Cinzentos São Os Outros

Os dias cinzentos não são tristes, triste é a cor da solidão rodeada por
Multidões de ilhas, afogando-se nas suas amarguras e medos,
Engasgando-se em sonhos inúteis e segundos estéreis tornados
Em avalanches de vazios, os dias cinzentos não são tristes e se
O inferno é cinzento, não é das nuvens, da neblina eterna,
Mas das caras que esperam, como num purgatório,
Que lhes acendam um sorriso ou a cor dos olhos,
O inferno não pode ser um lugar isolado, frio, para onde te enviam
Como castigo, é preciso alguém, muita gente para se fazer um inferno.

Aldan (sobre)

11.11.2015

 

Mais nenhuma foto

Mais nenhuma foto, de certeza que há suficientes. Mais nenhuma sombra de mim atirada pela luz para pedaços de papel, para quadrados de plástico. Mais nenhuns dos meus olhos, bocas, narizes, humores, maus ângulos. Mais nenhuns bocejos, dentes, rugas. Eu sofro da minha própria multiplicidade. Duas ou três imagens teriam sido suficientes ou quatro ou cinco. Isso teria permitido uma ideia firme. Isto é ela. Assim, sou aguada, enrugo, de momento em momento dissolvo-me nos meus outros eus. Vira a página: tu, a olhar, estás novamente confuso. Conheces-me bem demais para me conhecer. Ou, não bem demais: a mais. 

Margaret Atwood
Tradução de Maria Sousa

As Aventuras do Senhor Lourenço (§9 Lourenço Bartleby)

(cont.)

Aproxima-se o segundo acto desta tragédia (a partir do §11). Aí darei notícia de outro Lourenço, mais apetitoso, digamos. Por enquanto, obnubilado em relação à realidade, este homem médio passeia nas ruínas do tempo, sem conseguir entrar plenamente na relação dialéctica criação/destruição (e esta indiferença não lhe dá qualquer simpatia). Atacado pelo burnout que consome muitos dos humanos hipermodernos, Lourenço sente que a sua alma está esgotada, talvez tenha até nascido já esgotada (um não nascimento, aurora invertida).

[alguns perguntam pela identidade deste narrador, “quem é António Lisboa?”, ouve dizer-se um pouco por toda a Lisboa semi-culta. Mas como Foucault, “escrevo para me apagar”, para ser ninguém e fazer uma hagiografia pícara do meu amigo desaparecido. Além disso, não confio na ideia ou no impulso da arte pela arte, a literatura é para mim reflexão, ensaio. Em bom leitor de Martin Heidegger, sou um artista que desvela o seu horizonte filosófico, acreditando que o nada não é o contrário da existência, visto que está no seu centro. Assim, a criação assenta num vaivém entre o nada e alguma coisa, e cada autor trata de si. Mas posso dizer mais uma coisa: a inspiração surge de todos os lados, de todos os temas, de todas as coisas, até dos anúncios publicitários ridículos.]

Por enquanto, vejo similitudes entre Lourenço e Bartleby (magnífica e evanescente personagem de Herman Melville), também Lourenço está desprovido de mundo, nesta época onde tudo parece possível (já não vivemos na sociedade disciplinar de Foucault, somos impressionantemente livres), desde que nos empenhemos até ao tutano. Lourenço não quer fazer nada, não quer ser nada. Se lhe dissessem que ficaria invisível e intangível acharia isso uma boa solução. É verdade que nem sempre foi assim, já houve alturas em que alimentou a presença radical da amargura, quase abraçou um gang revolucionário de bairro quando aderiu a um pequeno partido “progressista”, teve até alguns rompantes que o fizeram levantar a voz, houve mesmo um dia em que esmurrou um palerma da direita teológica, vagamente deficiente físico e mental. Mas o esforço não valeu a pena, a quebra seminal do circuito vital imprimido por factores internos e externos (talvez por a mãe o proteger sistematicamente da estupidez violenta do pai) nunca lhe trouxe a saúde afirmativa que os machos normais possuem até aos 40 anos. Enredou-se, pois, numa subjectividade pseudo-trágica e experimentou escrever poemas no estilo de António Nobre. Lançado na realidade, foi-se adaptando, baixando, desviando, fugindo (quase se tornou um bom atleta do Desporto Escolar), escondendo, desaparecendo.

