A importância do não-dito

Hölderlin concluiu a sua obra aos 30 anos

Hölderlin concluiu a sua obra aos 30 anos

Há um artigo/ensaio de Steiner que acho delicioso (delícia de ideias, como temos as delícias do mar), na tradução portuguesa (Miguel Serras Pereira) chama-se “O silêncio e o poeta” e pode ser lido em George Steiner. Linguagem e Silêncio, Ensaios Sobre a Literatura, a Linguagem e o Inumano (Gradiva, 2014).

Confesso uma admiração sem condições pela escrita de Steiner, recai-a sobre mim, pois, a suspeição de um aficionado embasbacado pelo que o entusiasma. Contudo, sou também um veterano da leitura (como do ténis), e pouco dado a fixações. Se gosto de Steiner é muito mais pelas suas qualidades intrínsecas do que por um capricho subjectivo (haverá caprichos objectivos?).

 A centralidade do texto trata das virtudes do não-dito, o palavroso ou cai na banalidade ou num excesso de tipo fáustico. Para chegar aí, Steiner assegura que desde o romantismo alemão, a palavra se foi submetendo à música. Wagner e Nietzsche, cada um à sua maneira, encarnam o ideal da supremacia musical. Revogada em parte a utopia da totalidade musical wagneriana, mantém-se, porém, “a ideia de que a música é mais profunda, mais inclusiva, do que a linguagem, de que irrompe imediatamente das nascentes da nossa existência”. A tese de Lévi-Strauss segundo a qual o compositor é um ser idêntico aos deuses (“un être pareil aux dieux”) prolonga Nietzsche (“A vida sem a música seria um erro”), o sucesso incomensurável de grupos musicais como The Rolling Stones, o tempo imenso que os adolescentes dedicam à música… Isto e pelo menos outro tanto demonstra o declínio da palavra.

Chegado a este ponto, Steiner muda ligeiramente de linha para, declaradamente, criticar o dizer excessivo, como se acusasse o uso pletórico da palavra de, entre outras coisas, ter aberto portas ao domínio da linguagem musical. A estratégia é destacar os autores que se silenciaram no momento certo, que não disseram mais do que deviam, e podiam. Hölderlin deu à língua alemã “uma densidade, uma pureza e uma plenitude de articulação formal inexcedíveis”. E tudo isto foi conseguido até aos trinta anos. Rimbaud escreveu Une Saison en enfer aos dezoito anos, e foi negociar armas para África, de onde enviou um “dilúvio de cartas”, mas sem uma linha que fosse de poesia. Neste caso, diz Steiner, o poeta abdicou porque julgou a acção acima da palavra. Kafka, por seu turno, que desejou explicitamente ver queimados os seus escritos não publicados (continuamos a felicitar Max Brod por ter sido infiel ao testamento do amigo), parece, refere Steiner, que deu ao seu estilo uma vitalidade onde “não há uma só sílaba antecipadamente garantida.” Este vitalismo obriga a palavra a seguir as leis da sobrevivência, banindo qualquer rodriguinho linguístico.

Estes exemplos supremos (Steiner faz alguma batota ao confrontar os mortais com os imortais) levam à conclusão de que as grandes obras têm pelo menos tanto de dito como de não-dito. Ora, já em 1966 Steiner achava que havia uma “massa de textos impressos, por entre os quais temos dificuldades em abrir caminho, desorientados”. E que “Uma civilização de palavras é uma civilização doentia.” A pressão para se produzirem obras-primas sobre obras-primas, “A proliferação da verborreia na investigação humanística”, a coscuvilhice, o “turbilhão de palavreado oco”, o excesso linguístico faz-nos suplicar pelo silêncio (forma, sem que Steiner o diga, de combater a efervescência musical): “O silêncio é uma alternativa. Quando a pólis transborda de palavras cheias de ferocidade e de mentira, não há ressonância mais intensa do que a do poema não escrito.” Era também o silêncio a arma mais temível das sereias, superior ao seu cântico, como nos relembrou Kafka.

É tempo, pois, de parar, peguem nisto à vossa maneira, eu vou abraçar uma árvore. Apesar de ter uma fé absoluta nas palavras.

Charles Bukowski, "o preço"

 

Tradução: João Coles

 

Bukowski durante uma emissão do programa  "apostrophes", em paris  (1978)

Bukowski durante uma emissão do programa  "apostrophes", em paris  (1978)

o preço

a beber champanhe de 15 dólares – 
Cordon Rouge – com as prostitutas.

uma chama-se Georgia e
não gosta de collants:
ajudo-a sempre a puxar
as suas longas meias pretas.

a outra chama-se Pam – mais bonita
mas sem muita alma, e
fumamos e falamos e
brinco com as pernas delas e
enfio o meu pé descalço
na mala aberta da Georgia.
está cheia de
frascos de comprimidos.
tiro-lhe alguns.

“ouçam”, digo, “uma de vocês
tem alma, a outra
tem físico. não dá para
misturar-vos as duas? pegar na alma
e enfiá-la no físico?”

“se me quiseres,” diz a Pam, “vai-te
custar cem dólares.”

bebemos mais uns copos e a Georgia
cai para o chão sem conseguir
se levantar.

digo à Pam que gosto muito
dos brincos que traz. ela tem
o cabelo comprido e dum ruivo
natural.

“estava a gozar em relação aos
cem dólares.” diz ela.

“ah,” digo, “o que é que me vai
custar?”

acendeu o cigarro com
o meu isqueiro e olhou para mim
através da chama:

os seus olhos revelaram-mo.

“escuta,” digo, “não acho que consiga
pagar esse preço outra vez.”

cruza as pernas,
puxa do cigarro

e assim que expira o fumo
sorri e diz, “claro que consegues.”

In Love is a Dog from Hell


the price

drinking 15 dollar champagne —
Cordon Rouge — with the hookers.

one is named Georgia and she
doesn’t like pantyhose:
I keep helping her pull up
her long dark stockings.

the other is Pam — prettier
but not much soul, and
we smoke and talk and I
play with their legs and
stick my bare foot into
Georgia’s open purse.
it’s filled with bottles of pills. I
take some of the pills.

“listen,” I say, “one of
you has soul, the other
looks. can’t I combine
the 2 of you? take the soul
and stick it into the looks?”

“you want me,” says Pam, “it
will cost you a hundred.”

we drink some more and Georgia
falls to the floor and can’t
get up.

I tell Pam that I like her
earrings very much. her
hair is long and a natural
red.

“I was only kidding about the
hundred,” she says.

“oh,” I say, “what will it cost
me?”

she lights her cigarette with
my lighter and looks at me
through the flame:

her eyes tell me.

“look,” I say, “I don’t think I
can ever pay that price again.”

she crosses her legs
inhales on her cigarette

as she exhales she smiles
and says, “sure you can.”

In Love is a Dog from Hell

Soneto Oxidado

 

O céu sob o qual nasci há vinte e oito anos
Começa agora a oxidar nos ângulos
E nas horas em que não estou atento
Uma mão surripia uma ave e desloca o vento
Arranca árvores onde os olhos perdem luz
A mulher despida entre os limoeiros já pouco me seduz
E a boca febril vai abatendo o gado
Um fio de baba faz leito no prado
A mão volta puxando as cabeças velhas à janela
Para as decepar e jorrar muita aguarela
Sobre crianças que começavam a perder o gosto
À luz que sobe de um fogo posto
E que queima os touros de papel quebrado
Num céu cabalmente oxidado