APOCALIPSE

Árvore erguida, jorrada dos teus ossos de granito vivo, eco e forma do sangue, arranhada, ferida pelos quatros ventos e as sete estrelas, árvore de granito, sacudida por todas as correntes de arte, mas que teimas em ser a tua pedra, poema.

Poema de cinco sentidos que todos os dias me arrancas à morte. Ergue-te mais, ainda mais, ainda mais uma vez. Cantemos.

E tu poeta que dizem obscuro os que te lêem e não te escutam, a quem roubaram três vezes a vida e a morte até que as consumaste por tuas mãos, mas continuas a viver dentro de nós, do poema. Quero levar¬-te comigo, erguer¬-te o corpo de terra, da terra, e levar-te comigo como a voz sem preço.

E tu também que iluminaste as palavras na luz mais negra, também tu pedra viva, como aquela pedra que é navio e navega pelo tempo, sujeita a uma bela longevidade que não é sem fim, porque a água cava nela a rota que a leva e que ela traz consigo, mas que mesmo assim perdura quanto pode. Quero levar-te comigo, porque é preciso gritar à beira do abismo, inaudito dom de humanidade, tu, outra voz que só morrerá de viver noutras vozes.

Vós sabeis que a vitória é nossa inimiga e que a sua hedionda face jovial é o nosso pesadelo – nós estamos do lado da derrota. Vós sabeis que não queremos a verdade, porque, hoje, a verdade fala a fria fala da noite da noite, da morte morta, da morte sem vida, sem olhos, nem boca, nem mãos.

Fixámos um destino, um destino pequeno, um destino que cabe nas mãos, uma pequena pedra que ninguém conhece, nem nós, que a descobrimos como um cego descobre a pele funda de cada coisa. Essa pedra é o côncavo, a concha, o aconchego da mão, a pressão na mão, da mão. Não procuramos a verdade, porque somos irmãos das coisas, vivemos com elas, e com elas e por elas respiramos, terra, ar, mar e fogo.

Um raio de luz, o raio de luz que não se consegue separar nas suas fibras. Chega¬ se às coisas, está nas coisas, afeiçoa¬ se a elas, transforma¬ se na sua forma, aquece¬ as.

A verdade existe, deixá-la existir. Hoje, porém, os que a perseguem com todos os seus poderosos instrumentos, são capazes de a encontrar, mas deixaram-na em que estado?

Uma frase obscena não me sai da cabeça: os gloriosos malucos das máquinas voadoras. Mais alto, mais forte, mais rápido. Aí, tão altos, tão fortes, tão rápidos, estais tão fortes, tão altos, tão rápidos, ó arcanjos da morte branca, que não conseguimos sequer imaginar-vos. Por mim, desço, deve ser isso, umas escadas escuras, penetrada de estilhaços, com a cabeça a rebentar de ordens loucas, sirenes, poeira e fogo sem sentido, fugida de mil guerras. Só quero sair daqui, não pedi isto, não encomendei esta comida.

E de novo nessas terras de nomes estranhos se formam os rios humanos de estropiados, com raras palavras coladas aos lábios como beatas apagadas. Voltam as mesmas imagens, que é como se nascessem cá dentro e para nascer me rasgassem de novo a carne como outras tantas farpas de fogo. Chegámos a um ponto em que até a piedade, a compaixão, o riso ou as lágrimas, são matéria de vergonha e estão a mais.

Que raio de reportagem insuportável pode ainda extrair um resto de humanidade destes fragmentos, destas letras que se espalham pelas estradas, quando as bombas dispersaram a fala e as poucas palavras? Por vezes, das janelas altas fico a olhar quem passa cruzando-se com as línguas de aço que saem da bocarra das ruas. Não se ouve nada por detrás das janelas. Estarão a escrever um livro, o livro, lá em baixo?

Civilização, quero ser, quero ser, o único escravo, o único escravo no teu mundo de homens livres. Um escravo ao menos ainda pode aspirar à liberdade, à liberdade, trazê-la, trazê¬ la consigo, escondida, fazer-lhe um abrigo, na sua própria carne. Foram os escravos, os escravos, que a fizeram.

Casas de terra tornando à terra, como os mortos que cavaram a própria cova, fazendo no chão o lugar do corpo, sujos da terra que os iria cobrir. Não tinham o direito de se calar nem de falar. Porque havemos nós de falar ou de nos calar? Mas que falar ou que calar?

Arcanjos da morte, deixais grandes marcas no chão e nos corpos. Vincais o tempo com as marcas que deixais e às ruínas dizeis: "Sois passado". Ficam no ar paredes imperfeitas, a provar que por ali passou o tempo irrevogável, imaturo, o que não foi crescendo nas nossas memórias nem teve tempo de se fundir em nós. Um tempo que não fizemos, nem nos fez. Um que está ali fora, como um exército ocupante. Minutos que a custo expulsamos para uma rua vazia como nós.