Arte do desvanecimento. Embora vigiado, Lourenço acredita que algo, talvez Deus, talvez o Diabo, o acompanha permanentemente, não para o guardar, mas para o acusar e pouco depois, numa celeridade anti-portuguesa, o castigar. Sem ecos não haveria vida singular, uma pessoa faz-se pelo que em si ecoa dos outros e de si neles. Em Lourenço ressoam todos os signos que desde os gregos significam, desenham a geografia do Inferno. Por seu turno, de si projecta-se a melancolia mais desoladora de que há memória.

– Então senhor Lourenço, é o costume?

– sim.

– Cá está, tem visto a Quinta?

– A Quinta?

– Sim, da TVI, não me diga que não vê televisão?

– Vejo, mas não os canais portugueses.

– Já que paga a taxa, aproveite.

– Não, obrigado, prefiro a FOX.

– Intelectuais...

– Não, só vejo séries policiais.

– Oh senhor Lourenço, não me dê música!

– Não dou, sou uma pessoa normal.

E assim por diante, no café ao pé da escola. A empregada é fresca, sem muito tento na língua, mas indicia uns belos seios (é por aqui que se amansam muitos homens). Lourenço passa lá frequentemente. Por nada em especial, nem pelo café. Necessita disso para pontuar o seu dia. E começou há pouco a matutar na possibilidade de lançar um piropo à Vanda, iniciado por: “A menina é atrevida, não quer atrever-se um pouco mais?” Talvez mais curto: “A menina quer atrever-se?” Não, demasiado subtil. Bom, era logo um: “Vanda, quer foder comigo?”

É isso mesmo, a frase vai ser dita (parece um imperativo cósmico). E Lourenço preparou-se para a negativa, e talvez o insulto vindo da indignação arrebatada de peixeira. Mas quando chegou o momento em que, embriagado por uma noite de insónias, lhe perguntou se queria foder, ela respondeu que sim, desde que recebesse uma nota de €100.

Lourenço emudeceu e tremeu, um técnica que o seu corpo usava para evitar algumas vergonhas.

– Então, sim ou não?

– Sim, €100, ok, está bem.

– Quando?

– Hoje, logo, onde mora?

– Aqui ao lado, Óscar Monteiro Torres, 27, 3.º Dto.

– A que horas?

– 9?

– Lá estarei, lá estarei. Mas não espere por qualquer redenção.

(cont.)

DIÁLOGOS SEM TÍTULO

NÚMERO UM

 

 

TATIANA FAIA
PEDRO BRAGA FALCÃO
(ao leitor competirá quem é quem)

 

Tenho uma sede de coisas que perduram,
umas são sérias, outras perdem-se mesmo.
Outras são tão sérias como o vento.
Mas outras perdem-se mesmo.

Como por exemplo:
os vivos que regressam enquanto dormes
vêm conversar contigo numa língua que não entendes.

Nunca percebes a língua que os mortos dizem:
estão desesperadas, as línguas,
mortas, como a transmissão
de um profeta dos anos sessenta.

A sua conversa é como o trabalho à tua frente,
será o que for sem mais beleza do que o improviso
e tu o que recebes tomas por paga
por alguma coisa muito tempo depois
como o sopro de um dia na tua cara,
de uma impressão?
De que estás em casa?

Enquanto não te calaste
perguntavas posso contar-te
entre os que podem pôr os pés no chão?
E continuaste a perguntar e a perguntar

Mas ninguém já põe os pés no chão.
Já não se usa. Está acabado.
Os pés usam-se para se matar.
Como se fazia na rádio.

Não. Espera. Usar. Tu usas-te.
E usas os outros todos os dias:
não as vestes, porque não cabem
nos olhos, na boca, nos ouvidos.

Nos ouvidos nunca caberás.
Repara: não é possível.
Encher toda uma cabeça
Com o eco de uma voz só 

Mas podes ao menos chegar?

Os versos não se fazem assim.
Os versos despejam-se.

Não.
Fazem-se como quem tira o que é preciso.
Não exactamente “como”... Não “como”.
Não se fazem assim, percebes?

Sim, os versos não se fazem como se querem.
A verdade é essa.
Os versos fazem-se como se querem.

