Prefácio de «Altazor»

Vicente Huidobro, Altazor
Tradução: João Moita

Vicente Huidobro, Picasso

Vicente Huidobro, Picasso

 

Nasci aos trinta e três anos, no dia da morte de Cristo; nasci no Equinócio, debaixo das hortênsias e dos aviões do calor.
Tinha um profundo olhar de borracho, de túnel e de automóvel sentimental. Lançava suspiros de acrobata.
O meu pai era cego e as suas mãos eram mais admiráveis do que a noite.
Amo a noite, chapéu de todos os dias.
A noite, a noite do dia, do dia ao dia seguinte.
A minha mãe falava como a alvorada e como dirigíveis a despenharem-se. Tinha cabelos cor de bandeira e olhos cheios de navios distantes.
Uma tarde peguei no meu pára-quedas e disse: «Entre uma estrela e duas andorinhas». Eis a morte que se aproxima como a terra se aproxima do balão que cai.
A minha mãe bordava lágrimas desertas nos primeiros arco-íris.
E agora o meu pára-quedas cai de sonho em sonho pelos espaços da morte.
Ao primeiro dia encontrei um pássaro desconhecido que me disse: «Se eu fosse dromedário não teria sede. Que horas são?» Bebeu as gotas de orvalho do meu cabelo, lançou-me três olhares e meio e afastou-se dizendo: «Adeus», com o seu lenço soberbo.
Por volta das duas, naquele dia, encontrei um avião precioso, cheio de escamas e caracóis. Procurava um recanto do céu onde resguardar-se da chuva.
Ao longe, todos os barcos ancorados nas tintas da alvorada. De repente, começaram a desprender-se, um a um, arrastando-se como estandarte em farrapos de incontestável alvorada.
Com a retirada dos últimos, a alvorada desapareceu por trás de algumas ondas desmesuradamente infladas.
Então, ouvi falar o Criador, sem nome, que é um simples buraco no vazio, belo como um umbigo:
«Fiz um grande ruído e esse ruído formou o oceano e as ondas do oceano.
«Esse ruído estará sempre colado às ondas do mar e as ondas do mar estarão sempre coladas a ele, como os selos aos bilhetes-postais.
«Depois teci um longo barbante de raios luminosos para coser os dias um a um; os dias que têm um oriente legítimo ou reconstituído, porém indiscutível.
«Depois tracei a geografia da terra e as linhas da mão.
«Depois bebi um pouco de conhaque (por causa da hidrografia).
«Depois criei a boca e os lábios da boca, para aprisionar os sorrisos equívocos, os dentes da boca, para vigiar os disparates que nos vêm à boca.
«Criei a língua da boca que os homens desviaram do seu papel, fazendo-a aprender a falar…, a ela, ela, a bela nadadora, desviada para sempre do seu papel aquático e puramente acariciador.»
O meu pára-quedas começou a cair vertiginosamente. Tal é a força de atracção da morte e do sepulcro aberto.
Podeis crê-lo, o túmulo tem mais poder do que os olhos da amada. O túmulo aberto com todos os seus ímanes. E isto to digo a ti, a ti que quando sorris fazes pensar no princípio do mundo.
O meu pára-quedas enredou-se numa estrela apagada que seguia a sua órbita conscienciosamente, como se ignorasse a inutilidade dos seus esforços.
E aproveitando este repouso bem merecido, comecei a encher com profundos pensamentos as casas do meu tabuleiro:
«Os verdadeiros poemas são incêndios. A poesia propaga-se por todo o lado, iluminando as suas consumações com estremecimentos de prazer ou de agonia.
«Deve-se escrever numa língua que não seja materna.
«Os quatro pontos cardeais são três: o sul e o norte.
«Um poema é uma coisa que será.
«Um poema é uma coisa que nunca foi, que nunca poderá ser.
«Foge do sublime externo se não queres morrer esmagado pelo vento.
«Se eu não fizesse pelo menos uma loucura por ano, daria em doido.»
Pego no meu pára-quedas, e da ponta da minha estrela em marcha lanço-me à atmosfera do último suspiro.
Rolo interminavelmente sobre as rochas dos sonhos, rolo entre as nuvens da morte.
Encontro a Virgem sentada numa rosa, e diz-me:
«Observa as minhas mãos: são transparentes como as lâmpadas eléctricas. Vês os filamentos de onde escorre o sangue da minha luz intacta?
«Observa a minha auréola. Tem algumas lascas, o que prova a minha ancianidade.
«Sou a Virgem, a Virgem sem mancha de tinta humana, a única que não o é pela metade, e sou a capitã das outras onze mil que estavam na verdade demasiado restauradas.
