Tópoi desvelados

Helena Almeida, Seduzir, 2002

Uma espécie de penúltima expressão.
Helena Almeida

Em Elêusis dançava-se. A explosão inexcedível do que é da ordem da susceptibilidade, i.e., o (im)possível, amplifica o segredo da partilha comungada naqueles ritos iniciáticos presididos pelas duas deusas gregas. Pulverizando o carácter de mero medium instrumentalizado e manietado a qualquer propósito primacial de utilidade, a dança é ali a inviolabilidade da passagem magmática que não se enclausura e auto-consome, e por isso anula, mas que possui correspondência com a alternativa infindável.

Ao olharmos para Seduzir (2002), de Helena Almeida, vemos gestos heterodoxos: um discreto levantar de saia, as mãos que tocam o chão e ladeiam os pés, o corpo indómito sustido apenas por uma perna, tudo isto como que integrando uma coreografia. Algumas das foto-pinturas de Seduzir evidenciam manchas impositivas de tinta vermelha: mostradas na mão ou pegadas ao chão. Constituindo uma série, plasma proposicional praticamente ubíquo na produção da artista, essa circunstância, num primeiro prisma, poderá associar-se à ideia plana de progressão entendida como registo de continuação mas não necessariamente enquanto narração – entendimento, aliás, que pouca ou nenhuma aderência possuirá em Helena Almeida, como iremos ver.

Se no percurso de Helena Almeida o corpo é omnipresente, a verdade é que em Seduzir ele já não assume uma feição mediata, e por isso secundarizada, mas é antes o núcleo significativo através e no qual converge a indagação memorial. Como a própria admite (Carlos, 2005, p. 60), houve uma inversão no seu trabalho, abandonando a problematização conceptual do cânone pictórico – onde começa e acaba a pintura, o convívio e/ou demarcação com a escultura, com a fotografia, etc - , para chegar às relações que o corpo estabelece auto-reflexivamente, bem como com o que o rodeia de modo activo, i.e. , no âmbito de uma interacção conflitual: surge, assim, a aferição ensaiada e contínua dos limites (corporais) do humano. 

A propósito da génese e contínuo do seu processo criativo, indissociável do modo de estar no mundo, Helena Almeida diz-nos o seguinte:

“Sinto-me quase no limiar onde esses dois espaços [condenação e sobrevivência] se encontram, esperam, hesitam e vibram. É uma tentação aí ficar e assistir ao meu próprio processo, vivendo um sonho com duas direcções. Mas isso é intolerável e com urgência qualquer coisa se liberta em mim como se quisesse sair para a frente de mim própria.” (Carlos, 1987, p. 3)

Esta perspectiva pessoalíssima de dar a ver, poderá prestar-se a esforços hermenêuticos demasiado imperativos e autistas; a arqueologia interpretativa é frequentemente infecunda. 

Assim, o que nos parece mais interessante ampliar talvez seja a noção de franja – o tal “limiar” - associada ao desejo, catalisador impetuoso de energia que, por isso mesmo, requer a capacidade propulsora da paixão.

Ora, o acto de seduzir equivale à entrada, pelo menos tentada, no reino da intimidade, não necessariamente sexual. Se os saltos altos e as pernas podem convocar a ideia de erotismo, ainda para mais concentrada que possa estar nesses pontos devido à ausência do rosto, não nos parece que o óbvio esteja presente. Não caberá falar de tema ou motivo em Seduzir

A propósito desta série, Helena Almeida confessa que se inspirou na irmã, na sua elegância e no facto de, fatalmente doente, ter permanecido pelo menos exteriormente intocada: “E como ela, muita gente tenta parecer bem a qualquer preço.” (ibidem, p. 59). A morte que “pontuou muitas vezes os meus trabalhos” (ibidem, p. 53), sendo o estádio conclusivo real e/ou mítico por excelência, aparece-nos aí directamente agregada à sedução capaz de incorporar em si o íntimo. Vislumbram-se, todavia, matizes que importa evidenciar.

