a cidade foi cercada

a cidade foi cercada
e vem a noite
e de milhares de leões
um
a cidade foi devastada
e de milhares de barrigas
uma
e vem a manhã 
o mar arredou
há uma concha trincada
debaixo de tão pequeno pé 
há séculos a cidade sangra pelos teu canais
porque a poeira
que sempre vaza os lençóis
assim desejou
a cidade foi inundada
também
pelos teus canais  
agora a noite precisa ser mentida   

tão pequenos os pés os ovos tão moles
tão perfeitos os talos
desfigurado o ombro
tão limpinhas as cuias a cidade o leão e o peixe  

«O Peregrino» e «Aviso» de Nicanor Parra

tradução de Bruno Ministro

O PEREGRINO

Atenção, senhoras e senhores, um momento de atenção:
Virai por um instante a cabeça para este lado da república,
Esquecei por uma noite os vossos assuntos pessoais,
O prazer e a dor podem ficar à porta:
Ouve-se uma voz deste lado da república.

Atenção, senhoras e senhores! Um momento de atenção!
Uma alma que esteve engarrafada durante anos
Numa espécie de abismo sexual e intelectual
Alimentando-se escassamente pelo nariz
Deseja fazer-se ouvir por vós.
Desejo que me informe sobre alguns assuntos,
Necessito um pouco de luz, o jardim cobre-se de moscas,
Encontro-me num desastroso estado mental,
Raciocino à minha maneira;
Enquanto digo estas coisas vejo uma bicicleta apoiada num muro,
Vejo uma ponte
E um automóvel que desaparece entre os edifícios.

Vocês penteiam-se, é certo, vocês andam a pé pelos jardins,
Debaixo da pele vocês têm outra pele,
Vocês possuem um sétimo sentido
Que vos permite entrar e sair automaticamente.
Mas eu sou um criança que chama a sua mãe de trás das rochas,
Sou um peregrino que faz saltar as pedras à altura do seu nariz,
Uma árvore que suplica que a cubram de folhas.

De Poemas y Antipoemas (1954)

 

 

AVISO

É proibido rezar, espirrar
Cuspir, elogiar, ajoelhar-se
Venerar, uivar, escarrar.

Neste recinto é proibido dormir
Inocular, falar, excomungar
Harmonizar, fugir, interceptar.

É estritamente proibido correr.

É proibido fumar e fornicar.

 

De Versos de Salón (1962)

 

[ver perfil de Bruno Ministro]

Auto Retrato de uma Vegetariana no Reflexo da Faca da Minha Avó

Costumavas segurar-lhes as cabeças até a cobardia tomar conta de ti.

O olho do galo reflecte o sol campestre:
como oráculo, a pupila descansada
adivinha o que virá a seguir;
os teus modos infantis não conseguiam compreender
as ondas de calma que banham o corpo de um pária moribundo. Tu

procuras os suaves pontos da carne suculenta
enquanto a tua avó testa a lâmina da faca
com as mesmas mãos que entrançam o teu cabelo âmbar;
os teus modos infantis não conseguiam compreender
a mudança entre cuidar, matar e cuidar de novo. Feita

de penas macias, a pele da besta é mais quente
do que qualquer amante que alguma vez terás.
Digo: que alguma vez te teve.

Esta é a razão para os meus anos de jejum,
para me recusar a mastigar e comer a carne
dos rapazes que quebram como ossos da sorte. 

Em busca da Brasiliana

O som ao redor, de Kleber Mendonça Filho, 2012

Na nossa mídia de massa, Brasil e brasileiros são retratados por três lentes principais, todas elas irremediavelmente distorcidas. Esse triclope midiático inclui grande parte -- ao menos, a parte que mais aparece -- da televisão, do cinema, da literatura mais abrangente e até do imenso Instagram coletivo que dá corpo à hashtag #Brasil. São elas: a lente do estrangeiro, a lente para o estrangeiro, e a lente que tem como fotógrafo e fotografado essa coletividade que chamamos de nós mesmos (na Europa, se chamaria povo. No Brasil, não).

Sem dúvida, essa etnografia discursiva e seus resultados atrofiados são amplamente conhecidos e criticados. Contudo, meu ponto é exatamente um contraponto: não quero falar da exploração daquele que é falado, mas problematizar a dificuldade que do falante (artista, jornalista, cineasta, escritor, e, em grande medida, leitor). A dificuldade que esse falante brasileiro tem de enxergar a si mesmo. Conhecendo quem discursa, talvez conheçamos melhor as falhas de todos os seus discursos.