«Falo uma língua que enche os corações segundo a lei das nuvens comunicantes.
«Digo sempre adeus, e fico.
«Ama-me, meu filho, pois adoro a tua poesia e ensinar-te-ei proezas aéreas.
«Tenho tanta necessidade de ternura, beija-me os cabelos, lavei-os esta manhã nas nuvens da alba e agora quero dormir sobre o colchão da neblina intermitente.
«As minhas lágrimas são um arame no horizonte para o descanso das andorinhas.
«Ama-me.»
Pus-me de joelhos no espaço circular e a Virgem ergueu-se e veio sentar-se no meu pára-quedas.
Adormeci e recitei então os meus poemas mais belos.
As chamas da minha poesia secaram os cabelos da Virgem, que me agradeceu e se afastou, sentada sobre a sua rosa tenra.
E eis-me aqui, só, como o pequeno órfão dos naufrágios anónimos.
Ah, que bonito…, que bonito.
Vejo as montanhas, os rios, as selvas, o mar, os barcos, as flores e os caracóis.
Vejo a noite e o dia e o eixo em que se juntam.
Ah, ah, sou Altazor, o grande poeta, sem cavalo que coma alpista, nem que aqueça a sua garganta com o brilho da lua, mas com o meu pequeno pára-quedas como um guarda-sol sobre os planetas.
De cada gota de suor da minha testa fiz nascer astros, os quais vos deixo para que os baptizem como a garrafas de vinho.
Estou a perceber tudo, tenho o meu cérebro forjado em línguas de profeta.
A montanha é o suspiro de Deus, subindo em termómetro inflado até tocar os pés da amada.
Aquele que tudo viu, que conhece todos os segredos sem ser Walt Whitman, pois jamais teve uma barba branca como as belas enfermeiras e os riachos gelados.
Aquele que ouve durante a noite os martelos dos moedeiros falsos, que são unicamente astrónomos activos.
Aquele que bebe o copo quente da sabedoria depois do dilúvio obedecendo às pombas e que conhece a rota da fadiga, o sulco fervente que deixam os barcos.
Aquele que conhece os armazéns de recordações e de belas estações esquecidas.
O pastor, o pastor de aviões, o condutor das noites extraviadas e dos poentes amestrados até aos pólos únicos.
A sua queixa é semelhante a uma rede pestanejante de aerólitos sem testemunha.
O dia levanta-se no seu coração e ele desce as pálpebras para fazer a noite do repouso agrícola.
Lava as suas mãos no olhar de Deus, e penteia os seus cabelos como a luz e a colheita dessas frágeis espigas da chuva satisfeita.
Os gritos afastam-se como um rebanho sobre as colinas quando as estrelas dormem depois de uma noite de trabalho contínuo.
O belo caçador diante do bebedouro celeste para os pássaros sem coração.
Sê triste tal qual as gazelas ante o infinito e os meteoros, tal qual os desertos sem miragens.
Até à chegada de uma boca inflada de beijos para a vindima do deserto.
Sê triste, pois ela te espera num recanto deste ano que passa.
Está, talvez, no extremo da tua canção próxima e será bela como cascata em liberdade e rica como a linha equatorial.
Sê triste, mais triste do que a rosa, a bela jaula dos nossos olhares e das abelhas sem experiência.
A vida é uma viagem em pára-quedas e não o que queres crer.
Vamos a cair, a cair do nosso zénite ao nosso nadir, e deixamos o ar machado de sangue para que se envenenem os que vierem amanhã respirá-lo.
Para dentro de ti mesmo, para fora de ti mesmo, cairás do zénite ao nadir porque esse é o teu destino, o teu miserável destino. E de quanto mais alto caíres, mais alto será o ressalto, mais longa a tua duração na memória da pedra.
Saltámos do ventre da nossa mãe ou da ponta de uma estrela e vamos a cair.
Ah meu pára-quedas, a única rosa perfumada da atmosfera, a rosa da morte, despenhada entre os astros da morte.
Ouviste? Esse é o ruído sinistro dos peitos fechados.
Abre a porta da tua alma e sai para respirar do lado de fora. Podes abrir com um suspiro a porta que o furacão tiver fechado.
Homem, aqui está o teu pára-quedas, maravilhoso como a vertigem.
Poeta, aqui está o teu pára-quedas, maravilhoso como o íman do abismo.
Mago, aqui está o teu pára-quedas que uma palavra tua pode converter num pára-subidas maravilhoso como o relâmpago que quis cegar o criador.
De que estás à espera?
Mas eis o segredo do Tenebroso que se esqueceu de sorrir.
E o pára-quedas aguarda amarrado à porta como o cavalo da fuga interminável.

