Elizabeth Garrett, Comutação

Tradução de Hugo Pinto Santos

Nessa altura, eu era mergulhadora:
em cada membro, o tumulto
e o impulso de um poema — nem o céu
me podia deter. O fresco
no rosto a arder, o ar
sobrecarregado de mistério,
cindido à minha passagem.
A graça, como dor mitigada,
pecado perdoado, chamava
este anjo obscuro até à sua sombra.
Nada há que a mente calcule
e o coração não possa desfazer:
vê — a prodigiosa janela
da água mantém-se intacta.

Elizabeth GarrettA Two Part Invention, Bloodaxe Books, 1999

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Em cacos

Estar aqui, todos os dias, numa consistência oscilando entre o heróico (sábado falámos deste recurso performativo) e o anódino, não preenche experiências de laboratório, é uma prova de vida.

E neste exercício, sagrado ou banal, um fluxo permanente de energia, variando no entanto de intensidade, faz e desfaz o sentido da individualidade. Uma pedra é uma pedra (evite-se falar com elas quando se humanizam), nós desfazemo-nos e refazemo-nos, por vezes em contradição sumptuosa, numa permanente inquietude identitária. Esforçamo-nos por juntar os cacos e depois de tudo composto ou ficamos fartos e explodimos ou um vento revolucionário abana o edifício do “eu” até ao estilhaçamento.

Mas este movimento quase-trágico, quase-sísifo é o alimento vital de todos os esforços para nos agregarmos imperfeitamente, uma e outra vez, (excepto nos sábios e santos inteiros, se os houver), esperando nova pulverização. Uma polarização que não contém qualquer dicotomia, os pólos existem para que o humano viva entre eles, nós fazemos a vida entre, insubmissos a qualquer determinação. No “entre” aloja-se a revolta da vida espontânea contra o domínio da razão. Aí, os fios racionais de uma moral, política ou arte nunca valerão o entusiasmo do instante, a emergência de uma vida, o improvável aparece como imperativo, ainda que fugaz (não fujo à lógica, amo-a).

Por isso, quando me perguntam quem sou, apetece-me quase sempre responder que “ainda não sei”, que “ainda estou a fazer-me”, “e desfazer-me”.

Epicédio

Logo antes ali aqui agora 
viver as mil e umas mortes 
de Houdini, diante meu próprio 
inumado, numa inclinação 
de velório por sobre seu devido 
declinado esquecimento, na sensação erótica de quem 
se olha conhecendo, por fora, 
estrangeiro já ante esse tão seu 
estranhamento, 
sem a parafrástica lágrima, 
que humedece fremindo, 
de sentimento piadético, 
esquife ou poema, duas coisas 
análogas, cercadas de talento, 
de flores e silêncio, 
que aliás se baralham, 
e devem com a mesma 

 

Tríptico

para a Estela Bento

"(...) É costume dos poetas, dedicam muito."
O Ano da Morte de Ricardo Reis, José Saramago

I

Fosses tu um rio e eu
um seixo
lançado por mãos hábeis
para te tocar a pele
uma vez
e outra e outra e outra.
E mergulhar em ti.

II

Ponho as mãos em concha
debaixo da torneira e penso:
Como seria bom que aqui estivesses
e a abrisses.

III

Fosses tu o mar
e eu pedra que submergisse em ti
brotando anéis concêntricos de pequenas vagas
como para te circunscrever
num abraço
inteiro.