Quero crer que uma noite o piloto de um bombardeiro soluçou. Quero crer que uma bomba humana está desfigurada, num hospital, a repetir sem fim: "A minha alma está morta". Palavras irrisórias, tardias, onde se precipita e se esmaga tudo, como num buraco negro. Movimento dos corpos despojados de si, despossuídos, que se retorcem ainda como se estivessem vivos.

Ou melhor, se posso dizer isto, corpos que caem connosco nas cataratas, levados num remoinho sem sentido mas que tem por destino fatal o abismo.

Archeiro, verga o teu arco, prepara as flechas. A violência que é vida é o teu alvo e o teu voo.

Não sou bom, nem santo, nem herói, nem pretendo sê-lo. Apenas estava a instalar-me na casa nova, a arrumar a roupa nos armários e ia abrir a janela por onde entraria a luz. Havia uma janela para a luz entrar. Tinha tudo bem pensado: passaria a mão pelos móveis devagar até me impregnar de móveis, havia tudo de cheirar a lavado até o meu corpo se desfazer no ar e ser ar, as paredes iam aquecer-me com o seu sol.

Subitamente, e não tenho a desculpa de estar numa ilha exótica, nem de haver tornados, a casa ruiu. Fito o focinho estranho do céu que me fita e ocupa todo o espaço, outro abismo para o alto. Quer uma palavra minha, mas tenho de lha comprar, é o dono das palavras. Não posso dizer que são palavras de contrabando, nem que as envenenou. São as mesmas palavras que eu tinha, as mesmíssimas. Quem não as cantou?

"O meu coração que odiava a guerra" - disse o poeta. E quando deixou de a odiar, entrou-lhe dentro o sangue do inimigo, a voz do inimigo, o coração do inimigo, do odiado odioso inimigo. É esse o momento do perigo e temos de passar por ele.

Verga o arco, archeiro, pois também tu vais ter de odiar. Não esqueças, não perdoes, não fraquejes. O teu ódio há-de ser um ódio meticuloso, gelado, mudo. Vais ser imperfeito como estas casas, como estes mutilados, como todos os injustiçados. É urgente, não há tempo para mais. Ergue-te da terra, sujo, cansado, sem amor, morto de sono.

Tu que, ao cruzares uma desconhecida, sentes crescer em ti uma roseira de luz. Tu cujas mãos choram de alegria diante dum gato só por ser gato. Tu que, na bicha da padaria, secretamente sentes a padeira nascer e crescer em ti durante anos, com um amor de vidro transparente.

Vais ter de odiar.

Odeia com um ódio gelado, feroz, eficaz, certeiro, um ódio das mãos, da cabeça, de todos os teus órgãos, como os nenúfares, os jardins de estrelas, o frio das vidraças, a paisagem oca dos desertos, tudo o que tu queiras, mas mantém-no longe do coração, não lhe abras a porta, tem-no como um armário fechado numa cave que nem exista.

A violência, que é vida, seja o teu alvo e o teu voo.

Tu sempre aqui a reviver os mesmos momentos, como quem revira o colarinho gasto duma camisa velha, querendo dar¬ lhe nova vida, mas só para o gastar ainda mais. O mar dança sobre si próprio, de novo e de novo, vai e vem. Dobra-se como um guardanapo de medusas, chama o Inverno, o Verão, a Primavera, o Outono. Pulsa, mas mesmo assim não aprendeu o tempo e tu também não: a onda precisaria de encontrar as ondas antigas, deitar-se longamente sobre elas, sentir o seu molhado. Tactear o rasto delas na areia, bebê-lo.

Tu precisas de sentir um sentimento pesado, denso e líquido como o ferro em fogo ou a lava, a puxar-te para ti, para o fundo. Fundar-te num chão duro para te ergueres outra vez. Seja o ódio esse salto.

Chamam paz à guerra e guerra à paz os que peroram contra a violência.

Um eléctrico na noite leva na barriga as suas esculturas de luz e com elas pedaços de ti, quem sabe a última esperança de beleza. E na janela da frente reflecte¬ se a tua janela, a única iluminada, e tu nela que te fitas a ti próprio, tentando perceber¬ te a ti próprio. Havia uma maneira de fazeres as pazes: estares assim cansado, cansado como estás. Mas quanto tempo podes estar cansado, com essas facas de fogo frio que remexem em ti?

Vê, vê como eu fui apanhado com a lista das compras, ou meio nu, ou a recitar palavras incompreensíveis no meio das bestas joviais armadas. Escreve isto, por favor. Escreve: andou a aprender a lentidão dos gestos, passava horas, semanas e anos a ver surgir o mundo das mãos, como um fruto. Era como uma reserva, um verdadeiro pudor. Escreve, escreve. Não te cales. Era como um recato, um autêntico pudor. Suspendia o gesto, sem o parar, apenas um esboço de carícia que ia ser, tinha tempo, tinha todo o tempo, tinha o tempo. Era tudo fácil e preguiçoso. Não tocava nas coisas, elas nasciam-lhe como um fruto. Elas nasciam-lhe como um fruto.

