Jogar ténis com Caravaggio

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Quem passear pelas salas do Museu Capodimonte em Nápoles não tem muito por onde escapar a uma cacofonia de arte sacra nas galerias principais. Alguma dela, há que reconhecê-lo, talvez não merecesse ter sobrevivido ao teste do tempo, quanto mais adornar as paredes de um museu. Antes de se entusiasmar demasiado com a possibilidade de um encontro com tesouros injustamente esquecidos, admita abertamente a possibilidade de que certas coisas foram e são esquecidas por boas razões. Este argumento continua a ser válido mesmo se acolhermos sem polémica um outro: de que há um valor histórico na arte, que alguns quadros desinteressantes testemunham pelo menos esse valor: a passagem do tempo que deu lugar a formas mais interessantes, a expressões mais desafiantes dos mesmos temas.

Tomados nos seus contextos, a presença destes quadros nestas salas é relevante para esclarecer o que em determinada época terá escapado às suas convenções, para nos deixar apreciar melhor a arte que excede o seu tempo. Acresce a isto que há pequenas jóias a serem descobertas no trabalho de poetas muito menores. Por exemplo, a beleza dos anjos que se abraçam nas Sete obras de Misericórdia de Caravaggio, o quadro monumental alojado desde sempre na igreja do Pio Monte della Misericordia, no quarteirão velho de Nápoles, a beleza desses anjos é muito mais evidente depois de oitenta pintores de sacristia martelarem em nós a culpa que o fiel deve sentir pelo sacrifício do Cristo em sucessivamente desinspiradas representações da crucificação, ou da descida da cruz, ou da positivamente anacrónica representação de respeitáveis cardeais metidos a martelo na cena da crucificação. As sete obras... é um dos três quartos da parte final da vida de Caravaggio, produzidos nesta venerável cidade depois de ele ter fugido de Roma por ter assassinado um homem (depois de uma altercação durante um jogo de ténis)[1].

O melhor que alguns quadros mais banais fazem por nós é darem-nos a noção de que todo o sentimento de apocalipse eminente de sucessivas gerações expostas a uma crise económica e política que se prolongou durante séculos acaba por trazer à superfície algo de bem mais valioso, algo que tem a sua expressão mais acabada em obras como este quadro de Caravaggio. 

Há um sentido do teatral que não se confunde em Caravaggio com um sentido do espectáculo, ou com o sublinhar repetitivo - sem possibilidade de equívocos - de uma mensagem monótona de implicações morais e rituais óbvias. Os fundos invariavelmente negros dos quadros de Caravaggio, o chiaroscuro que coloca as figuras humanas em relevo enfatiza expressões, movimentos, isola a beleza, a fealdade, o terror, ou a ternura de certos momentos. O modo como uma perna ou um braço é flectido devolve certeza, angústia, desconforto, dor, sensualidade, divertimento. Nas Sete Obras de Misericórdia dois anjos entrelaçam-se ao alto para sustentar a Virgem e o Menino, mas nós vemos apenas a sua queda eminente, a sua forma de precipitação que instaura o desequilíbrio, sublinha o caos em que actos de misericórdia afinal se desenrolam. Quase que não parece haver uma reconciliação possível entre tudo o que este quadro tenta representar. Uma unidade. O que é expressividade? O olhar sobre determinada coisa que pudesse corrigir uma falha? Emendar, ao comunicar-se, o golpe fundo e angustiante de uma queda a toda a velocidade em direcção ao nada? Nós hoje não chamaríamos a isso misericórdia, mas sabemos que a luz recairia ainda sobre as costas nuas da figura no canto inferior esquerdo, sobre a qual é lançado um manto. Não o que é a expressividade, então. Mas antes a expressividade das figuras neste quadro de Caravaggio encontra a falha no olhar do observador, o eco de qualquer coisa que fazia falta. Se a arte contém algo que salva é algo de temporário e intrinsecamente utilitário, é o que este quadro parece sugerir. A bondade enquanto conceito abstracto, enquanto alegoria, são afinal alguns gestos praticados continuamente.