Não.
Têm de estar vivos antes de tu chegares.
Tu entras na sua pulsação a meio,
partes os ossos do pulso
(só por princípio)
e achas que vieste para começar.
Mas chegar não é isto.

Antes de tu chegares
não havia a tua,
não havia “a tua febre”,
a tua paciência,
a tua vontade.
Antes de tu chegares,
tudo estava visto, explorado,
até quando as luzes se abriam,
se abriam como um mundo,
se abriam como um deserto,
se abriam como um veneno,
e as cobras declamavam:
não estás aqui.

Será um problema?
Muito mais tarde tu chegaste ao teu próprio eco,
por meio do trabalho de outro
aquele que te sentou na cadeira,
que te falou ao ouvido
que com um golpe preciso
cortou parte da orelha.

Devo dizer
Ultimamente o que escrevo
Encheu-se de gente mutilada
Como eles ecoam é o meu trabalho
E aceitei isto porque achei que era ofício:
Nadar contra a corrente

O meu eco acaba demasiado sempre.
É o problema dos ecos:
como as memórias demasiado curtas.

Não chegam como são,
rápidas à tua frente,
tirando as que se acendem.
As memórias que se acendem
Como lâmpadas carregadas
De electricidade, calor, precisão

Repara: nunca ninguém é tão rápido,
nunca ninguém é tão certo
como as músicas de que tu precisas. 

Mas onde não há ninguém
nenhuma música serve. 

Meu amor, nenhuma música
é tão grande como essa que ouves.
Nunca te esqueças disso. 

Mas resta isto...
Isto... vês?

O quê? O suspiro do Diabo?

Ou ter de correr,
percebes agora?...
para chegar, muito gelo
muita força,
por um pouco de luz, algum calor
Isso é ser nada.
Adianta-te ao espelho agora.

Nunca fui nada.
Outras considerações
Importam-me mais como
Gosto de correr,
mas faz-me mal aos joelhos.

O diabo trabalha no joelho
É onde me vejo melhor.

Não te vejas no gelo.
Faz demasiado frio.
Vem-te antes.
Vem-te sempre cedo demais.
Só assim poderás comparar
o sol à felicidade. 

Nada pode ser comparado à felicidade.
Ela chega nos intervalos,
envelheceu: respira com dificuldade.
Pergunta-lhe se veio à minha procura
por delicadeza ou preguiça.

À felicidade nada se pergunta.
Exige-se que nos prometa,
que nos faça, que nos foda. 

Então não podes separar nada.
Nada te faz ou te fode
Como o contrário da alegria.

Mas não há contrário da alegria?

Se a carregares ainda contigo...

Só se a carregares contigo?

Mas tu continuas a crescer,
ou a decrescer?
Há sempre,
é preciso lembrar-te:
tudo o que sabes
é sempre o que soubeste.

Mas, repara:
não há coelhos brancos, Lídia.

Não há comprimidos que te façam maior,
mas há certos b(r)ancos,
ou desconcertados,
onde te podes sentar.
Ou será inesperado?
Puxas o último cigarro,
(se fumasses),
mas porque cerras os olhos?
Sabes que no teu corpo
há outro corpo.

Mas outro corpo,
mas outros corpos não se suspeitam.
Não se espiam.
Não têm uma guerra fria,
e todas as guerras frias são carne,
são a última revolução.
Porque não o vês?
Ou quererás não o ver?

Não.
Todos os corpos chegaram como a chuva da manhã.
Como entrar neles sem os ferir?
Sem lhes emprestar a minha destruição?
Como sair de noite
Bater à próxima porta?
Surgir do outro lado

Mas, minha amiga, não saias de noite.
Nunca saias de noite.
A noite faz-te pesada.
A noite faz-te vagarosa. 

Não.

Não?

Vagarosa como enviar uma carta errada.
Gorda. Como uma vaca.

Mas que porra?

Uma profetisa da amazónia, digo.

Os profetas nunca viveram em florestas.
São húmidas.
Os profetas gostam de coisas secas.
Só assim assistem ao deserto.

Para que deus possa
fazer o seu trabalho de edição.

Deus nunca se cansa de editar.
Até nos silêncios dos que se riem,
até nas vírgulas dos que se fazem.

Segura-se nas vozes côncavas dos profetas...