Isso, isso, escreve. Uma pétala nos lábios, uma pétala nos olhos, uma nuvem que assoa a montanha. Uma mulher, uns olhos de vidro vivo. Vós, escreve, escreve, vós roubastes¬ nos o dom mais precioso, mas virá uma inundação, um animal grande como o mundo, que é o mundo. O céu ficará escuro, porque nos roubastes o que era mais nosso, o que não se pode possuir. Hᬠde vir um mundo animal com uma voz rouca e profunda e caninos de fogo.

Roubastes¬ nos essa pétala nos lábios e nos olhos e o vidro vivo que nos consolava com a sua brisa loura quando lhe dava o vento quente. Um grande deserto sai dos vossos peitos e derrama¬ se por todo o lado. Mas os rios vão entrar nas cidades, crescerá a bela erva selvagem nos prédios abandonados, assim o quisestes.

A água e o fogo serão o vosso desastre. E quando não houver mais nada, apagarão o vosso nome até à quinta geração, mas haveis de sobreviver também vazios nesse mundo vazio, sem sequer o humano conforto da dor.

monólogo acerca del instinto y de la entrega

san francisco de asís se dirigió a las aves las llamó hermanas impuso el silencio les dijo  -ahora me toca a hablar a mí

a mí

que sueño con todas las alas de mariposa que se arrancaron una a una para enterrarlas junto al cuerpo de miles que perecieron hace miles y miles de años                                        

                                                                  (pétalos  pequeñas deidades animales hechas de arcilla vientres que se vaciaron para dar paso a la mirra)

pero me toca hablar a mí

que soy un organismo como cualquier otro infinidad de posibilidades de células chocándose (o escribiéndose) las unas con las otras una multitud de impulsos –repito- como los de cualquier otro debatiéndose dentro por igualentre los estímulos de la destrucción y de la supervivencia

a mí

que estoy escribiendo estas líneas que lees porque hevuelto a buscar la técnica de la datación por carbono los entierros en el paleolítico el proceso de embalsamiento y preparación de difunto en el antiguo egipto

a mí

        que como tú quieres el remedio la bondad el ejercicio exacto para perpetuarse
        el reconocimientoel refugio la venda el duelo
        todo lo necesario

 

a mí
que miro mis dientes y mis manos
cada parte de mí abreviada
como todas esas veces que tecleas ADN pero ni haces el intento de escribir ácido desoxirribonucleico
a mí
que me gusta llamar las cosas por su nombre
situarlas en la región exacta darles un significado proveerlas de una historia

a mí
que no soy san francisco
ni vosotros mis hermanas las pobres golondrinas
a mí
que no soporto la idea de verme hablándole a un animal
para pedirle que se calle
que prefiero la cura y no el silencio
pero cada vez que escribo
estoy contradiciéndome
a mí misma
convirtiéndome en la hermana
en el profeta que se sienta delante de los pájaros
pidiéndoos por favor
silencio
porque es ahora
cuando me toca hablar a mí

        

o dia em que perdi a cabeça

eu estava em casa um dia meio doente, cansado, muito trabalho, aquela correria e tudo mais. e era quase hora do almoço. friozão lá fora, resolvi: era dia de feijão com pimenta.

pus a panela de pressão com agua no fogo, adicionei temperos, sal e os grãos. e voltei pra sala pra continuar respondendo emails.

achei estranho a panela começar a “assobiar” rápido. mas tudo bem, eu estava concentrado. o tempo deve ter dado aqueles saltos de quando a gente se perde em pensamentos.

marquei mais ou menos os 10-15 minutos de assobio e voltei pra cozinha. daí a descorta. o respiro da panela não estava bem encaixado; não tinha mantido bem a pressão.

isso aborrece. e agora? ligo de novo pra cozinhar mais? abro pra ver? tive preguiça. ajeitei o respiro na posição certa e: fogo!

estava ali por uns segundos contemplando o vapor, a panela, a vida, o nada, quando a panela explodiu. BUM! e eu acho, sem certeza, que vi tudo acontecer em camera lenta. por um milésimo de segundo contemplei a beleza plástica daquela erupção de metal e comida.

não por muito tempo. a droga da tampa, uma parte dela, voou em direção a mim e se chocou como um tiro de canhão contra a minha testa. e é claro, foi aquela lambança de massa cinzenta e sangue por todo lado.

fiquei ali parado ainda contemplando a cena, com a mão na cabeça, o tampo aberto, o sangue escorrendo. pensei um instante no aborrecimento. sabe como é na europa. vem aquele monte de bombeiro e polícia, paramédico. ia dar aquela trabalheira.

como estava meio desmiolado, achei sinceramente que deveria pelo menos dar uma leve geral na bagunça, a começar pelo meu cérebro, que estava escorrido pelas paredes e chão junto com a comida.

não queria deixar as células se desoxigenarem. a imagem que me veio foi das células como peixinhos fora da água. eu tinha que juntar o quanto desse e por de volta no lugar.

a cabeça estava doendo pacas. parecia que ia explodir. quer dizer, você entendeu.