O caos de Caravaggio depende do nosso silêncio. O que acontece entre o momento de olhar e entender é algo no mesmo comprimento de onda de lançar um fósforo à escuridão. Antes de este se extinguir, a profundidade do que acontece ilumina um continente, mas não dura, o mundo continua lá fora. Não dura mas fica connosco, estas linhas rabiscadas à pressa tentam afinal dar conta da vertigem dessa viagem. O que é ao certo isso? Uma imagem ficar muito tempo connosco? Acender-se inesperadamente muitos anos depois, noutro contexto, o seu rasto luminoso unindo um ponto no passado a outro no presente, dando-nos a ilusão, sem neutralidade nenhuma afinal, de que há alguma coerência para esta coisa que sou eu. Enquanto levantamos a cabeça, antes de sairmos de Pio Monte della Misericordia, lembramo-nos de uns versos de Geoffrey Hill que podiam acompanhar este quadro: Consensual angel spinning this word’s thread/ he descends/ and light-sensitive darkness/ follows him down (de Psalms of Assize).


[1] “Only certain details of the circumstances surrounding the bloody quarrel can be reconstructed from criminal records. It involved four opponents on both sides and appears to have erupted during a pallacorda match, a ball game not unlike tennis. But this simply turned into an occasion to settle outstanding scores... Not insignificant was the fact that the artist and his adversary had both wooed the courtesan Fillide Melandroni.” Sebastian Schutze, Caravaggio. The Complete Works. (Taschen, 2015, 166).

Adam Zagajewski, "Vocês são os meus irmãos mudos" 

Tradução de João Ferrão e Anna Kuśmierczyk

Vocês são os meus irmãos mudos, 
os mortos. 
Jamais vos esquecerei. 

Em velhas cartas encontro traços da vossa escrita, 
que trepam até ao topo da página
como um caracol a subir o muro de um hospital psiquiátrico. 

Os vossos telefones e moradas acampam continuamente
nos meus cadernos, esperam, dormitam. 

Ontem estive em Paris, vi centenas de turistas
cansados e gelados. Pensei, são como
vocês, não podem encontrar um lugar, circulam inquietos. 

E todavia, pareceria que isto é tão fácil, viver. 
Basta um punhado de terra, um navio, um ninho, uma prisão, 
um pequeno fôlego, algumas gotas de sangue e saudade. 

Vocês são os meus mestres, 
os mortos. 
Não se esqueçam de mim. 

Nota de leitura (10)

Apollo

Contemplo teu rosto
como um astronauta

que pisou a lua
e por uma noite

de Agosto, sentado
no umbral da casa

(trinta anos depois
dos únicos, poucos,

verdadeiros dias
da vida que teve)

levanta a cabeça
para olhar o céu

e pensa consigo:
Oh, eu estive lá.

José António Almeida
A Mãe de Todas as Histórias
Lisboa: Averno, 2008, p. 49

A universalidade que aqui tenho vindo a discutir e defender em relação à forma poética (porque uma coisa é a forma poética e outra a Poesia), sei que é frágil e facilmente rebatida. No entanto, volto a ela com o poema acima reproduzido. Para mim é um dos mais belos poemas de amor escritos nos últimos vinte anos. Mas também é certo que não li todos os poemas de amor que se escreveram nos últimos vinte anos.
E será um poema de amor aqui e em qualquer parte deste nosso mundo. O homoerotismo presente só o é devido ao título que o poeta escolheu para o poema. Se retirarmos o título ao poema, temos, sem qualquer sombra de dúvida, um poema de amor. E quando aqui falamos de amor, falamos de Amor. Porque só a falta de Amor é contra-natura. Tudo o resto, que alguns possam vir alegar, é retórica populista e demagógica.

O editor que namorava com Séfora

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Como sempre, de pronto me surge una agresividad que viene de algún lugar que desconozco. Hoy me peleé con un empleado de la biblioteca que me contestó y al que estuve a punto de golpear.”