Sendo a morte um dos terrenos mais férteis do cliché, em Seduzir a refutação quer da banalidade, quer do ensimesmamento, mostra-se desde logo pelo teor memorial, ou memoriado, por nós já referido. Se, de certa maneira, foi a morte da irmã a dialogar com esta obra, tratar-se-á de uma memória de experiência, que não será somente passada. A morte de outra pessoa podendo ser sentida como se fosse a nossa:

“A consciência da morte própria ou de outro, é a fonte primeira do terror. Este decorre da própria condição do indivíduo (do seu existir separado) e do desejo de manutenção da autonomia de um corpo, desejo de sobrevivência. Cada corpo está sujeito à acção de outros corpos, à morte vinda do exterior, mas o humano, para além disso, está também exposto à morte que vem de dentro, do “sangue memoriado”, que é a relação com o desaparecimento do outro.” (Lopes, 2003, p. 28)

Escrevendo a partir da obra de Herberto Helder, Silvina Rodrigues Lopes densifica, aqui especificamente a propósito do tópico da morte na poética herbertiana, a dimensão metamórfica, ou pelo menos transformadora, que a limitação pode assumir. No caso do poeta, a morte pode ser tida como um convite, como um estádio dinâmico que exige, longe de concepções nihilistas ou míticas, a robustez sempre posta em causa: “Meu sangue envolve os mortos/como um braço profundo. Solda-os.” No fundo, é um modo de lidar com o medo.

Se a índole rizomática da obra de Herberto Helder postula a fuga “à morte como um estado” (Lopes, 2003, p. 48), uma vez que “a morte é passar, como rompendo uma palavra,/ através da porta, /para uma nova palavra.” (Helder, 2009, p. 63), em Helena Almeida será graças ao tal sonho desejante e desejado, reforçado pela cor, no caso, o vermelho que convoca a medida da encenação como a própria revela, que o “indizível” se diz. “Condenação e sobrevivência” não se anulam dicotomicamente nem porventura se fundem, antes partilham um espaço onde a medição não cabe.

A cor - talvez o eminentemente, ou primariamente, pictórico - na versão precisa mas irradiante presente em Seduzir, adquire uma veemência e dramatismo singulares, ainda para mais servindo-se dessa ferramenta sequestradora da realidade que é a fotografia. Não que a cor seja, como para Kandinsky, um organismo vivo, mas a ideia de contraste, ou abismo, tem lugar privilegiado em Helena Almeida; e a libertação dá-se muito fortemente através da cor – já em Pintura Habitada, a abertura é sintomática, na medida em que a assumpção da cor, o azul cobalto, corresponderá à criação de um território potenciado, e não a uma asfixia ou neutralização.

Para a artista, a arte não pretende ter um ideal ou fim – a recusa de interpretação, entendida como acorrentada ao dogma, é inclusivamente referida (Cf. Carlos, 2005, p. 21) advirá da procura da a-significação, que é o extensivo mais veemente. 

Deleuze afasta vigorosamente a possibilidade de qualquer expressão artística poder ser imitativa/representativa, uma vez que ao estar vertida, por exemplo, numa tela, uma imagem mercê do devir, já se transformou, ou está prestes a transformar-se, em cor ou no contorno/linha. Não cremos que haja, em Helena Almeida, qualquer presença, muito menos intuito, dirigido a um mimetismo mecanizado, daí que haja uma refrega particular com o cliché. Novamente o filósofo francês e o interessante “momento pré-pictórico”, no qual o artista tem de esvaziar, desimpedir ou limpar uma superfície” (Deleuze, 2011, p. 151). No caso concreto de Seduzir, a remoção do que é da ordem do pré-determinado, do cristalizado em inamovíveis certezas cerceadoras do que veicula o desejo, enceta-se num vínculo com a potência. Diz-nos Pico della Mirandola que “habitamos na deserta solidão do corpo”. Corpo enquanto corpografia, mapa atravessado por hipóteses, Seduzir não patenteia a melancolia da desistência: atente-se ao étimo latino do termo “seduzir”, seducere, que remete para a ideia de desvio de caminho ou mudança de direcção. O vermelho que é um lastro, um rasto, uma pegada, i.e., um sinónimo de vivência e recusa. A pura vertigem mortalmente viva que é Seduzir, apegada que está ao real como impulsionador da possibilidade de metamorfose do símbolo, não é catártica, manifestando antes um apelo consciente à recusa de fim.