peguei uma travessa de porcelana que, olhando rapidamente, pareceu limpa. e foi, com cuidado pra não pisar em nada importante, procurando pelo menos os pedaços maiores.

eu já tinha vivido uma situação parecida na infância quando quebrei o copo favorito do meu pai, um copo do corinthians, da celebração oficial de sei lá o que. (nunca liguei pra futebol.) o copo caíra no chão, quebrou como a minha cabeça, e no chão ficaram pedaços de todos os tamanhos.

lembro como hoje dessa experiência absolutamente fatídica na minha vida.

copo quebrado, a merda estava feita, agora restava ver como resolver aquilo. e por anos volta e meia me pego desejando que a vida tivesse botão de rewind. sei lá, umas quatro chances, pra não complicar muito a vida do sujeito. cagou feito, rewind, e bola pra frente.

mas como no caso do copo do meu pai, a principio eu tive esperança. muita esperança. primeiro porque a maior parte do crânio tinha ficado no lugar e segundo porque encontrei o tampo principal, o pedaço de osso que cobria quase inteirinho o buraco.

mas daí é aquela coisa: fui juntando os pedaços de tripa com feijão, separando o que era meu na tijela, tentando pegar mesmo o menorzinho. e de perto olhando pro chão, ia encontrando fiapos que eu não sabia, pelo tamanho, identificar se era meu ou do feijão.

na verdade, apesar de estar naquele momento claramente vivendo um momento de negação, eu sabia lá dentro que aquilo tudo era uma besteira. - claro, eu pensava, que aquilo já era lixo. não tinha nada a costurar nem a emendar. fora a contaminação. mas você sabe como é a teimosia em situação de desespero. demora pra ficha cair.

nessa altura, eu já ouvia vozes do lado de fora da casa. gente que tinha escutado a explosão e estava querendo saber o que tinha sido. acho que vi alguém de raspão quando olhei de relance pela janelinha basculante na cozinha. mas o sangue nos olhos e a sensação de que era tudo verdade e que rewind não aconteceria só aumentaram o meu pânico.

a minha travessa estava um terço preenchida mas eu também já estava passando do estado de negação pra revolta. a massa cinzenta restante me dizia que aquilo era aquilo, mas ainda assim eu lutei.

os bombeiros tocaram na porta justo na hora que eu estava passando agua pra ver se tirava o resto do feijão pra dar o resultado da coleta pro medico, pra ele ver, ser testemunha de que eu tinha feito merda, mas que tentei me redimir.

o bombeiro já estava olhando pelo basculante quando gesticulei pra ele que estava indo abrir a porta. mas na verdade eu ainda não tinha decidido se seria melhor colocar os restos da cabeça na geladeira ou de volta pelo buraco do crânio.

não ria de mim, seja razoável. além de estar com menos de 100% da capacidade mental - por razões que dispensam explicação - eu estava em choque e com adrenalina correndo nas veias. além do que, mesmo repensando no assunto, vejo que houve uma lucidez ou uma tentativa de, talvez. porque pela minha quase total falta de conhecimento na área médica, achava que a solução obvia, a geladeira, poderia não ser tão bom quanto proteger e transportar as partes no habitat natural delas, digamos assim. compreende?

mas antes de eu me decidir, bombeiros arrombaram a porta, o que, pra ser sincero, quase me fez derrubar a travessa no chao. já pensou? que merda. ter que catar aquilo, pedaços de porcelana cortante, os pés dos bombeiros agitados.

logo que me viram, tive a impressão que eles fizeram um grande esforço pra manter a calma. eu tinha consciência, apesar de ainda não ter me olhado no espelho, que a cena não era pra quem tinha estômago sensível.

as coisas daí correram rápido. (engraçado, isso, a vida não ter rewind mas ter fastforward.) foi isso que eu senti. quando me dei conta, a travessa foi tirada da minha mão e um enfermeiro bem forte me abraçou pelo lado do corpo para eu sair do apartamento.

por um instante quis gritar que eles tomassem cuidado de fechar a porta. é que temos duas gatas. elas são de casa, não podem sair porque se perdem. mas se eu estendi a mão pra falar alguma coisa, acho que logo mudaram de assunto.

aqueles quatro ou mais paramédicos, bombeiros, policiais, vizinhos mais adiante. o mundo estava rodando e em fastforward e as minhas lembranças daquela situação são meio caleidoscópicas, com cores e formas se misturando e se recompondo. bonito até.

a situação do bendito copo do corinthians voltou à minha mente - veja, então, como era funda a memória. naquela situação, sozinho em casa, tentei heroicamente juntar os fragmentos do objeto. havia um maiorzão, vários médios, e um monte de tamanhos variados, entre caquinho de vidro e pó. não haveria como. colar aquilo seria acionar um processo irreversível que se concluiria com uma fantástica surra de cinturão.

a minha “ideia genial”, então, foi usar os poderes da invisibilidade que estavam ao meu alcance e se traduziam em: dar sumiço daquilo e me fazer de desentendido. afinal, um troço que ficava guardado numa mala velha no guarda roupas. era um plano. mas, sabe-se lá como, ele descobriu; deve ter feito engenharia reversa com o meu raciocínio. pensando agora, deve ter sido.

