es la fertilidad de su selva. 
En cada palabra, todo lo relacionado con el más allá está unido con el más acá. 
Los delirios de su imaginación son el desayuno para los campeones. Pero no les miento,
de ese plato nutritivo come todo el mundo.

Dicen que nada está escrito hasta que lo está. La poesía que contemplo
vive en el primer estado. Lo demás es lo que se vende en las lonjas,

en los escaparates, lo que traen a los puertos industriales los buques

de más de cincuenta metros. Por qué contar otra cosa.
Aquí los animales expulsados del reino animal y todas las demás especies
pisotean los mismos pastos y se manchan por igual de barro los bajos del pantalón. Repito, nadie queda excluido de esta casa si trae en la boca

un puñado de buenas intenciones.
Aunque para estar enfermo no sea suficiente con decir, este es mi cuerpo.

INTERMITÊNCIA, Linguagem, Perspectiva, Oxímoro e Arte

254. INTERMITÊNCIA

Todos lhe diziam que falava demais, que devia ouvir-se, mas ele não ouvia ninguém e continuava a falar, a falar, a falar. Um dia, nunca soube bem porquê, calou-se e ouviu-se finalmente a si próprio. Percebeu então que eles tinham razão, e disse-o a todos, um a um, para que soubessem que assim era, uma, outra e ainda outra vez, sem parar.


277. LINGUAGEM

Queria ser o melhor, mas cedo percebeu que não era suficientemente bom para ser o melhor entre os melhores; e o mesmo quanto a ser o pior, porque também não era suficientemente bom para ser o melhor entre os piores, que o mesmo é dizer o pior entre os piores. Decidiu então que seria o melhor dos medíocres, o que penso que conseguiu ser, senão o melhor, pelo menos um dos melhores, porque a maioria esmagadora dos medíocres não é mais do que isso, e ele poderia, sem dúvida, ter sido melhor, muito melhor, o que julgo que afinal lhe aconteceu.


301. PERSPECTIVA

Irritava-se por tudo e por nada e, por mais que tentasse, não conseguia mudar, no entanto, um dia sentiu-se sereno, extraordinariamente sereno. As pessoas começaram a fugir dele, dizendo que estava morto, mas ele sentia-se bem, extraordinariamente bem.


325. OXÍMORO

O poema é uma prática de silêncio. O poema, como cada uma das suas palavras, tem sempre um lado de fora e um lado de dentro. O poema nunca é parte de coisa alguma, o poema é sempre um todo. 
Ele sabia que assim é. 
Ele sabia
que só o grito do poema 
permite
verdadeiramente
ouvir o silêncio
que sempre o compõe.


351. ARTE

Subiu ao palco e imobilizou-se à boca de cena, olhando o público, um sorriso tímido a aflorar-lhe o rosto pálido. Quinze minutos depois nada mudara, com excepção da agitação crescente do público que, pouco a pouco, ia abandonando a sala, soltando impropérios e risos de escárnio. Quando ficou sozinho o homem fez uma pequena vénia e saiu sem pressas pela direita.

Amarilla

Naciste tierra en tu isla,
tierra de almendro humedecida.
Cuando llueve sudas lágrimas,
de río, aparición y pecas;
cuando no te riegan,
cicatrices de color en la quimera.

Yo te quiero, tierra, amarilla
y siempre tierra,
infinita, luz y calma,
que respiras y me besas.

Yo te sueño, amarilla,
liviana y habanera,
con el fuego de volcán antiguo
que agoniza en tu ladera.

Vencerás,
(si esperas)
amarilla tierra.