Pausa para sexo ou mais um teste falhado à maturidade racional

Fotografia do jornal Libération

Fotografia do jornal Libération

Há uns dias, um político Sueco propôs uma pausa de uma hora no trabalho para sexo (os objectivos são aumentar a natalidade e contribuir para o bem-estar da população, o jornal Libération explica, mas também o Le Monde, recepção jornalística francesa de “referência”). No início, pareceu-me mais um delírio progressista (este termo precisa de atenção crítica), desses que quase ninguém leva a sério mas que fazem a fortuna dos sítios de notícias exóticas, emerge mais um fait-divers na realidade, como uma pequena irrupção de sem-sentido visando, sem convicção, mudar alguma coisa para que tudo fique exactamente na mesma.

Contudo, deixem-me envolver esta proposta com linhas de racionalidade, querendo resgatá-la da irrelevância em que caiu pouco depois dos risos iniciais na taberna e sorrisos na pausa para café de trabalhadores sensatos e empenhados. Houve também quem mantivesse o siso intacto e achasse novamente, comprovando uma suspeição herdada, que o mundo não tem remissão. Aconselho estes guardiões da inteligência lógica e dos valores morais abraâmicos a abandonarem prontamente a leitura do texto, a Webesfera está cheia de coisas graves, não percam o vosso precioso tempo com ligeirezas.

Vou então, para os que ficaram, cruzar a notícia sueca com um artigo (íntegro, apesar de tudo), já com alguns meses, do El País: “Assí cambia su cuerpo cuando deja de practicar sexo”. Nele, Kristin Suleng convoca vários estudos científicos para mostrar como o abandono da prática sexual nos fragiliza. Vamos aos factos (ou ao que se aproxima disso), de seguida, quase automaticamente, veremos que o político sueco não é, afinal, um louco ou um carente de projecção mediática. Concluirei que quase 80 anos depois da morte de Freud, a sexualidade continua a ser mais mitificada do que analisada (abrindo as portas ao obsceno, ao pornográfico ou ao paródico, percepções toldadas pelos preconceitos sobre o corpo sexuado, capazes de uma autoridade implacável, exercida numa espécie de novilíngua dedicada à sexualidade, dificultando toda a respiração inconformista).

1- O artigo do El País citado acima é um modelo de bom jornalismo, quase todas as afirmações contêm uma hiperligação que conduz o leitor até à entrada do estudo que as sustenta, é verdade que há pouco contraditório, mas tendo em conta a actual tabloidização da informação, devemos felicitar estas bolsas de qualidade. O texto revela que há três domínios onde a actividade sexual influi positivamente: a cardiovascular, a neurológica e a do sistema imunitário. Daqui não resulta imediatamente, tem o cuidado de realçar o autor, que a abstinência (nunca havendo uma anulação plena da sexualidade, entende-se esta como a falta de práticas sexuais orientadas para o orgasmo, apesar do desejo de as ter, trata-se sempre aqui de abstinência involuntária) tenha consequências negativas para o organismo, dos benefícios da prática (porventura sobrevalorizados) não se segue que haja prejuízos na ausência dela. Bom, mas parece consensual que o sexo é benigno para a tensão arterial, espoleta ou acelera a produção de dopamina e serotonina e, devido ao contacto físico, fortalece o sistema imunitário. Além disso, também afecta positivamente a autoestima. A isto junta-se a diminuição da agressividade, segundo um estudo longo e vasto, “as sociedades mais agressivas são as mais abstinentes ou reprimidas.” Como remédio caseiro, podemos recuperar um dos soporíferos mais antigos ao decidir enrolarmo-nos na cama em vez de vermos televisão ou respondermos a e-mails. Há ainda um trabalho académico que relaciona a pobreza sexual com a diminuição da inteligência, visto que o sexo incentiva a neurogénese, sobretudo o desenvolvimento celular no hipocampo. Finalmente, uma vagina pouco utilizada (para o sexo) cai em hipotonia e se o homem deixar de ejacular aumenta o risco de cancro da próstata, além de promover a disfunção eréctil.