Resultados Milagrosos

“Meu filho adolescente anda a ler os estoicos”, ele disse
uma janela domina
(não há outra palavra para)
relutância em admitir que a luz é âmbar
(sendo as velas um perigo para o edifício inteiro)
então escrevi a meu pai o médico
não excluía de todo a possibilidade de uma hérnia
era Lídia
quem me respondia agora era o olho direito
ou seja, a cirurgia
vou perguntar mais uma vez  “de quem é essa letra?”
meus irmãos, bem entendido, não disseram nada
tiveram outra criação
não pude me conter quando ele se confessou triste por estar ausente do consultório há mais de uma semana
(estranho, não? a vida fora contemplando um bocado monasticamente
a ideia do suicídio
para ser acometido tão logo divisasse a curva dos trinta por esse – como se diz? – “insuportável desejo de viver”)
não, talvez não
lançou um olhar um depois do outro sobre eles e disse quero a sua idade
“será possível sem o recurso às cifras?”
não eu não vou descansar
não eu não vou descansar até que
não vou aceitar não como não vou aceitar como não como não como resposta
não consigo cogitar dos fatores que levam um Indivíduo a optar pela Medicina
(ele pretende, de fato, reembolsar o atual amante de sua esposa pela passagem?)
e afinal quando eles chegam não configura exatamente distensão
pelo contrário
resta sempre engatilhado o medo de folhear aquele antigo volume e reencontrar-lhe uma mesma inflamação nas amígdalas
não comigo só (o caso de tão brandos reencontros)
a caminho do cinema, vejo-me obrigado a explicar para minha mãe que nossa última entrevista não foi triste e sim
construtiva
“é bom que a casa fica mais arrumada” sim
que mais que ela faz?
ela domina (não há outra palavra para) certo configuro de muros e telhas
e as cheíssimas sombras da vizinha bromélia
concordo –, isto não é vida
sente-se nos quadris a troca de estação
retiro o casaco de seus referentes
esta planta é de mau tom
minha família inteira resolve colocar as diferenças de lado e reunir-se num armazém do cais do porto
no intuito de me alertar para

Entrevista a um estudante de doutoramento

Jorge Chan, The Origin of the Thesis, PhD Comics

Jorge Chan, The Origin of the Thesis, PhD Comics


Hoje resolvemos olhar de perto uma realidade que afecta muitos dos nossos colaboradores. A sua condição de estudantes de doutoramento/ jovens investigadores. Fomos entrevistar um destes jovens. O estudante combinou encontrar-se connosco num café na esquina da Biblioteca Nacional. Informou-nos que não teria muito tempo para conversar connosco, mas que, ainda assim, tinha aceite porque entendia o interesse documental da entrevista. De ténis all stars, óculos de massa, o estudante exibe o tique nervoso de tamborilar com os dedos na mesa.

É comum os estudantes de doutoramento em Portugal gerirem o seu próprio horário de trabalho. Trabalha muitas horas por dia?

É só quando me começo a sentir como um autómato que sinto que tenho de parar. É raro, mas quando me dá atinge-me como o equivalente metafísico de uma dor de dentes.

Faz parte de um grupo de investigação coeso? Há muito diálogo entre os jovens investigadores?

