Yosano Akiko, "Dores de Parto"

Hoje estou doente,
doente no meu corpo,
de olhos abertos, emudecida,
estou deitada na cama de parto.

Porque é que eu,
tão acostumada à proximidade da morte,
da dor, do sangue, do grito,
agora tremo incontrolavelmente de temor?

Um jovem e agradável médico tentou reconfortar-me,
e falou sobre a alegria de dar à luz.
Uma vez que eu sei mais do que ele sobre esta matéria,
de que me serve o seu tagarelar?

Conhecimento não é realidade.
A experiência pertence ao passado
Que se calem então os que carecem de urgência
Que os observadores se contentem com observar. 

Eu estou sozinha,
perfeitamente, inteiramente, absolutamente entregue a mim mesma,
mordendo os meus lábios, segurando o meu corpo rígido,
servindo um fado inexorável. 

Existe apenas uma verdade.
Darei à luz uma criança,
a verdade movendo-se do meu interior para fora.
Nem bom nem mau; real, sem que haja nisto falsidade.

Com as primeiras dores de parto,
subitamente o sol empalidece.
O mundo indiferente fica estranhamente calmo.
Eu estou sozinha.
É sozinha que eu sou.

Trinta Anos, de Bruno M. Silva

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Ernst Ludwig Kirchner, Self-portrait as a Sick Person, 1918

Suponhamos que nada se sucede como esperavas.
Não te casas, não tens filhos,
o mistério não se acumula
e à tua volta cresce um dissimulado
vazio
a que te habituaste com os anos,
como água
que esfria em torno do teu corpo,
do corpo dos mortos, das flores de plástico.

Logicamente envelheces
e entendes necessário o ódio
para tamanha solidão.

No suceder das noites
os copos estalam sem ruído
por corredores que nunca atravessaste,
por cobardia ou conveniência,
mas que talvez ainda esperem,
como os rios esperam os suicidas,
os teus pés atravessando-os,
despidos de súbito de todo o abandono.

E lanças agora a prece a um deus
que talvez permanecesse
desde a infância,
mas que sem saberes lá ficou,
espiando altares derrubados
pela luz de uma certa clareza
que a esta hora te falta.

Os convidados
deixam também eles de aparecer.
A festa agora pertence-te,
e já te podes olhar dentro de todo este vazio –
já podes aclarar a voz com que dirás à morte
o teu nome.

28/09/20

Anne Sexton, "Velha"

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tradução: Bruno M. Silva

Tenho medo de agulhas.
Estou farta de lençóis de borracha e tubos.
Estou farta de rostos que não conheço
e agora parece-me que a morte começa.
A morte começa como um sonho,
cheio de objectos e do riso da minha irmã.
Somos jovens e caminhamos
e colhemos mirtilos selvagens
a caminho de Damariscotta.
Oh Susan, ela disse,
manchaste o tua nova cinta.
Doce sabor –
a minha boca tão cheia
e o doce azul acabando-se
a caminho de Damariscotta.
O que estás a fazer? Oh, deixa-me em paz!
Não vês que sonho?
Num sonho nunca tens oitenta.

Old

I'm afraid of needles.
I'm tired of rubber sheets and tubes.
I'm tired of faces that I don't know
and now I think that death is starting.
Death starts like a dream,
full of objects and my sister's laughter.
We are young and we are walking
and picking wild blueberries
all the way to Damariscotta.
Oh Susan, she cried,
you've stained your new waist.
Sweet taste –
my mouth so full
and the sweet blue running out
all the way to Damariscotta.
What are you doing? Oh, Leave me alone!
Can't you see I'm dreaming?
In a dream you are never eighty.

Adrienne Rich, "Essa Boca"

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tradução: Bruno M. Silva

Esta é a boca da rapariga, o sabor
que as filhas, não os filhos, logram.
Estes são os lábios, poderosos lemes
atravessando bosques de algas,
o sabor feminino, terrível e amargo
de todo o oceano e suas profundezas: é esse o sabor.

Este não é o beijo do pai, o da mãe:
um pai pode tentar sufocar-te,
uma mãe afoga-te para te salvar:
todas as transacções foram há muito decretadas.
Isto não é o conto de uma irmã nem de um irmão:
estranhos acordos foram há muito feitos.

Isto é o engolir, o brotar
do camarão e plâncton, essa boca
descrita como a de uma rapariga —
bastante para te dar a provar:
És tu uma filha, um filho?
Estranhos acordos foram há muito feitos.

1988

in An Atlas of the Difficult World, Poems 1988 - 1991

That Mouth

This is the girl’s mouth, the taste
daughters, not sons, obtain:
These are the lips, powerful rudders
pushing through groves of kelp,
the girl’s terrible, unsweetened taste
of the whole ocean, its fathoms: this is that taste.

This is not father’s kiss, the mother’s:
a father can try to choke you,
a mother drown you to save you:
all the transactions have long been enacted.
This is neither a sister’s tale nor a brother’s:
strange trade-offs have long been made.

This is the swallow, the splash
of krill and plankton, that mouth
described as a girl’s —
enough to give you a taste:
Are you a daughter, are you a son?
Strange trade-offs have long been made.

1988

in An Atlas of the Difficult World, Poems 1988 - 1991

O último comboio para Valongo

ao Pedro Braga Falcão
e ao João Coles

Seguem todos com um lugar na cabeça.
Um lugar pode ser um filho por nascer
uma mãe moribunda, uma taberna que
se abre sórdida ao nosso desejo em flor.

Seguem todos com o peso tremendo
dos lugares contra os vidros do comboio.
Lá fora a noite mostra-lhes os dentes indecifráveis
e sorri sobre o corpo morno da locomotiva.

Eu sigo dentro. Fecho os olhos diante
dos rostos que procuro arredar de mim.
Na solidão dos vagões abro os olhos para fora:

Não há caminhos, não avisto luz nas veredas
sob os montes há apenas as vozes dos lugares
e o peso que o amor faz sobre os trilhos.