Todas as cidades são mulheres

Todas as cidades são mulheres
Todas as mulheres irão ser cidades
Quero é saber do chapéu de fazenda
da mais antiga varina de Lisboa
e se ela ainda pensa em sardinhas
no canto mais escuro dos Prazeres
Há quem diga que está no ventre duma baleia
que acabou com o passado e o ofício
em que ainda os pés descalços
tinham mais poesia que os corações
Todas as palavras são sardinhas afogadas
varinas antigas de beleza ritual
a soprar a barriga dos peixes mais feios
para transformar a morte em alimento.

 

Questões pedagógicas

Na verdade, ao ensinar, instalamo-nos
em salas ligeiramente ao lado
em vastas despensas
divisões dos fundos

Explicamos sobretudo os modos de não
morrerem por próprias, alheias mãos
e usamos, a propósito, esquemas práticos
lembranças, os comprovados expedientes

Morrerem pelas próprias, alheias mãos
mesmo que afaguem dedicadas
matérias, cadernos, herbários
esses factos muito breves

Pode ser que corra bem a vida
e assim nos levem
felizes e distantes

É nos dias de verão que as cortinas
esvoaçam transparências
reformulam as salas, o seu abandono
e tornam sábios os cacifos disponíveis
 

«meu velho»

meu velho 

 

o poder com que movia os olhos, já doentes, diante da angústia que o medo da ausência lhe trazia. 

um corpo moribundo. não havia um sol que lhe cobrisse as sombras. seguia sozinho ou já sem ninguém. não sabia os lugares. não conhecia os regressos. perdia as palavras ao longo dos dias. e desaparecia na imprecisão de quem procura ainda um verão, algo de puro, longe das vozes. longe do silêncio. 

 

a tristeza inútil das flores. o abandono com que me atiraste contra silêncios. 

agora somos inúteis. e não há palavras que nos matem a fome. e temos de ficar de olhar intenso a rezar para não sofrer. 

 

e se ao menos a morte te aliviasse a dor. 

 

tudo acabou na lastimável carência de palavras. inválido dos olhos resta o que ficou: a lembrança de beleza.  

 

encosto as mãos ao teu silêncio e debaixo do mundo olhamo-nos até que a morte nos derrube a solidão.

Questões de estilo II (Friedrich Nietzsche)

Há tempos escrevi sobre o estilo a partir de Charles Bukowski, argumentando em torno de códigos e contra-códigos, vozes comuns e vozes próprias, sociedades e singularidades. Hoje completo essa digressão especulativa com Friedrich Nietzsche, esboçando um ponto de vista, é importante reter isto, podia ser outro, e outro, e outro (mas não suporta qualquer um, como alguns crêem).

Nietzsche sempre se preocupou bastante com o estilo discursivo, não para constituir uma fórmula incontestada, mas querendo adequá-lo às suas condições fisiológicas e existenciais (miopia, doenças prolongadas e intensas, viagens frequentes...). Vemo-lo, pois, experimentar várias possibilidades: o ensaio em O Nascimento da Tragédia e nas 4 Considerações Inactuais; uma espécie de texto evangélico em Assim Falou [Falava] Zaratustra; a descontinuidade aforística, ainda que sem fracturas irredutíveis, em Humano, Demasiado Humano, Aurora, Gaia Ciência, Para lá Bem e Mal e Crepúsculo dos Ídolos; o retorno à forma ensaísta em Para a Genealogia da Moral; o panfletário em Ecce Homo, O Caso Wagner, Nietzsche contra Wagner e Anticristo (ou Anticristão). Nietzsche, que dizia ter feito pela língua alemã mais do que qualquer outro, percebeu logo na juventude que a comunicação deve oscilar entre uma Darstellung e uma Dichtung, uma prosa mais explicativa e uma poesia mais intuitiva.

            Experimentemos aqui uma meditação que se aproxime da Enfermaria 6, habitada em grande parte por poetas e poetisas.

 

Em “Scherz, List und Rache”, um dos acrescentos para a edição de 1887 da Gaia Ciência, escreve Nietzsche:

O meu estilo e a minha linguagem seduzem-te?

 O quê, seguir-me-ás passo a passo?

 Cuida de não seres fiel senão a ti mesmo –

 E ter-me-ás seguido – subtilmente! subtilmente![1]

 

[1]Es lockt dich meine Art und Sprach, / Du folgest mir, du gehst mir nach? / Geh nur dir selber treulich nach: – / So folgst du mir – gemach! gemach!”

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