2- Depois deste vasto leque de benefícios comprovados da actividade sexual, e prejuízos do seu contrário, quem se atreve ainda a criticar o político Sueco? Se é um caso de saúde pública (coloquemos a questão nestes termos), então justifica-se, até por razões económicas, que a famigerada pausa seja considerada um imperativo legal que todos deveriam cumprir. Talvez surgissem alguns problemas de fiscalização (como verificar que a pausa era exactamente usada para esse fim?), de crítica social (apontando-se o dedo a quem não contribuísse para um bem-estar individual que, por acumulação, se alarga sempre ao geral), de discriminação das minorias assexuadas ou presas ao colete de forças religioso... Mas parece-me que tudo acabaria por entrar na rotina da população, sobretudo nos jovens ousados e robustos (talvez se pudesse isentar parcialmente os mais idosos da sistematicidade calendarizada). O resultado, virados os preconceitos ao avesso, seria mais bem-estar, individual e social, e aumento da natalidade (aqui compreendem-se as reservas dos ambientalistas).

3- Certo, parece tudo bastante interessante, mas, ao mesmo tempo, numa auto-contradição de voltagem média, incapaz de sair de um registo jocoso, mais apropriado às utopias alucinadas do que a uma via iluminada que se leve ao Parlamento para ser legislada. E isto quase somente porque continuamos a rodear de preconceitos ancestrais os órgãos e a embriaguez sexuais. Claro que os primeiros são discriminados devido à potência dionisíaca que parecem concentrar, mas ninguém se lembra de banir o cérebro ou o sistema endócrino das conversas honradas só porque eles também participam no jogo sexual. Isto quer dizer que também na sexualidade há uma economia do bode expiatório (pénis e vagina carregam com as culpas). Mas mais sério do que isto é a constatação de que continuamos cheios de tabus – sendo que neste caso, em antinomia, uma franja da população coloca aí o seu totem. Apesar da intensa sublimação (não no sentido freudiano) desses órgãos, e da tese de Michel Foucault sobre a Modernidade não cessar de falar, científica e vulgarmente, de sexualidade (revelação iconoclasta presente no primeiro volume da História da Sexualidade). A tese da potência libidinosa do Id, a quase constatação da importância decisiva da passagem fecunda dos estádios sexuais, os complexos de Édipo e de Electra... em resumo, toda a analítica sexual freudiana continua, um século depois, a ser esmagada por preconceitos, sobretudo religiosos. Em geral, um sexismo primário fia narrativas de posse e domínio enaltecendo um machismo básico. Por seu turno, o espectro religioso vislumbrou na sexualidade (esse extraordinário dispositivo filogenético mas também esse superior traço de civilidade emergente no amor-paixão) uma embriaguez extasiante que pode concorrer perigosamente com grande parte da cultura ascética, seria uma saída vital, a do sexo, contra uma saída mortífera, a evangélica. Venceu, pois, a noite das trevas, sem estrelas dançantes. Talvez por isso se gritasse ao megafone por todo o Maio 68 sexualmente activo que “fazer amor era uma forma, mais uma, de fazer a revolução”.

 

no fundo do raso do mar

no fundo do raso do mar
está a cara verdadeira
o retrato é ancestral
é uma tomada de reconhecimento
é uma tomada de negação
o andamento é manso
ereto aberto
 a cara não é triste ou alegre
é manifestante
é uma tomada de reconhecimento
é uma tomada de negação e reconhecimento
é a momentânea falência dos olhos
estou
e com os braços de espinhos volto a lavar o rosto a louça
fecho o mar porque o outro recipiente
à mesa não pode perceber o aniversário
dos minutos

João Bosco da Silva, Teoria da Perdição Unificada

João Bosco da Silva
Teoria da Perdição Unificada
poesia

Enfermaria 6, Lisboa,
março de 2017, 182 pp.
Capa de João Alves Ferreira

15€

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João Bosco da Silva nasceu em Bragança (1985). Passou a maior parte da sua infância e adolescência em Torre de Dona Chama. Estudou no Porto. Vive na Finlândia. 