As vozes, de facto, têm uma geometria definida.
Será demasiada?

Mas nenhuma voz humana é desagradável.
O que é dito, às vezes:
não as vozes. 

As vozes são demasiado sublimes.
Talvez por isso falemos demasiado.
Escrevamos demasiado.
Nós, poetas, calamo-nos sempre,
muito apesar dos poemas. 

Mas, já reparaste: nunca ninguém nasceu.
Nunca ninguém nasceu.
Porque estamos aqui então?
Não faz sentido.
Estamos demasiado sós.

Não demasiado sós
Não nascemos o suficiente

Sim, tens razão.
Mas eu não posso nascer.

Queres dizer:
porque já começaste?

Não, porque nunca comecei a nascer.

É preciso nascer em tudo.
Até num poema: como num jogo de xadrez.
Eu nasci em tudo,
continuo a nascer em tudo.

Eu nunca nasci em nada.
Uma fronteira faz-nos,
como quando dizes
que nasceste em tudo. 

E uma fronteira passa-nos.
Deixa-me começar a partir daqui.

Nunca vamos começar a partir de nada.
Os poemas nunca acabam e não começam.
Tu sabes disso.
Ninguém como eu ou tu sabe melhor.

Não acabam.
São o trabalho de uma polifonia só deles,
onde os poetas entram ou nunca entram.

Os poetas queriam entrar.
Não podem, não sabem.
São desadequados.
Por isso ficam sempre à porta,
à porta das laranjas,
à porta da China.
E depois dizem-se sacerdotes,
mas depois só não há sagrado.

Mas conversam com a porta,
Dizem-lhe coisas.

Quantas coisas lhe podem dizer?
Diz-me tu, sinceramente.
Diz-me.

 

Que entram nos poemas.
Que soam como um sino.
Que deixam o ladrão sorrir no escuro,
na noite a que voltam gorda como um gato
de olhos largos,
pronta a perder-se de novo.

Mas tu perdeste-te?

Tenho de ir, Pedro.
És o sal da terra,
quase nada te escapa.
Embora não ache o Cohen demasiado pagão para deus.


Banda sonora deste poema, a ser distribuída pelas diferentes secções, segundo critério livre do leitor, mas não a sequência*:

1.     Too Drunk to Fuck - Nouvelle Vague
2.     Smells Like Teen Spirit - Nirvana
3.     Come As You Are - Nirvana
4.     Devil's Whisper - Raury
5.     Vökuró - Björk
6.     Where is the line – Björk
7.     Flamenco Sketches - Miles Davis
8.     My Funny Valentine - Miles Davis & John Coltrane
9.     Puer natus est nobis - Los Monjes Benedictinos de Santo Domingo de Silos
10.   Coro final da Paixão segundo São Mateus - J.S. Bach
11.   Suzanne - Leonard Cohen
12.   So Long Marianne - Leonard Cohen
13.   Take This Longing - Leonard Cohen

(as duas últimas canções são simultâneas e uníssonas, porque têm história no final do poema)
*os poetas lamentam (o que poderá ser um título alternativo)

 

 

Submissão

Paris teve um ano de cão.

Começou-o atacada na sua dignidade e tão distintos e históricos valores laicos e republicanos, com o horrendo ataque ao jornal satírico Charlie Hebdo, reduto indefectível de liberdade de expressão e escolha dos conteúdos, independentemente dos seus destinatários, algo quase impossível em qualquer outro país da U.E. ou do outro lado do Atlântico.

Na altura, a tragédia foi uma verdadeira benção para Hollande, finalmente capaz de sacudir a pressão da imprensa, hiperbolizada pela sua inábil e atribulada vida amorosa e pela tímida reacção aos problemas sociais e económicos de que a França padecia. Retomou a liderança, caçaram-se os culpados em directo global e os líderes europeus deram as mãos para a fotografia (com Sarkozy desesperado pelo enquadramento na moldura e a ascendente extrema-direita estrategicamente posta de parte), retratando uma Europa em declínio, sombra dos tempos da sua fundação, despida do seu vigor humanístico e humanitário e vencida pela força dos números, das estatísticas e dos poderes que deles se servem para prosperar.