Ao contrário de algumas propostas radicais de criação de um conceptualismo artístico de feição rarefeita – veja-se o caso de Joseph Kosuth e a sua desmaterialização completa do objecto, com a correlativa redução mental, que pretende solucionar, aniquilando, a indefinibilidade imanente a um certo entendimento de Arte Conceptual ainda de tipo referencial Helena Almeida, no âmbito pessoal mais concreto, e por isso íntimo, do seu fazer artístico, entende a pintura, mais do que enquanto elenco de soluções ou modelos, como problematização. A indissociabilidade inelutável entre vida e obra, que não significa que ambas possam ser mutuamente comutadas, e muito menos advindas de um biografismo ingénuo e frívolo, assume em Seduzir um semblante indomável porque a-fundamentado, e por isso apto e predisposto a aproximações inúmeras e constituintes. Deste modo, o sujeito(-corporal) vai reclamando uma modelação volúvel, parcialmente inerente ao seu estado e inserção na Natureza, mas não lhe obedecendo em absoluto.

Com efeito, a figura, em Seduzir, não preconiza o apagamento fáctico mas o destapamento que permite um anonimato que, alargando a incidência da exposição e do ensaio, serve de igual modo enquanto delineamento relativo. Por outras palavras, o que estará em causa é a relação com o caos, igualmente cara ao pensamento de Deleuze: se o abstraccionismo ignora o caos, e o expressionismo abstracto vai demasiado além, o diagrama – que é a operação a-subjectiva por excelência que prepara a pintura e participa na relação da mesma com a figura – terá de ser minimamente temperado, sob pena de destruir ou impedir que as sensações se dêem e circulem.

Ora, no caso concreto desta série de Helena Almeida, o conluio desviante e instável entre o nítido – a cor, a seriação e o arame enrolado na perna -  e o velado – o rosto (“porta-voz”  des-centrado?) e os movimentos – acentua a análise e a disposição em relação ao caos, i.e., ao(s) limite(s). A morte, a degradação e a finitude físicas do que é humano, são confrontadas graças à produção de rupturas e descontinuidades que acrescentam o eventual, num metacorpo condenado a sobreviver e cuja textura é feita de carne e de desejo.

Poder-se-á, assim, comparar com Elêusis, esse início da enigmaticidade no qual a dança permanece e se vai inscrever eternamente de passagem em passagem, não sendo esconderijo mas antes procura de emoções, desimpedidas que estão pelo mistério. Só isso se conhece uma vez que apenas isso pode ser conhecido: porventura não será a celebrante dança de O Sétimo Selo, de Ingmar Bergman, mas sim a pungente e efectiva experimentação que é ir dançando nos intervalos.

 

Referências bibliográficas:

 

  • Carlos, Isabel e Phelan, Peggy, intus (2005), Lisboa, Civilização Editora
  • Deleuze, Gilles, Lógica da Sensação (2011), Lisboa, Orfeu Negro
  • Deleuze, Gilles/ Guattari, Félix, Mille Plateaux – Capitalisme et Schizophrénie 2 (2013), Paris, Les Éditions de Minuit
  • Helder, Herberto, Ofício Cantante – poesia completa (2008), Lisboa, Assírio e Alvim
  • Lopes, Silvina Rodrigues, A Inocência do Devir (2003), Lisboa, Edições
  • Vendaval
  • Marchan- Fiz, Simón, Del arte objetual al Arte de concepto: Las artes plásticas desde 1960 (1974), Madrid, Alberto Corazon

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Temporizador

Se apostasses o teu salário do mês  
na minha sabedoria noturna  
compreenderias a probabilidade de insucesso  
nas mesas de jogo e nas roletas de casino  
bem como a astúcia de um quadril gordo  
subindo o degrau do autocarro urbano.   