Quando se trata da lente do estrangeiro sobre o Brasil, enxergam-se os estereótipos, e pouco além. Sabemos disso.O futebol, o Carnaval carioca, a praia de Copacabana, a partida no Maracanã, sa favelas, a Amazônia. Até pouco tempo, a lente do estrangeiro era um cartão postal de 1990, daqueles que vemos em bancas de jornal. Araras, bundas de fora, Brush Script. Hoje, temos mais nuances. Com megaeventos de um lado e a Economist do outro, não significa que estejamos menos estereotipados.

Mas a lente se inverte, na segunda distorção, também muito debatida: o olhar é nosso, mas feito para o estrangeiro. O porta-voz é o artista (o cineasta, o fotógrafo, o autor) e o tema é, por excelência, o despossuído. Prevalece a jornada etnográfica à alteridade: excursões à favela, safaris na periferia, e outras aventuras que conectam momentaneamente mitos e leitores, e que, no fim, deixam as partes mais distantes do que estavam. Autor nenhum chamaria seu personagem para um jantarzinho, num sábado.

Quando finalmente nos retratamos para nós mesmos, facilmente viramos uma telenovela. Só gente fina, com os problemas mais eruditos. Não tem tio de bermuda e chinela, não tem aniversário de criança, ninguém leva sobra de almoço para casa ou o som do Domingão do Faustão -- quando a vida real aparece, é sob a lente transtornada de alguma alteridade sobre nós; um Baudelaire anacrônico, um Proust latino, um transplante qualquer lamentando esse incapacitante desgosto existencial sobre a vida prosaica. Em suma, eis a tragédia: o lamento não é pelo que somos, mas pelo que não somos. Há um problema de autenticidade.

E o problema se aprofunda: porque as circunstâncias do Brasil não permitem a mesma joie de vivre de outras sociedades. Mas tomamos esse direito, mesmo assim. Somos um comercial dirigido por David Lynch: o casal caucasiano atravessa o calor do concreto, apaixonado, pisoteando o rosto da gente ensanguentada, abraçando a bolsa Louis Vuitton, por toda a eternidade. Somem no horizonte numa SUV. Troca-se o canal. O Brasil agora é louro, numa Hollywood-pesadelo: somos a família ariana num McDia feliz, na Berlim de 1944.

Nessa face oculta do “nós” brasileiro, nós, detentores do discurso, ficamos ironicamente sub-representados, entre o complexo de superioridade e inferioridade. É aí que mora a menos importante das tragédias, mas aquela que fala a quem lê e escreve. Prova-se nossa incapacidade de autorretrato. Excursionamos de novo. Não sossegamos em nossa própria companhia. Não suportamos nossa própria companhia.

Não escolhemos amar o desvirtuoso e idiossincrático estado das coisas, seus defeitos, seus disparates, sua estética tacanha. Poderíamos odiar o estado das coisas e amar a vida que se desenvolve ali.Nem que fosse pelo fato inexorável de ser a unica vida realmente autêntica nos dada. Mas odiamos como os outros nos odeiam. Queremos ser hipsters, queremos Paris, queremos Budapeste. Queremos Starbucks, como se fosse Los Angeles. Nosso grau zero de escrita é uma imprecisão geográfica. Consumimos um Brazil importado, paradoxalmente, made in Brazil. Há só aquilo que diz: não sou como os outros, nem como a mim mesmo, porque eu mesmo sou sem-graça.

 

Uma questão estética

Para ficar no cinema (que é uma comunicação de maior abrangência que a literatura, especialmente hoje), afirmo que devo ter visto o Texas e seus detalhes muito mais vezes do que vi o Ceará. À parte de Manhattan e da California, os americanos também retratam o seu sertão. Na mídia de massa americana, pode-se dizer que mulheres são sub-representadas, que latinos são sub-representados, que os negros também o são. Mas os caipiras, jamais. Esses têm a sua tribuna garantida, como parte integrante do que é ser americano. É através deles, e das suas variadas estéticas, comumente tidas como tacanhas, que surge a Americana. A escola estética do cotidiano yankee traz o passado e atualiza o presente. Nostalgia, folclore e a vida prosaica acabam retratados, criticados e, por fim, celebrados e cristalizados na composição dos inúmeros retratos da América.

Se a Americana, um dia, teve como representação maior as pinturas de Hopper (as cenas mais cotidianas, o casal na varanda, o diner na madrugada, a mulher solitária no café), entendê-la como “Hopper”, hoje, seria apenas nostalgia. Mas o cinema trata de atualizá-la:, a Nova Iorque de Faça a coisa certa ou de Woody Allen, o ônibus escolar de Forrest Gump, o neon à beira da estrada de Paris, Texas, o filme n’A Última Sessão de Cinema, o inverno de Fargo, a reunião de boliche de Lebowski, o uniforme de garçonete e o Thunderbird de Thelma & Louise, o diner de Pumpkin e Honey Bunny, as férias e o neogangsterismo das Spring Breakers, a banheira e o spaghetti de Gummo, o sofá de veludo de Napoleon Dynamite. E os matizes variam entre si, mesmo quando representam objetos semelhantes. Enquanto a marginalidade de Wim Wenders é bela, a de Harmony Corine é deformada; enquanto Zemeckis constrói anti-herois carismáticos, os irmãos Cohen conseguem fazê-los desprezíveis. Os exemplos são muitos.

