Há uma descrição num poema de Luís Cernuda em que ele fala de uma coisa que talvez seja importante para perceber isto. O poema é sobre Cortez e os Pizarros e o narrador é um dos indivíduos que partem na armada de Cortez. O narrador conta como à medida que a embarcação se vai afastando da costa de Espanha ele vê a terra a afastar-se e fala do como sente ceder o nó que o liga à terra.
Os meus primeiros meses em Inglaterra envolvem uma história com Orvieto. Tendo ganho uma bolsa para ir estudar umas semanas para Varsóvia, num curso ministrado por uma horda de pessoas oriundas de países onde nos meses de Verão se cultiva o hábito de enfiar as peúgas e depois calçar as sandálias e vestir uma camisola interior sem mangas e aos furinhos por baixo das camisas, e que repetem nestes cursos coisas que escreveram nos longos invernos de Chicago ou Cambridge (Massachussetts), sucede que o período dessa bolsa bateu exactamente com o período de depressão que, para mim, se seguiu à cedência do nó que prende as criaturas que se afastam à terra-mãe (repare-se como as autoridades nos fazem sempre carregar o passaporte, essa réstia da corda, cordão umbilical). Por muito que eu tente outras descrições, eu estava tão entusiasmada a frequentar aquele curso como uma girafa numa piscina de areia movediça. Dividindo o quarto com uma académica que encheu as minhas noites com a descrição do enredo épico de reuniões de supervisão, influências e extenuante peer-reviewing que culminaria com a publicação do seu artigo (“The Semiotics of Hair in Second Temple Judaism”) numa conhecida revista de uma universidade britânica de topo, assim, cada uma de nós a transpirar em bica, de janela aberta e ventoinha ligada, como se fosse um Verão português, e com os ecos ocasionais das vozes das poucas almas que povoavam ainda a residência da universidade, quatro andares abaixo de nós na quadra de basquetebol, eu pude sentir-me completamente sozinha e no escuro.
Quando finalmente o silêncio foi caindo, eu tive a oportunidade de reapreciar os versos iniciais daquela canção de Caetano, “Terra”, quando ele diz que gente é outra alegria, diferente das estrelas. Isto é, apreciar a devida proporção de aleatoriedade com que habitamos o universo, essa ideia metade mágica, metade perigosa, de que qualquer coisa pode acontecer, mas sem a qual não dá para viver. Muito depois de a minha colega se ter calado e ser possível distinguir um fio de baba a correr-lhe da boca para a almofada, com algum cabelo pelo meio mas sem semiótica, eu cheguei-me à janela aberta, era agora noite escura e uma grande traça repousava num dos vidros, e podia ver-se as estrelas do leste, e eu pousei o meu queixo no mármore do parapeito à espera do tipo de frio que habita as pedras dos matadouros, e fiquei a ouvir o barulho do jogo lá em baixo, os gritos ocasionais, a bola a bater contra o asfalto. No bloco em frente um académico desapertava o nó da gravata, abria a sua janela, pousava uma cerveja no parapeito e acendia um cigarro.