o fato é que levei não uma surra, mas duas. pelo menos foi o que ele disse. porque pior do que quebrar era ter escondido. e por isso até mais do que pelo copo, o meu corpo precisava sofrer. (mas, se me permitem a rápida digressão, a dor maior daquela história não foi a surra, mas saber ter decepcionado ele. essa dor-vergonha ainda ronda sempre que alguma coisa a chama de volta ao palco das lembranças.)

e foi assim que o episódio terminou. me puseram sentado na ambulância (porque eu estava consciente e pra eu não perder mais sangue), e fui espetado com uma droga que da sensação física de abrir espaço agressivamente nas minhas veias, se tornou rapidamente uma gostosa paz etérea.

ouvi o barulho da rua e os ruídos do motor da ambulancia se tornarem um burburinho cada vez mais suave e eu me peguei sorrindo para o que pareciam ser fadas quase invisíveis flutuando suavemente ao meu redor.

tudo durou algum tempo impreciso, talvez não mais do que a distancia entre a minha casa e o fim da rua. flutuando como sementinhas voadoras de dente de leão, essas criaturas (?) foram gradualmente caindo como flocos de neve. e ao tocar o meu corpo, elas não rolavam pro chão, mas ficavam ali, presas à minha calça jeans.

adormeci olhando nos olhos do meu pai. não o de hoje, homem velho e amargo, mas aquele da minha infância, meu herói. eu quis pedir desculpas por ter aprontado de novo. mas a minha boca e lábios estavam dormentes. ficamos assim nos olhando e senti ainda mais paz, e que nada ia ficar bem ou mal porque não havia nada para melhorar ou piorar. tudo estava bem, tinha sempre sido bom e isso era tudo.


As Aventuras do Senhor Lourenço (§10 Lourenço sonha ser um intelectual)

(cont.)

Ser intelectual é uma tarefa infinita, Lourenço sabe-o bem. Enquanto esperava por Vanda, mais calmo do que se pensaria, olhou para a estante e teve a certeza que não viveria tempo suficiente para ler os livros que ainda não tinha aberto. Sentiu uma enorme tristeza, era como se tivesse finalmente ficado claro que nunca seria um verdadeiro intelectual.

[para mim, um intelectual é um ser vivo que assume o dever de agir com a cabeça para assumir o comando dos que vivem para a barriga]

Pode parecer uma coisa sem importância, mas Lourenço não conseguiria ser mais nada, o máximo era a intelectualidade. Um intelectual de Lisboa, não do Porto ou Paris, só de Lisboa. Visto que no geral os intelectuais da capital não criam ideias vibrantes, desenham poses (aqui não entra o centralismo que ensombra os regionalistas portuenses; os intelectuais do porto, talvez devido à fonética mais arcaica, são capazes de esmurrar um energúmeno enquanto tecem dois conceitos para rebaixar ao nível do lixo o último romance de um jovem escritor étnico). E na pose, que segue um cânone cada vez mais rarefeito depois do fecho do Quarteto, está uma gabardine bege com nódoas, revistas estrangeiras (o Jornal de Letras está pela rua da amargura) e livros vagamente semióticos debaixo dos braços (se chover trocam-se algumas obras pelo guarda-chuva, sem que se note muita diferença). A voz deve arrastar-se, condizendo, num rigor cuidado, com uma barba de 6 dias (nem mais, nem menos) e, principalmente, ficar em silêncio perante o interlocutor, ao mesmo tempo que um olhar oblíquo parece acusá-lo de incoerência lógica ou, pior, de reproduzir a vox populi.

[em tempos tive o projecto, secreto, nem o Lourenço soube, de ser o rei dos clichés, continuar, noutros termos, Flaubert e o seu Bouvard e Pécuchet, com o objectivo de ser aclamado pelo homem médio, único estrato social e psicológico que ainda consegue, juntando uma certa modéstia com pouca cultura, reconhecer a genialidade]

Em Lisboa não há um sítio cativo para os intelectuais desde o fecho do dito Quarteto, talvez a Cinemateca ainda cumpra um pouco essa função, mas longe daquelas quatro salas de cinema, alojadas numa espécie de pré-fabricado, ali para os lados da Estados Unidos da América, afixando sempre “filme de qualidade” nas montras dos cartazes, não de “alguma qualidade”, mas de “qualidade”, mesmo que fossem soporíferos em lentas imagens-movimento. Agora, além da Cinemateca, podemos vê-los tanto na Cornucópia como na Lux, frequentam a Fábrica de Braço de Prata ou a LX Factory (Warhol teria um riso Pop ao saber que ali milita a esquerda rebelde, que é de esquerda mas não é de esquerda, se indigna mas é empreendedora, faz voluntariado mas tem a grande fatia de bolsas de estudo da FCT), bebem um copo, de cerveja ainda, numa tasca ou vão ouvir filosofia ao Bar Irreal. Vagueiam pela cidade e viajam à volta do quarto (a Ryanair desvia-os de vez em quando desta monotonia contemplativa). O que lhes falta, por mais estranho que vos pareça, não é um cimento corporativo que inicie a criação do “povo por vir”, mas um certo nível de angústia misturada com raiva. Em termos mais sociológicos: um sentimento de desprestígio social que os levante, num impulso de vingança, a um patamar de sobranceria capaz de inferiorizar com o olho esquerdo todos os que não leram pelo menos metade dos clássicos (aferir esta distinção seria da responsabilidade de um comité de intelectuais pioneiros, e velhos, onde se votaria de braço no ar – relativizar a democracia seria também um dos imperativos iniciais).