Diálogo, não muito. As equipas de investigadores são pequenas e agora com os cortes nos orçamentos vai ser cada vez mais cada um por si e deus a olhar por todos. Nas humanidades então cada especialista tende a ser um exemplar único. Também temos uma tradição de não haver muita competição entre especialistas e Portugal é um país de brandos costumes em que se gosta de honrar a tradição. Mas costuma acontecer que por ciclos me sento sempre perto da mesma pessoa aqui na biblioteca. Acontece que estas pessoas por vezes não estão aqui por períodos extensos. Dois, três meses e desaparecem. Eu próprio me esqueço frequentemente do elemento humano. E há alturas em que entretenho conversas de corredor abjectas, com indivíduos que me começam por perguntar qual é o meu orientador, a faculdade e o tema da minha pesquisa, mas cuja maior curiosidade mesmo é saber a quantidade de palavras que sou capaz de debitar por dia no manuscrito da minha tese, na intricada relação tempo/débito de palavras em manuscrito word. Este é o tipo de diálogo intelectual que mais comummente tenho entretido. E esta é sempre a questão que mais ansiedade gera entre os estudantes de doutoramento. Na verdade, não raro mal orientados ou completamente desorientados, esta é, à medida que o financiamento se esgota, a grande questão. A menina está a apontar? Questão com Q grande para se entenda que é conceito. Quer que eu explicite o que entendo por Questão?

Não, deixe estar, não é necessário. Algum motivo em particular para ser essa a questão determinante?

Bom, se escrevemos menos do que o nosso interlocutor, ele poderá adoptar uma atitude paternalista, dar-nos conselhos. Dar-se a intimidades. Pousar-nos a mão no ombro. Se ele próprio for de escrever pouco, as suas outras vulnerabilidades começam a surgir. Dificuldades em fazer o índice. Ater-se ao plano. Publicar artigos. Mas, no fundo, este indivíduo sente-se bem com ele próprio se dermos a entender que estamos pior do que ele. No entanto, se escrevemos mais, mas muito mais, ele poderá sentir-se emasculado. Os sintomas variam. É sempre preciso ter cuidado com o tipo de resposta que se dá, esta é a pergunta crucial, que muitas vezes pode definir toda a estrutura das relações sociais de um estudante de doutoramento. Ao responder é preciso medir o grau de ansiedade ou relaxamento do nosso interlocutor. Às vezes não é tanto o caso de não melindrar a pessoa, quanto o de não a deixar à beira de um ataque de nervos. Há estudantes de doutoramento muito nervosos. A menina sabe, escrever tese em Portugal não é emprego, é maneira de tentar enganar o desemprego, mas a desocupação às vezes sobe à cabeça do jovem investigador lusitano.

A minha eficácia é da ordem da da personagem de Uma Thurman em Kill Bill. Em média oitocentas palavras em meia hora. Sou capaz de escrever dezasseis horas sem parar, às vezes escondo-me aí nos recantos dos guardas para conseguir ficar 24 horas na biblioteca. Vantagem, vantagem, vantagem. Liberdade? Criatividade? Isso é para meninos. Eu é como os ciclistas num sprint de montanha. Nem para ir à casa de banho paro. Este saquinho com o tubo intravenoso? Cafeína, menina.

E escreve muito num dia de trabalho normal?

A minha eficácia é da ordem da da personagem de Uma Thurman em Kill Bill. Em média oitocentas palavras em meia hora. Sou capaz de escrever dezasseis horas sem parar, às vezes escondo-me aí nos recantos dos guardas para conseguir ficar 24 horas na biblioteca. Vantagem, vantagem, vantagem. Liberdade? Criatividade? Isso é para meninos. Eu é como os ciclistas num sprint de montanha. Nem para ir à casa de banho paro. Este saquinho com o tubo intravenoso? Cafeína, menina. Directamente na veia. Para que não haja dúvidas do meu amor à produtividade. Em academia que se preze o estudante de doutoramento nunca tem tempo que chegue para fazer todo o trabalho que tem para fazer.  Neste momento tenho um manuscrito de quatro mil e quinhentas páginas. O meu objectivo é debitar mais mil nos próximos dois meses.

Quando isto estiver acabado, vou precisar de assaltar um banco para pagar a impressão e de um guindaste para entregar na secretaria. A funcionária estrábica que costuma aceitar a submissão de teses lá na faculdade vai entortar ainda mais os olhos.

E acredita ser possível?

A este ritmo acredito ser possível. Quando isto estiver acabado, vou precisar de assaltar um banco para pagar a impressão e de um guindaste para entregar na secretaria. A funcionária estrábica que costuma aceitar a submissão de teses lá na faculdade vai entortar ainda mais os olhos.

E acredita que haverá um júri disposto a ler uma tese com essa extensão?

O júri? Não conseguirá articular uma palavra por causa das cefaleias, causadas por excessiva exposição a tinta impressa em papel. Os únicos arguentes possíveis desta tese serão os que não a leram (em média estima-se que haja sempre uns três ou quatro desses em cada júri de doutoramento).  