Livros de poesia: Os Poemas de Ninguém (Atelier, 2009), Disse-me António Montes (Mosaico de Palavras, 2010), Bater Palmas E Sete Palmos De Terra Nos Olhos (Mosaico de Palavras, 2011), Saber Esperar Pelo Vazio (Mosaico de Palavras, 2012), Destilações (não edições, 2014), Trepanação de Jerónimo Bosch (Mariposa Azual, 2015). 

Algumas participações em antologias e revistas:  Revista Inútil n.2, Meditações Sobre O Fim, HARIEMUJ,  Voo Rasante, Mariposa Azual, Caderno 3, Enfermaria 6, Flanzine 8 - Lol&Pop, Flan de Tal, Bukakke, Copus Dei, Persona, do lado esquerdo.

Escrever ou tão pequena parte ser no mundo

Escrever é penoso,muitas formas de escrever, diferentes maneiras de dizer a mesma coisa, é sempre possível encontrar uma frase mais bonita do que esta, a palavra escarrapachada no papel desagrada, as palavras nunca são as mais belas, as escolhidas não são as ideais, existem mais graciosas, mais apuradas, ao texto faltam parafusos, uma vírgula aqui que não devia, uma frase para ali que se repete, que não bate certo, os chavões aos pulos, o dicionário fechado, e no fim, qual fim, o texto não tem fim, morre de cansaço, de tédio, o texto não bate certo, sente-se a desarmonia, texto feio, o texto sofre de fealdade, não se pode ter texto mais grotesco do que o que escrevemos, o que nos pertence é fraco e custa aceitar a limitação, a ausência de apuro, a elegância foge para os textos dos outros, não só dos consagrados, mesmo um zé-ninguém, autor de romances de facebook, bate mais certeiramente nas teclas, isto de escrever seria tão mais fácil se em vez de escrever fechasse os olhos a pensar no texto e adormecesse sem nunca ter escrito e acordasse no dia seguinte esquecido de que alguma vez quis ou tentei escrever, não vale a pena o esforço, isto, se pensar bem nisto desligo e volto para debaixo dos cobertores, o macaco aprende, oh se aprende, lembremos o anúncio do Gervásio que levava o objecto ao contentor do lixo, o macaco sabe, o macaco escreve, mas escrever não é deixar de ser macaco, claro que não é, pegadas de animal por todo o lado, o texto manco à conta da limitação intelectual, educativa, e eu a perseguir a perfeição, a sujar o menos possível o caderno para não o conspurcar com o esterco cuspido pelo cérebro, chamemos assim o quadrado de osso e pus, escrever esgota a vaidade, queria ser escritor e agora quero ser nada, para ser escritor é preciso escrever e nada do que aqui está, nada nos jornais, nada nos livros é escrita, palha, isso temos de sobra, resmas de nada, o vazio assalta-nos, a caneta trespassa a folha para dar lugar a nada, é triste rodear o vazio durante tantos anos, ainda no outro dia o melhor ou um dos melhores ou seise um dos melhores escritores portugueses comentava que poderia morrer depois de publicar os trinta livros que planeara, que depois disso se fechava um ciclo, e eu a ler aquilo e a imaginar o escritor morto e os trinta livros empilhados numa livraria ou na feira da ladra ou numa cave bolorenta, os trinta volumes, o tal ciclo, quarenta anos de escrita, tudo isso a valer rigorosamente nada, não nos enganemos em relação a isto, aqueles trinta livros valem o mesmo que a palha entalada entre a dentuça do burro, o escritor, esse tal melhor escritor, também é primo do macaco, os seus livros são papel, vestígios de uma civilização à beira de acabar, estamos à beira da extinção, como estivemos desde que apareceu tudo, nada dura, nada presta, e um dia o circo termina, e escrever dói tanto e não leva a lado algum e, mesmo assim, mesmo assim, aqui estamos.