No chamado “mundo ocidental”, os clássicos “eles é que provocaram/pediram” ou “não tinham nada que ofender outras religiões” foram bem audíveis, contemporâneos aos ubíquos “Je suis Charlie” que pululavam nos fóruns sociais e outros mais ou menos institucionais, rapidamente banalizados e esquecidos, como qualquer outra moda inócua e passageira.[i]

As consequências práticas, para além do luto e do medo dos locais (pela proximidade e absoluta impotência perante a violência dos actos) e do (mal disfarçado) alívio dos vizinhos [ii], foram nulas. Um breve acréscimo de vigilância, logo mitigado e dissipado, na proporção directa com o “vigor interventivo” da chamada “sociedade civil”, esse ente banalizado e apenas comparável com “a Internet” ou “os media”: anónimos, virtualmente inquantificáveis e sem qualquer poder real, embora constantemente citados perante a necessidade de fabricar consensos, com as mais diversas e frutuosas utilidades.

2015 avançou e o fresco europeu tomou tons baços e obscuros.

A inépcia voluntária e displicente da classe dirigente francesa e europeia, completamente desprovida de estratégias e capacidade de liderança[iii], apesar de previsíveis, foram chocantes.

Os atentados de 13 de Novembro revestiram-se de contornos inéditos no século XXI ocidental e europeu. A frieza na execução, os locais e os horários escolhidos, desconcertaram uma Europa já em grande buliço e uma nação francesa, novamente de luto, atingida no seu coração.

O livro que involuntariamente se tornou indissociável desta Paris massacrada, chegou a Portugal há uns meses, mas a sua pertinência e actualidade não se desvaneceram.

Personagem cujo carisma garante projecção mundial a cada novo livro ou palavra pública, Houellebecq conseguiu com Submissão a proeza de ser fortemente criticado ainda antes da publicação do livro (exactamente a 7 de Janeiro, dia do massacre no Charlie Hebdo, pouco depois de ser publicada uma capa em que o próprio surgia caricaturado). Cancelou imediatamente a tournée de promoção do livro e refugiou-se em parte incerta, concedendo apenas uma emocionada entrevista na TV.

Colocar o livro no género da sátira será redutor mas inevitável. Cedo se torna perceptível esse tom, ainda antes de o livro ser aberto.

O título Submissão evoca jocosamente a raíz etimológica da palavra Islão[iv], jogo de palavras progressivamente mais relevante com o desenvolvimento do romance.

A palavra em si surge apenas na página 230, acompanhada por uma das passagens mais esclarecedoras do livro. François, o nosso protagonista, encontra pela primeira vez Robert Rediger, um dos poderosos do novo regime político, “conhecido pelas suas posições pró-palestinianas e que fora um dos principais obreiros do boicote aos professores universitários israelitas”, que lhe explica, com um exemplo literário, o fascínio da filosofia holística subjacente ao Islamismo.

“- É a submissão (...) a ideia espantosa e simples (...) de que o máximo da felicidade humana reside na submissão mais absoluta.(...) para mim há uma relação entre a absoluta submissão da mulher ao homem, tal como descrita em “História d´O”[v], e a submissão do homem a Deus, tal como é encarada no Islão.(...)o islão aceita o mundo, aceita-o integralmente(...) para o islão, a criação divina é perfeita, é uma obra-prima absoluta.”  

A demanda de uma identidade na era da solidão, juntamente com a reflexão sobre a Religião e a triste angústia existencial perante a omissão de um referencial filosófico e sociológico verdadeiramente estruturado e estruturante, são traços comuns a toda a obra do francês.

Submissão acrescenta novo mosaico a esse painel, onde pairam os demónios que a França insiste em ignorar e Houellebecq nunca se fez rogado em exorcizar, nomeadamente os desafios colocados pela diversidade cultural, étnica e religiosa (com o passado colonialista sempre em fundo), a vacuidade da classe artística e mais mediática (os famosos são tratados por tu, como qualquer outra personagem) e o hiperbólico consumismo pós-moderno.

Neste livro, inadvertidamente (ou talvez não) e com as devidas distâncias, é perceptível a alusão ao colaboracionismo infame do Governo de Vichy com os nazis, durante a II Guerra Mundial. É transversal a todo o romance, na silenciosa aceitação das circunstâncias e das mudanças, mediante a conveniente retribuição, nas palavras por dizer ou nos longos solilóquios mentais de François, impulsos e ensejos inconfessáveis, mesmo entre amigos.