Mas tudo isto, mesmo na linha do risível, vive de forma muito respeitável. A fluidez da intelectualidade lisboeta pode dificultar o trabalho das mentes analíticas, mas há algo nela que a mantém idêntica a si mesma, uma dignidade que abraça a decadência sem se deixar aspergir pelo vírus capitalista.

É esta atmosfera do grupo a que Lourenço gostaria de pertencer que condicionou o seu encontro com Vanda. Imagine-se que por causa dos intelectuais, Lourenço considerava a nudez, “essa límpida forma de integridade”, muito pouco sensual, via nela o exemplo perfeito da recaída humana na animalidade por renunciar ao efeito erótico do vestuário.

– São três pratos. – Disse Vanda de rompante, imediatamente depois de entrar no apartamento de Lourenço, ainda com a mala na mão e gotículas de suor microscópicas nos cantos da boca.

– Três pratos?! – Perguntou Lourenço, meio azamboado, sobretudo porque tinha estado em cogitação intelectual.

– Sim, quer um desenho?

– Não, creio que já percebi.

– Então, o que vai ser?

– Não queres escolher tu?

– Não, não é assim que funciona.

– E a emancipação feminina?

– Não me venha com tretas, trabalho 8 horas por dia, de pé, e ganho €600.

– Por isso mesmo...

– Qual “por isso mesmo”? Emancipação o quê? Quero é comprar umas Levis.

– Essa já foi, em temos, uma peça da emancipação feminina.

– Who cares?!

– Vamos fazendo as coisas.

– Não, isto tem de ficar claro, diga-me o que quer, é preciso ser rigoroso.

– Quero-te a ti.

–Sim, mas que parte?

– Sei lá, o teu corpo, quero fazer amor contigo.

– Amor? Isto é uma queca, não meta a alma nisto.

– A alma?

– Sim, não me diga que não sabe o que é?

– Não, quer dizer, sei mais ou menos.

– Pois bem, é sem esse “mais ou menos” que vamos fazer isto. Deite-a cá para fora, estou mesmo a ver que tenho de ser eu a decidir.

Lourenço quase foi violado, e teve durante 10 minutos uma “sistemática desorganização dos sentidos”. Vanda tratou-o como tratava a máquina do café. Lourenço gostou como nunca tinha gostado. Uma empregada inculta e desbocada, a dar para o gordo, soubera, sem o saber verdadeiramente, tocar onde devia. Ou foi encenação? Ou ele, um enfraquecido, teve a indecência de se aproveitar do vigor rústico de um neo-proletariado, tão inconsciente como sempre?

– Passe para cá os €100 e até amanhã que se faz tarde. – Disse Vanda já com a mala na mão, Lourenço foi buscar duas notas de €50 e quando a quis beijar já ela estava no elevador.

Em breve a vida de Lourenço vai mudar, uma incrível aventura fará com que apareça, dizem que por boas razões, na capa do Correio da Manhã, e, depois de conquistar este graal comunicativo, em tudo o que são revistas e programas cor-de-rosa. Talvez chegue mesmo aos meios de comunicação de referência, tablóides disfarçados de jornalismo sério.

(cont.)

A Sociedade do Cansaço (recensão)

Com A Sociedade do Cansaço (Müdigkeitsgesellschaft, 2010), tradução de Gilda Lopes Encarnação para a Relógio D’Água, 2014, Byung-Chul Han (sul coreano, estudante de metalurgia, formando-se depois em filosofia na velha Alemanha, com um doutoramento sobre Martin Heidegger) veio abanar o meio filosófico alemão (quase medusado pela áurea oceânica de Peter Sloterdijk). Estranha-se que um livro tão curto (60 pp. na tradução portuguesa) tenha tido um impacto tão grande (apesar do autor ser desconhecido, vendeu quase imediatamente 2000 exemplares na Alemanha, está traduzido em várias línguas e tem recensões prolíficas em francês e inglês). Talvez a palavra “cansaço – dentro da tese de Byung-Chul Han de que somos a civilização do cansaço (mau), uma doença, epidémica, sem verdadeiro antídoto – tenha despertado o interesse do grande público.