A mesma abundância, mesmo que fosse proporcional, nunca se verificou no Brasil. Nem se somássemos televisão, literatura, cinema e teatro. Continuo no cinema, e pergunto qual é a Brasiliana que se forma: A Falsa loura de Carlão? O Cheiro do ralo de Dhalia/Aquino? Os prédios sufocantes d’O som ao redor? O mercadinho de Trabalhar cansa? Os exemplos são rarefeitos, embora tragam novo fôlego para essa apreciação.

Não se trata, apenas, de apreciar os casos esparsos, mas de unificar uma estética de referência à qual que podemos recorrer. Algo que faça poder existir, algo que tenha uma entrada na Wikipédia. Abre-se a pergunta: o que poderia vir a ser, então, uma estética “Brasiliana”? Que artefatos, que maneirismos, que herança cultural ela detém? A ironia na dificuldade de se encontrar uma resposta, já tão tardia, é que para frui-la basta olhar ao redor.

Desculpa

"Desculpa, mas nestes silêncios
não sou eu que escrevo.

Escreve-te outro, que nem tu.

Parecem as linhas formar versos,
mas eles são apenas formas
onde despejam letras. Eles.

Quem não nos ouve espera:
e repara, nunca nos ouvem. Estão.

Quem?

E quem? Aqueles que estarão vivos
quando eu e tu que inventei agora
formos pó e sombras. Plurais,
quase tanto como esta sombra.

Sai-me do sangue. Sai-me do sangue.

Peço-te ou afirmo?
Dizer duas almas na mesma,
para além de um pedaço de escrita.

Gosto de voltar aqui, quando me ausento
e tu surges, sabes como te levantas
quando as palavras brincam consigo.
E contigo. Pesadas. Básicas.
Esdrúxulas. Graves. Sós.

Sabes, nunca te disse,
mas a solidão não é só.
É um universo por domar,
como se domam os cavalos nas clareiras.

Como se fazem os sentidos nas trevas.
Como crescem as árvores.
E se já viste uma árvore crescer,
sabes que elas não choram. Quase nunca.
Nem morrendo se regam.

Desculpa, mas nestes silêncios
não sou eu que escrevo.
Alguém toma conta.
Todos tomam conta.
Não somos todos aqui? Transfigurados.
E como se transfigura a noite?
A noite transfigura-se, mas não varia.
As variações somos nós que as ouvimos,
apesar do escuro,
é sempre possível ouvir a noite,
sabes, ou melhor, é sempre possível ouvir o negro.
Ouvir o negro.
O azul não se ouve, nem o vermelho.
O negro não se ouve, e não é silêncio.
O branco é silêncio. A luz é silêncio. A voz é silêncio.
Só o negro fala porque pode ser toda a cor.

Crescem.

Crescem.

Crescem.

E agora ouve-me bem. Desculpa-me.
Desculpa às vezes falar-te em silêncios.
Desculpa calar-me à espera que faças vento.
Desculpa saber que não conheces a cor do vento.

É que eu também não... E porque continua este poema?
Porque o céu e o que não é falam ainda.
Não que o céu tenha som. O som não tem espaço.
Por isso existe silêncio, sabes,
tu que me lês, tu que eu amo,
sabes que tudo isto tem silêncio, tem espaço.

E olha-me, finalmente percebo que escrevo para ti,
tu que me lês, apesar de poderes ser homem
serás sempre uma mulher.

É quando uma mãe diz quando tu não existias.
Sabes então que ela pode perfeitamente também
nunca ter existido.
E então é como se todo o infinito nunca nos tivesse tido,
como os milhões e os milhares e as centenas e as dezenas
e aquele que nunca há-de existir.

Mas tu hoje ouves-me. Ouvir-me-ás.
Ouvir-me-ás?
Porque insisto neste verbo, ouvir?
E eu bem sei como é melhor colher flores,
por mais triste que seja matá-las.
Oferecer flores mortas enquanto estamos vivos,
que sabiam bem que a cor é de tudo
menos o negro.
O negro não.

Desculpa-me oferecer-te este silêncio
que não sou eu.

Desculpa toda a música ter de acabar.

Desculpa este poema terminar assim,
como começou.

Desculpa, mas nestes silêncios
não sou eu que escrevo."