A Religião, justificação para algumas das maiores atrocidades experienciadas pelo ser humano, é o pretexto para Houellebecq operar uma mudança ficcional de paradigma, colocando uma hipótese ao leitor: e se o Islão fosse uma realidade viável no Ocidente?

Inteligentemente, o Islão é ficcionado como enquadrado (e enquadrável) nos parâmetros democráticos ocidentais. Para muitos, tal poderá soar a falso, vindo do mesmo homem que, há uma década, foi absolvido pela justiça francesa de acusações de incitamento ao ódio religioso e racial, ao declarar publicamente que o Islão era a religião mais estúpida.   

Todavia, o homem por detrás de “Submissão” é hoje mais ponderado.

Há um ano atrás, em entrevista à The Paris Review, a primeira acerca do livro, revelou que, perante todas as mortes com que tinha lidado (os seus pais, o fiel cão), se tinha incompatibilizado com o seu ateísmo. A negação da existência de uma ordem cósmica ou de um criador era-lhe agora insuportável, partindo daí a ideia para o livro.

Como Auguste Comte, sua grande influência, de uma mundividência puramente científica, evoluíu para a crença de que a sociedade não sobrevive sem religião.

O título do projecto inicial era “La Conversion” (a conversão) e descrevia o caminho de um intelectual até ao catolicismo, seguindo os traços biográficos de Joris-Karl Huysmans, em cuja obra se tinha especializado. Cedo concluiu que a ideia não resultava.

Ao tentar colocar-se na pele de um muçulmano, entendeu que faria sentido a existência de um partido em que este se revisse. Analisando a situação política dos muçulmanos no Ocidente, constatou ser-lhes completamente alheia e distante: não se reveêm na direita nem a direita se revê na sua cultura e a esquerda, pela sua óptica, roça o libertinismo.

Os obstáculos à verosimilhança de tal situação eram óbvios. A perspectiva viciada que os media criam acerca desta religião, retratando cada novo convertido ao islamismo como um jihadista (esquecendo uma larga maioria que não o faz), assim como os grandes cismas históricos existentes no seu interior (do Islão), inviabilizariam à partida um partido nestes moldes.

A solução simples para esta aparente contradição, encontrou-a na História que, ciclicamente, nos relembra a importância do homem providencial, o líder carismático e mobilizador. Mohammed Ben Abbes é a personagem-chave do romance, embora nunca surja no mesmo. A sua Fraternidade Muçulmana, partido que acaba por vencer as eleições em França, é, à sua imagem, concicliador e iconoclasta.

A fundamentação política e ideológica do romance poderá ser falsamente interpretada como um alerta, pelo temor, da possibilidade de o Islão tomar as rédeas das instituições francesas. Segundo o autor, desta feita ao New York Times, o objectivo foi bem distinto.

No contexto certo e com a adequada liderança, numa sociedade profundamente laica e republicana como a francesa, o Islão teria uma maior possibilidade de vingar do que o catolicismo, graças ao seu carácter mais holístico.

Para além disso, para Houellebecq a conversão é um acto de esperança numa nova sociedade, normalmente sem motivações sociais, apesar de o livro apresentar o reverso dessa medalha.

*

Com esta bagagem, regressemos a François.

O professor, misantropo proficiente e profissional, com quinze anos de uma carreira para a qual nunca teve vocação, encontra na vida académica o seu habitat preferencial.

No entanto, é precisamente com o inicío da sua vida profissional que começa a sentir o peso absurdo da solidão, perdida a rede de contactos mantida durante os anos de estudo na faculdade.

Entre dislates sobre o quotidiano, reflexões existenciais típicas de um quarentão solitário e irrelevantes disputas filosóficas com os seus pares, encontra nas alunas a companhia perfeita para o tipo de relação amorosa que lhe convém: fugaz, sem qualquer compromisso, fisicamente satisfatória e com a leveza emocional de um romance de cordel.

Chamava-lhes “namoradas-mais ou menos à razão de uma por ano.”, o correspondente ao período lectivo, e encarava estes relacionamentos como “estágios”, que se sucederiam “até desembocarem, em apoteose, na última relação, aquela que teria o carácter conjugal e definitivo, e conduziria, via concepção de filhos, à constituição de uma família”.