Porquê? Porque na nossa época (alucinada pela performance, cujo imperativo económico-moral poderia ser: “que as regras da tua conduta sirvam como modelo universal de performatividade!”) não há reais inimigos exteriores.[1] Nas doenças bacterianas, e nas sociedades da disciplina, era preciso combater as bactérias, ou as ordens, nas viroses, os vírus, era a cena tradicional das patologias modernas. Mas na tardomodernidade (aposta da tradutora para postmodern) a imunização já não trabalha com os meios defensivos normais: fechar ou dificultar o acesso da doença e construir anticorpos. Na época bacteriana, os amigos e inimigos estavam claramente definidos, princípio da Guerra Fria e da oposição proletariado/capitalistas. Esta polarização simplista tornou-se anacrónica, o estrangeiro e o estranho já não são inimigos, mas coisas diferentes, e a simples diferença não possibilita reacções imunitárias. Tanto mais que “O paradigma imunológico não é compatível com o processo de globalização.” (p. 12) A verdadeira ameaça não vem agora de outrem, mas do próprio, cheio de positividade, alimentada, e alimentando, uma sobre-produção e uma sobre-comunicação histriónicas, contra às quais, por serem da mesmidade, não se consegue realmente reagir (dinâmica cancerígena). Por excesso de positividade, a revolta tornou-se impossível, gozamos de uma infinita liberdade de escolha para produzir, consumir e comunicar até ao esgotamento, na vaga esperança de “nos realizarmos”. Segundo Byung-Chul Han, a actual omnipresença da performance demonstra o declínio das sociedades da disciplina e da obrigação descritas por Michel Foucault, hoje o sujeito modelo é o sujeito performativo, arredado de qualquer combate por princípios de justiça. Autodefinindo-se dentro dos limites que ele próprio escolheu para agir e ser. Sujeito pós-colectivo, o seu estilo de vida extrema o individualismo. Senhor e escravo de si mesmo, não se submete a ninguém, excepto a si e à ilusão de uma liberdade benigna sem limites. Em boa verdade, esta liberdade é paradoxal porque exige solidão (“o Eu tardomoderno está totalmente isolado”, p. 34), quando para Han a liberdade é sempre a liberdade com os outros. E este paradoxo acaba por manifestar as linhas patológicas do cansaço: “A sociedade de trabalho e de produção não é uma sociedade livre. A dialéctica do amo e do escravo não desemboca, afinal, numa sociedade em que cada homem que seja capaz de se entregar ao ócio é um ser livre. Ela conduz antes a uma sociedade de trabalho em que o próprio amo se tornou escravo do trabalho.” (p. 35) Por outro lado, a ausência de crenças, o despojamento narrativo do mundo, reforça o isolamento e “o sentimento de efemeridade, tornando a vida nua.” (p. 34)

A “sociedade disciplinar” de Foucault (fabricada em instituições como os hospitais, manicómios, prisões, fábricas, escolas...) foi revogada, “A analítica do poder de Foucault já não é capaz de descrever as mudanças psíquicas e topológicas que aconteceram com a transformação da sociedade disciplinar em sociedade de produção.” (p. 19) Na “sociedade disciplinar” dominava o não, uma negatividade que produzia loucos e criminosos. “A sociedade da produção gera, em contrapartida, deprimidos e frustrados.” (p. 20) É por isso que Han relê o Bartleby de Melville para além das interpretações metafísicas ou teológicas (sobretudo Gilles Deleuze em Critique et clinique), realçando o seu fundo patológico: “Esta ‘história de Wall Street’ apresenta-nos um mundo de trabalho desumano, habitado por pessoas reduzidas, todas elas, a animal laborans.” (p. 45) Mas não se pense que este animal tardomoderno entrou, como transparece em algumas leituras de Bartleby (Deleuze, Agambem...), em negação ou passividade (“I would prefer not to”, Bartleby), ele “é dotado de um Ego tão grande que quase transborda. E é tudo menos passivo.” (p. 33) Só que a sua positividade é patológica, alimenta um sem número de doenças neurológicas e aprofunda o individualismo.

Na época da performance, há uma “violência da positividade, resultante da sobre-produção, sobre-rendimento e sobre-comunicação” (p. 14), e “O esgotamento, a fadiga e a sensação de sufoco perante o excesso não são também […] reacções imunológicas.” (p. 15) Sem uma verdadeira auto-reacção, “A comunicação generalizada e a sobre-informação ameaçam todas as defesas do ser humano.” (p. 14) Já não há sequer gestos impulsivos, primitivos, capazes de desenvolver uma destruição redentora, “A dispersão generalizada, marca da sociedade dos nossos dias, não permite que a ênfase ou a energia da fúria emirjam verdadeiramente. A fúria desenvolve a capacidade de interromper um estado e de fazer nascer um estado novo.” (p. 41) Por isso, as doenças neurológicas alastram, o burnout ou a hiperactividade, por exemplo, retratam bem a dispersão e a positividade, “O prefixo hiper da hiperactividade não é uma categoria imunológica. Representa, pura e simplesmente, uma massificação do positivo.” (p. 17) A relação humana com o tempo alterou-se radicalmente, vive-se em multifuncionalismo (multitasking), dispersão e velocidade, mas isto não representa qualquer progresso civilizacional, “O multifuncionalismo é, com efeito, amplamente praticado pelos animais em estado selvagem. Trata-se de uma técnica de atenção indispensável à sobrevivência dos animais na selva.” (p. 25)

