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/Capa de João Alves Ferreira
«Por intermédio das palavras que flutuam à nossa volta, alcançamos o pensamento»
Friedrich Nietzsche
Capa de João Alves Ferreira
Luna verde de sonrisa amplia,
¿por qué buscas la verdad
en la ciencia de corbata?
Luna creciente quinceañera,
¡lánzate al mar
y navega!
Luna redonda y blanda,
¡Aparta libros y reglas!
que el campo quiere verte
yacer sobre la arena.
Luna nueva de velo negro,
los lobos te oyeron aullar,
aullar como un lobezno,
tendida sobre la yerba,
luna pálida de cieno.
I
Seguimos primeiro de Lisboa a Londres, duas horas e meia de viagem aproximadamente. Nunca consigo sentir-me confortável num avião. Há sempre uma sensação de queda inevitável, por isso controlo a minha respiração e evito movimentos bruscos. Heathrow é um labirinto cujo tamanho nunca irei conseguir compreender, colorida apenas pelos famosos sinais que indicam o metro.
A estação de autocarros logo ao lado é composta por uma sala central onde pessoas de todas as cores circulam ou estão sentadas. Uns aproveitam para ler antes de partir, outros comem as habituais sandes, sempre mirando o grande relógio que anuncia as horas e que controla as chegadas e as partidas.
Quando entro no autocarro relembro que a condução é feita do outro lado, coisa que calculo nunca conseguir fazer. O espaço entre bancos é mais do que suficiente, mesmo para quem tem as pernas grandes e os assentos são especialmente confortáveis. Consigo dormir durante alguns minutos apenas para acordar num veículo que, dada a minha desorientação, parece conduzir-se a si mesmo. Levo algum tempo a perceber que o condutor está do outro lado.
Chegámos a Swansea quatro horas depois, deixando umas quantas cidades pelo caminho. Embora viesse acordado durante a maior parte da viagem, lembro-me apenas de Bristol, dada a sua importância e da entrada no País de Gales, Cardiff e, finalmente, da chegada ao nosso destino. A cidade, com cerca de 450 mil habitantes, fica junto ao mar. As gaivotas sobrevoam os edifícios cor de tijolo e um céu cinzento. Todos os dias de manhã impedem-me de continuar a dormir. Às vezes chegam a pousar no telhado da residência onde fica o meu quarto.
Sempre que chove as ruas inclinadas tornam-se ainda mais difíceis de subir e, a meio caminho, o sol pode aparecer sem avisar. Hoje, por exemplo, o sol decidiu mostrar-se pelo menos até as nuvens combinarem uma conspiração silenciosa que influenciará a cor da cidade.
Read MoreA actual massificação de migrações (na maioria, humanos à procura de refúgio), tenha as causas que tiver, alimenta-se de um enorme sofrimento (marcado em cada singularidade, em cada “rosto”, diria Levinas), que a maioria dos ocidentais desconhece. Isto bastaria para nos sentirmos imediatamente obrigados a receber quem nos procura. Referem-se, todavia, ameaças ao nosso estilo de vida. Claro que sim! Como dizia Jacques Derrida, a verdadeira hospitalidade é aquela que se abre também ao perigo, àquilo que é hostil; devemos, pois, combater o nosso conservadorismo, cultural e biológico (o cérebro não está preparado para todas as propostas morais racionalizadas). Temos de nos forçar a correr riscos se queremos ser moralmente consequentes com o humanismo, cristão ou secular, que convocamos frequentemente como marca da nossa identidade, e da nossa superioridade moral. Pelo contrário, não me inquieta o argumento utilitarista do declínio demográfico europeu: a biomassa humana tem de diminuir para haver uma certa sustentabilidade ambiental, não é, portanto, por uma questão de reposição de rácios demográficos “economicamente sustentáveis” que defendo o acolhimento dos migrantes.
Compreendo a angústia dos que vêem erodir-se o Estado Social pela inversão da pirâmide demográfica, mas, para mim, o niilismo social está antes na sócio-unicidade, uma formatação tendencialmente homogénea que sucedeu à falência das velhas polarizações ligadas ao racismo social (extremado na luta de classes, sobretudo por motivos económicos, e na separação higiénica entre alta e baixa cultura). Isto não significa que a pobreza tenha desaparecido, muitos estudos mostram que ela persiste em cerca de 20% da população portuguesa (uma enormidade; é, aliás, decisivo pensar alternativas governativas onde a pobreza de alguns não seja a contrapartida sistemática da abundância de outros). Também é visível a não miscigenação das culturas, basta ir aos Dias da Música no CCB ou a uma ópera no São Carlos (e, inversamente, às festas populares de aldeias e bairros, embora frequentadas por alguns etnólogos amadores à procura de comportamentos primitivos – receio que saiam desiludidos). Apesar dos muros, sociais, culturais, económicos, psicológicos, emocionais, linguísticos... há um simulacro de unidade que produz a amálgama culturalista que parece formar o horizonte da portugalidade.
Read MoreLivros, filmes, ideias.