Até que conhece Myriam, e cedo percebe que nada seria igual depois dela. Apesar de ter alguns namoricos depois de também ela o deixar, sente que o inexorável peso da idade e o tédio da rotina e da previsibilidade lhe alteram os padrões que tanto estimava, desiludindo-se também com estas relações episódicas.

O meio universitário apenas lhe garantia estatuto social e um emprego estável. As críticas a toda a artificialidade que o rodeia são abundantes, desde a virtualmente inverificável origem das teses, aos egos alimentados pela falsa aparência de um saber acumulado, raramente real.

Começam a surgir indícios de graves problemas sociais logo nas primeiras páginas, com facções rivais[vi] à espera do pretexto certo para se confrontarem, impedimentos e dificuldades aos professores israelitas e rumores preocupantes de agressões a professores em plena universidade.

No início do processo eleitoral, a vitória da Fraternidade Muçulmana era ainda uma hipótese remota, embora isso pouco interessasse ao nosso anti-herói, devastado perante a notícia de que a “sua” Myriam ia regressar à sua Israel natal, receosa do que se antecipava ser uma revolução social e política onde as mulheres da religião “errada” seriam ostracizadas.

François sentia-se “tão politizado como uma toalha de mãos”, mas mantinha-se consciente da “atmosfera estranha, opressiva, uma espécie de desespero sufocante, profundo”, altura em que “muitos foram os que optaram pelo exílio.”

A violência banaliza-se, juntamente com o conformismo de imprensa e inteligentzia, e o sentimento geral é de impotência e desresponsabilização, inclusive das autoridades policiais. O inevitável paralelo com a Alemanha do 3º Reich, na década de 30, surge estampado na página 53: “Este tipo de cegueira, aliás, nada tinha de historicamente inédito: encontra-se por exemplo, em todos os intelectuais, políticos e jornalistas dos anos 1930, unanimemente convencidos de que Hitler «acabaria por voltar à razão».”

Neste buliço, tal como Huysmans, séculos antes, o nosso protagonista decide dirigir-se para o campo, em busca de algo que nem o próprio sabia identificar. É aí que, como Paulo de Tarso no deserto, tem uma revelação, momento-chave do livro, em que, perante a Madonna Negra de Rocamandour, assume em definitivo a sua incapacidade de seguir o caminho do seu autor-referência e acaba por regressar à civilização, rendendo-se à evidência de ser apenas mais um na multidão de conformismo e conforto perante a irresponsabilidade da abdicação e da submissão ao novo status quo.

*

Nas páginas 46 e 47, a pretexto de um plano de abordagem de François ao seu eterno estudo de Huysmans, Houellebecq apresenta-se (via a tão em voga metaficção) com uma espécie de súmula da sua ficção/obra, convidando-nos a assistir às glórias e infortúnios do Mundo através do seu olhar, apesar de todo o desconforto que possamos sentir.

“No entanto, a sensação negativa, a sensação de estagnação, de lento declínio, não suprimem completamente o prazer da leitura, porque o autor teve a seguinte brilhante ideia: num livro condenado a ser decepcionante, conta a história de uma decepção. Deste modo, a coerência entre o assunto e a maneira como é tratado aumenta a adesão estética, causa algum tédio, em suma, mas incita à continuação da leitura, e percebe-se que não são apenas as personagens que se sentem abandonadas durante a sua desoladora permanência no campo, mas também o próprio Huysmans. (...) O que permitiu (...) que Huysmans (...) saísse do impasse foi uma fórmula simples(...): adoptar uma personagem central como porta-voz do autor, personagem cuja evolução poderemos acompanhar em vários dos seus livros. (...) É óbvio que não é fácil, para um ateu, falar de uma sucessão de livros cujo assunto principal é a conversão religiosa; (...) Na ausência de verdadeira adesão emocional, o sentimento que aos poucos prevaleceu no ateu confrontado com as aventuras espirituais (...), foi, infelizmente, o tédio.”

 Houellebecq confessa encarar as personagens como projecções e nunca auto-retratos, meras hipóteses para um futuro alternativo. Por exemplo: será que, estudando Huysmans e literatura, poderia um dia ser professor universitário?