É comum os estudantes de doutoramento gerirem bem esse tipo de pressão?

Nem sempre, menina, nem sempre. Nunca me hei-de esquecer deste tipo. Víamo-nos todos os dias, e até chegámos a trocar umas palavras, nos cinco minutos em que os estudantes de doutoramento se permitem ter vida própria (houve uma altura em que o meu intervalo coincidia com o dele). Um dia abriu dois livros à minha frente, abriu um terceiro, fechou-o com estrondo e raiva. Ao contrário da rotina o tipo nem tinha tirado as coisas da mochila. Com o rosto congestionado, começou a soluçar incontrolavelmente, pegou no casaco e desapareceu para nunca mais. Um colega teria refutado a sua hipótese, ou ele tinha descoberto que ela estava errada, ou que a sua tese já teria sido escrita. Eu cá não perco tempo a ler. Até no teclado do multibanco às vezes desato a debitar fragmentos de tese. No piano da minha tia. No ombro da deleitosa esposa a tentar fazer amor. Na toalha de mesa à espera do jantar.

Mas com esse grão de empenho não teme uma crise de nervos? Um esgotamento?

Não. É como eu sempre digo, menina, o truque para ser bem sucedido a escrever uma tese de doutoramento é não parar para pensar. Nunca.

O descontrolo da recepção

O magazine de artes ípsilon, suplemento do jornal Público de 10/10/2014, traz uma belíssima reportagem/entrevista de João Bonifácio a Daniel Victor Snaith, ou melhor, o músico de electrónica Caribou. O motivo está no novo álbum, Our Love, de alguém que põe multidões dionisíacas em instâncias de férias ou festivais de massas a delirar em modo bacante.

Confesso que não tinha nenhuma das suas músicas na minha playlist mais pessoal, e só peguei no artigo por causa do Bonifácio e do título: “Agora sou azeiteiro” (deslumbrante). Parece que Caribou, doutorado em matemática, começou a usar “todos os truques da electrónica dançável”, mas mesmo assim continua, diz Bonifácio, a ser bom e mais “esperto do que ele queria”.

Fazendo do título uma jangada, naveguei no fluxo do texto com um olho nas margens, pronto a saltar umas páginas, mal me sentisse enfadado, até um campo mais adequado à minha zona de conforto intelectual. E lá fui indo, do espanto do músico matemático em ver-se venerado nas bebedeiras colectivas dos adolescentes de Ibiza, degradado por um “hedonismo total e desbragado”, até algumas dicas sobre como fazer uma batida que arrebate jovens cheios de acne.

Mas a meio do cruzeiro uma iluminação diferente fez emergir algo que me interessa muito, formando uma espécie de praia privada: Caribou, um arquitecto musical obcecado por novas sonoridades, fugindo da banalidade como alguém asséptico da porcaria, desolado pela recepção esfusiante do turismo de bebedeira sul-de-espanha às suas composições híper-racionais, acaba dizendo que não tem qualquer controlo sobre quem ouve a sua música, “Tenho de deixar ir e aceitar”. A antiga tentativa de supervisão passava por pensar muito a composição, fugir ao óbvio, ao esperado, desconstruir os clichés da música electrónica de massas; conduzindo o público a contorcionismos pré-programados.

Este fracasso da ditadura estética libertou novas forças criativas, não já pretensiosamente inovadoras, sempre a resvalar para a terrível necessidade de afirmação artística do artista (própria aos neófitos do mundo da arte), mas assentes na superação do complexo de ego (será que plagio alguém?). Agora deixa que pulsões menos conscientes decidam o fio condutor das obras, no seu último disco há, diz, menos filtros ou truques para moldar o que sai naturalmente.

Não sei se, como escreve Bonifácio, Caribou descobriu o super-ego (estou tentado a ver nesta ideia um lapso científico), mas a evidência de que nunca se controla o resultado do que produzimos, que a música, livros, ou outras obras de arte, depois de lançadas no campo dos receptores ganham uma autonomia que desarma qualquer autor, conduziu-o a outro patamar de criatividade, liberto da angústia em definir modos de recepção; sobretudo pelo medo de ser visto, ouvido, como um compositor fácil, previsível. Caribou despeja agora com outra fluidez as músicas nos corpos cheios de psicotrópicos das rave party, deixando que façam delas o que bem entenderem. Assim, também ele recompõe melhor as constelações de oitavas que com certeza sobre-povoam o seu cérebro musical.