No entanto tu não és de fé  
nem de contratos apalavrados  
e é por isso que nunca te levarei  
a ver como a lua se reflete frente ao mar  
despida  
durante a madrugada encostada à arriba.  
Porque tu não és de acreditar em uivos  
do oceano que conheces matinal  
nem de gastar o teu dinheiro inútil  
nas minhas palavras úteis
lançadas como dados por uma sorte  
que nunca será tua  
enquanto aqui estiver para ti: 
Espreitando no canto direito onde te sentas  
assaltando o bolso do blazer de família  
dormindo na gaveta da única cabeceira  
onde sei teres o livro dado pelo alfarrabista da tua melódica  
infância  
e o Le Locle que persiste em contrastar
com a tua camisa de flanela.

 

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A literatura no estômago

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A editora Assírio & Alvim conta no seu catálogo com um pequeno panfleto intitulado A Literatura no Estômago, de leitura obrigatória para todos quantos se enfadem só de ouvir a expressão “meio literário”. O meio literário francês repudiado por Julien Gracq em 1950 não cheira pior do que o meio literário português de hoje. Como não é habilidade louvável, essa de distinguir níveis de podridão, antes importa assinalar que Gracq, homem seríssimo, como comprova a recusa do prémio Goncourt (em 1951), não passava por hipócrita. Queixava-se do “vedetariato do escritor” (expressão a que recorre Ernesto Sampaio no texto de apresentação) ou da incapacidade crítica da parasitagem literata instalada nos jornais, nas universidades ou nos júris dos prémios, sem desejar ascender à posição de vedeta.

O texto de Julien Gracq ensina-nos que o charlatanismo ou o carreirismo não são especificidades portuguesas. Ainda que indigne ao patriota português saber que não há nada à face da Terra que já não tenha sido feito por alguém, não parece razoável acreditar que certas singelas práticas, tais como atribuir cinco resplandecentes estrelas (para os que não sabem, a literatura resume-se às estrelas, aos adjectivos e ao gosto / não gosto) a livro dado à estampa por amigo ou amigo do amigo (“Rimbaud redivivus”), sejam originalidade lusitana. A Literatura no Estômago é uma obra sobre este tempo, sobre qualquer tempo. Quando na apresentação descreve os prémios literários como um “acúmulo de pequenas corrupções e imposturas, de invejas e conspirações ridículas, de conluios vergonhosos entre jurados, de mandarinatos e tráficos de influência”, Ernesto Sampaio está a reprovar a forma como sempre se distribuíram honrarias na literatura. Não importa que estejamos em 1950, em 1985 ou em 2015. Os prémios constituem problema num planeta habitado por mamíferos da ordem dos primatas, isto é, por seres corruptíveis e parciais. Escreve Gracq que há em literatura lugares invejáveis “que se distribuem como essas pastas ministeriais caídas nas mãos de candidatos em nada indicados para o efeito senão pelo facto de estarem sempre lá.” Os que estão sempre lá: os que saltam de apresentação em apresentação, os que têm lugar cativo nessa multiplicidade de festivais literários montados com o intuito de glorificar os que sempre lá estão, os que não desmontam, que não escrevem, nem lêem, os que só têm tempo para os eventos e para debitar  frases redundantes e ocas.

“Um ansioso, um nervoso. Aqui estou! Aqui estou – aqui estou sempre!”, brada o escritor francês que, segundo Gracq, existe muito menos na medida em que é lido do que na medida em que dele falam. O presente português é ainda mais negro. O sucesso do escritor lusitano também depende do número de vezes que aparece. Quem não se mostra, cai no esquecimento. Aparecer e opinar. Estar sempre lá. Os condimentos que conduzem à fama desviam da arte. A literatura, esta literaturazinha que não reside nos livros, que depende de um constante espectáculo montado por e para situacionistas, é uma literatura burocratizada que somente serve tarefeiros incapazes de se dedicarem à reclusão e ao silêncio ou de sacrificarem tudo em prol de duas frases bem escritas. E por isso oscila entre a retrete e o vómito. Em que escritores pensámos ao longo da leitura de A Literatura no Estômago? Nos franceses de há sessenta anos, nos portugueses de agora? Pensámos que a literatura, como quase tudo em que o ser humano toca, é um lixo.