 Talvez a impossibilidade desse futuro justifique a tristeza e a solidão latente em toda a sua obra literária. Mas neste Submissão, a tristeza é relegada para segundo plano, perante uma resignação quase obscena, que se estende ao plano emocional.

A derradeira frase do livro é um claro e brutal “Je n'aurais rien à regretter”.[vii] François, no final, ficou vazio, sem nada nem ninguém de que sentisse saudades, perante a religião, o passado ou o amor, pilares da existência humana como a conhecemos.

Mas a base da obra é bem mais iconoclasta do que à primeira leitura poderá parecer. Para Houellebecq, o livro descreve o fim da filosofia iluminista, sem qualquer pertinência actual, mera geradora de infelicidade e de uma sensação de vazio, recuperando-se assim a natural tendência humana para o metafísico.

Houellebecq defende que nos encontramos hoje numa época que Comte chamou de Idade Metafísica, interrompida com o final da Idade Média. É simbólica a despedida de uma civilização, dos seus valores, uma viragem para um futuro ainda incerto, mas já, de certa forma, claro nos seus desígnios.

Como perfeito agent provocateur que sempre foi, tudo isto poderá não passar de uma provocação, perdoe-se o pleonasmo. Mas aqui, o francês parece ir mais além, defendendo um futuro que lhe parece realista e estendendo este exercício quase profético a todo o projecto europeu, que considera um fracasso politico, estratégico e, acima de tudo, democrático[viii].

Apesar de ter completado em Submissão o que em muito se assemelha ao clássico romance de ideias, Houellebecq é um homem do seu tempo, consciente da finitude do seu papel, quer como escritor-pessoa, cidadão francês, europeu e do Mundo em 2016, quer como escritor-espectro, inevitavelmente projectado nas personagens que cria, rejeitando responsabilidades sociais ou outras, imputáveis meramente pela sua obra publicada.

Por ironia, é exactamente essa obra que o contradiz, retratando os intelectuais franceses como absolutamente passivos e irresponsáveis, praticamente inimputáveis sociais.

Ninguém gosta de ser apanhado em flagrante, e o caso agrava-se quando um misantropo quase profissional se expõe, na fragilidade da sua argumentação, como afinal apenas um de nós, inerentemente múltiplo e dissonante.

Em última instância, são os livros que desafiam as nossas concepções, aqueles que mais tarde ou mais cedo recordamos, quando a realidade se cruza com a ficção. Houellebecq tem o dom de usar a cultura que o rodeia para criar essas “pedradas no charco”, cujas ondas inevitavelmente nos tocam, criando admiração ou repulsa.

Dizia Pessoa, melhor que ninguém: “Sentir, sinta quem lê!”. Porquê contradizê-lo?

 

[i] As manifestações de apoio da altura assumiram-se como verdadeiros estudos sociológicos, meras oportunidades renovadas para, entre sorrisos e gargalhadas, pôr a conversa em dia e mudar o cenário para as publicações de Instagram, o que não deixava de ser simultaneamente chocante e tranquilizador. Afinal, tudo continuava exactamente na mesma.  

[ii] Pela distância, mitigada pelos meios de comunicação, perfeitos e quase mecânicos emuladores de empatia em série, permitindo, com um clique e um hashtag, a mais perfeita e cordata inação.  

[iii] Não apenas para o âmbito económico (em que habilmente contornou os Tratados por forma a garantir a sobrevivência do Euro), como para a garantia de uma mais efectiva segurança e o estabelecimento de uma sólida e exemplar cidadania e humanismo europeus.  

[iv] A palavra árabe islam, que está na raíz de Islão, significa literalmente submissão (à vontade de Alá), pelo que é a única designação de uma religião sem qualquer ligação a uma pessoa ou grupo étnico, mas antes a uma ideia central.  

[v] Pensem em “As 50 Sombras de Grey” e juntem-lhe melhor escrita em doses generosas e uns pozinhos de Marquês de Sade. Sim caríssimos, a Sra. E. L. James não descobriu a pólvora...

[vi] I.e. o movimento identitário (anti semita e aparentemente nacionalista) e os movimentos dos jovens salafistas.

[vii] Que no livro surge erradamente traduzido (salvo melhor opinião) como “Não teria nada de que me arrepender”.

[viii] NYT, 13 de Outubro de 2015

 

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