- Ricardo Piglia, Los diarios de Emilio Renzi. Años de formación

Quem afirmava que a vida de figura pública era mais relaxada do que a do comum pobretanas, não tinha noção do que era despender quarenta euros em vinho finório porque o fígado não filtrava qualquer zurrapa, do que custava acartar contínuas ressacas, do esforço para fraternizar com a escumalha que abancava à sua beira nos bares e restaurantes, procurando uma palavrinha, um jeitinho para publicar o manuscrito. Em transcendentes pensamentos se recreava Heitor, menos célebre na praça lisboeta pelo trabalho de editor do que pelas épicas carraspanas e cenas de pancadaria com jornalistas e outros divulgadores culturais, quando nos seus ouvidos entrou a asquerosa voz do animal que mais odiava, o Pereira, coordenador do suplemento literário de maior circulação nacional. “Ó Heitor”, exclamava o Pereira, com aquele seu sotaque provinciano que nenhuma admiração por Cortázar diluía. Fingir que não ouvia resultava pior. O Pereira latia mais alto, vagia: “Ó Heitor, tenho boas novas, boas novas a sério, desta vai gostar, recenseei-lhe um livro, uma pedrada no charco, aquilo é poesia a valer, até lhe atribuí cinco estrelas.” Heitor estremeceu com o vocábulo estrelas, como estremecia ao contactar com gente que tratava livros como fardos de palha, jumentos que analisavam literatura à dentada. Mantendo a elevação que lhe era habitual, Heitor passou um primeiro momento de impulsividade em silêncio, assim evitando asneirolas e tentativas de agressão, e ao acalmar-se abriu a enciclopédia britânica que era a sua boca: “Cinco estoiros nessas bochechas de besugo atribuo-lhe eu se não cerrar a bocarra.” Jamais alguém se chocaria com um comentário deste calibre, ainda para mais vindo de um renomado editor que, exceptuando dois ou três escritores cuja genialidade se devia a conhecerem-no da noite, do ambiente de farra, se recusava a publicar fosse quem fosse, mesmo talentos já publicados por outras editoras. Ao Pereira, que se sentia muito, mas muito orgulhoso mesmo do seu posto de coordenador literário, chegando até a confundir o que era a sua pessoa com as páginas do periódico para o qual escrevia, caiu tão mal a fúria do editor que lhe disse de tudo: que depois de Herberto não mais era possível escrever poesia, que a editora de Heitor tinha os dias contados, que aquilo era projecto para os amigalhaços, que lhe recenseava os livros por pena, por apiedar-se da decadência, do que irreversivelmente apodrecia. E desabafou Pereira até perder o pio de tão rouco, até transitar da fase da raiva para a da pena e da amizade que poderia ter sido e nunca chegara a ser por pura selvajaria. Em dado segundo meditou o editor se dariam pela ausência do crítico literário se o ofertasse como sobremesa a porcos. Se matasse à facada aquelas recensões de cinco estrelas. Crítico e editor brevemente se miraram, cada um a avaliar as chances de vitória num hipotético combate, cada um a rilhar os dentes e à espera do primeiro soco. “Inimigos como sempre?”, bocejou o crítico, estendendo o braço para o aperto de mão, como que a concluir a interacção. Heitor, com o famélico estômago às voltas, esgueirou-se para dentro de um táxi sem se despedir do rival e arribou numa tasca, onde o aguardavam um suculento bife frito e duas garrafas de vinho tinto. Ainda durante a madrugada, a cair de bêbedo e sem dizer coisa com coisa, acabaria por colapsar entre os seios de Séfora, terna mulata que o acomodaria, adormecido, em cima das grades de cerveja armazenadas na cave do clube de striptease. 

Autocensura

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Quando se deve dar um texto, ou um livro, por terminado? “Nunca!” disse-me o amigo B há uns tempos, creio que parafraseando Joyce: “um texto nunca está pronto, às vezes precisa de alterações profundas, outras apenas de mudar uma vírgula, que na revisão seguinte voltará ao lugar original, mas esta correcção falhada é essencial.” Depois, há esse trágico apelo dos contrários: audácia (ninguém sabia que necessitava disso até o ler) ou mercado (que pode ser o dos likes no facebook, a grande câmara de ecos da actualidade).

É preciso sobretudo afastar a mais ínfima possibilidade de publicarmos alguma coisa de que nos arrependamos o resto da vida. Certo, mas isso pode tonar-se um purgatório infinito, um verdadeiro autocensor nunca está satisfeito.

O que fazer então? Em primeiro lugar, não nos levemos muito a sério, um pouco de história e de cultura geral relativizam facilmente a auto-imagem (nos dois sentidos: “nem tão bons, nem tão maus”). Em segundo lugar, domesticar esta economia da censura, orientando-a para a mais-valia. Um pouco como se faz com os recalcamentos na psicanálise. A autocensura como condição de possibilidade da obra, poderíamos dizer.

Finalmente, depois de nos vencermos, ainda devemos preparar-nos para os silêncios do mundo, dos vários mundos que compõem a recepção: leitores, críticos e amigos (que sempre nos dirão algo, mas muitas vezes cifrado e outras tantas edulcorado). E, sim, assumirmos que somos desgraçados, mas sem querer ser outra coisa. Nem sequer, ao contrário dos obsessivos musicais, sonharmos com uma versão mais intensa de nós mesmos.