Han foca-se no mundo do trabalho, na vita activa do homo laborans (convocando e desviando-se de Hannah Arendt), este mundo impõe a violência da positividade que forma a nossa interioridade. A sociedade disciplinar, com excesso de regras e fronteiras, de negatividade, foi substituída pela da performance, do sucesso individual, onde cada um se condiciona a si mesmo, na lógica do empreendedor singular. A motivação pessoal, o espírito de iniciativa e a responsabilidade pessoal são agora a linhas de orientação desta sociedade atomizada e sobre-positiva. A negatividade do “dever” foi substituída pela positividade do “poder fazer”, sintetizada no slogan de Obama: “Yes we can!”. As pessoas já não são exploradas por patrões ou instituições, exploram-se a elas mesmas, tornando-se simultaneamente senhores e escravos. Estamos em guerra contra nós mesmos, uma guerra que desemboca num cansaço estéril.

Contra esta vita activa, suicidária, Han elogia a vita contemplativa, o tempo gasto gratuitamente. Por falta de contemplação e de repouso, a nossa civilização dirige-se para uma nova barbárie, a sociedade da performance é patológica. E esta mudança de paradigma acontece de forma invisível, a sociedade da negatividade cede quase secretamente o seu lugar a uma sociedade que tem excesso de positividade, com as suas doenças neuronais, como a depressão, o défice de atenção/hiperactividade ou o burnout. Não se trata, como disse, de nenhuma infecção vinda do exterior, mas de um enfarte da alma, devido a um excesso de positividade. Por isso escapa a qualquer profilaxia imunológica.

No último capítulo, “A sociedade do cansaço”, relativamente redentor, Byung-Chul Han refere que “Enquanto sociedade activa, a sociedade da produção evolui progressivamente para uma sociedade do doping.” (51) Um doping que entretanto foi traduzido pela expressão mais aceitável de neuro-enhancement, e que todos aceitam desde que permita mais rendimento no trabalho, com a única preocupação de se garantir uma certa equidade no acesso a esses fármacos para que isto degenere numa concorrência farmacêutica sem controlo. Mas este produtivismo pobre em negatividade “produz um cansaço e esgotamento excessivos.” (52) Cansaço patológico, porque individualiza, “separa e isola”. Cansaço violento, porque “destrói tudo o que possa haver em comum, tudo o que se possa fazer em conjunto, aniquilando qualquer proximidade e a própria linguagem”. (52)

De onde vem, pois, a “redenção” de que falámos há pouco? Byung-Chul Han remete-nos para Peter Handke e o seu Versuch über die Müdigkeit (1992), onde se  fala de “cansaço alienante” mas também de um bom cansaço, iluminante (que, aliás, ocupa grande parte deste capítulo, como se Han quisesse terminar com uma nota conciliadora), que dá a ver e a pensar, que se situa entre, favorecendo por isso a coexistência. É, diz Han, um “cansaço que habilita o homem para uma serenidade especial, para um não-fazer sereno.” (54) Pelo contrário, “O cansaço associado ao esgotamento é um cansaço da potência positiva. Torna o homem incapaz de fazer alguma coisa.” (55) O cansaço associado ao esgotamento potencia a acção na comunhão, impulsiona para a realização de alguma coisa: “O cansaço de Handke não é o cansaço do Eu esgotado, do Eu exausto […], Handke concebe uma religião imanente do cansaço.” (pp. 55-56)

Vem talvez a propósito convocar Fernando Pessoa e o seu Cansaço, do metrónomo modernista Álvaro de Campos: “O que há em mim é sobretudo cansaço – / Não disto nem daquilo, / Nem sequer de tudo ou de nada: / Cansaço assim mesmo, ele mesmo, / Cansaço. […]” Antevisão do cansaço do “Eu esgotado” de Byung-Chul Han, mas que a mim sempre me insuflou uma melancolia produtiva.

 

[1] Alain Ehrenberg em La fatigue d’être soi. Dépression et société, 1998, defendia, num tom mais sócio-psicanalítico, que o cansaço provinha da obrigação de se ser si mesmo, de uma realização pessoal assumindo aquilo que se é, tarefa muito mais exigente do que a da velha obediência e respeito pelos interditos, onde a identidade se construía essencialmente pelo género, a classe social e o grupo profissional. Tudo isto enquadrado pelas lógicas disciplinares e de autoridade. Mas Ehrenberg avançava já com o mito do empreendedorismo, com poucos vencedores e muitos vencidos, sem nenhum exterior para responsabilizar, o falhanço na idade neoliberal deve-se exclusivamente a quem tentou mal ou não tentou, em vez de agressividade social fica-se com a vergonha de si mesmo. Tudo isto, diz Ehrenberg, aumenta exponencialmente os distúrbios de personalidade.