Nota de leitura (7)

Retratos de Família

 

3.

 Às vezes, eu ia recolher com a boca
as gotas de chuva do beiral
e nelas sentia o gosto do mundo.
Nuvens, vento, céu pardo.
Eu chorava essas horas de prisioneiro na sala da varanda
entre flores que minha mãe adorava
e a miragem de um dia de sol, lá fora,
com a bola de futebol no largo da escola.

Fernando Namora

As Frias Madrugadas

Publicações Europa-América, 1971, p. 114.

 

Novamente, o poeta encontra no quotidiano motivos poéticos suficientes para dizer aquilo que muitas vezes fica por dizer. Fernando Namora (que foi mais romancista do que poeta) consegue, em poucos versos, recriar todo um imaginário: que poderia ser o de qualquer um. Quem é que nunca recolheu gotas de chuva? Só os pobres de espírito, de certeza.

Penso que este poema cumpre a questão da universalidade que já aqui mencionei. É tudo menos umbiguista. Não existe nele qualquer tipo de palavreado oco. É honesto e não procura, quanto a mim, fazer bonito. Não recorre à intertextualidade ou à sabedoria académica bacoca. Nele não é necessário citar Deleuze para dizer o que tem de ser dito. Tudo está. Nada falta.

Nota de leitura (6) 

Não sei se vai chover ou não. 
Nem se a greve entupirá as ruas. 
Haverá comboios? Autocarros? 
Barulho no andar de cima? 

Certo, só o chá das sete. 
Que pode ser às oito ou nove. 
Mas é sempre chá e quente. 
Feito num bule de porcelana fina. 

Dias há que o seu aroma fresco
me transmite algum sossego. 
Mais tranquilo e desperto
começo então a escrever. 

Umas vezes com rigor. 
Outras vezes nem por isso. 
Depende muito do chá 
e da forma como o tomo. 

António Silva Graça
Invenção na Sombra
Relógio D'Água, 1989, p. 14. 

 

O argumento mais utilizado por alguns daqueles que defendem uma forma poética mais ligada à palavra, enquanto valor intrínseco e quase inalienável, é o do risco. Isto é: o risco que o poeta corre ao procurar na palavra aquele dom de salvar pelo mais alto. São uma espécie de devedores de Eugénio de Castro e dos seus Oaristos. Para isso, alguns recorrem à metáfora como uma espécie de tábua de salvação, ou então ao uso de vocábulos mirabolantes, quando na realidade esse uso apenas mascara a sua incapacidade de verdadeiramente arriscar, demonstrando, apenas, uma excelente proficiência no uso do dicionário. 

E depois há os outros, aqueles que, na minha opinião (repito: minha opinião), realmente arriscam. Este poema de António Silva Graça é, quanto a mim, um bom exemplo. Nele o poeta arrisca de verdade, pois nada há de mais arriscado do que procurar no quotidiano (e não no dicionário) o material necessário para transfigurar esse próprio quotidiano, procurando o poético nas coisas mais simples do dia-a-dia. Uma situação banal pode estar carregada de poesia. E neste caso é inegável que está.

Nota de leitura (4)

Falo para ti à escuta.
As palavras escondem-se, não ouças
mais do que este rosto sonoro.

Como se a represa mostrasse
musgo, ramos podres, rãs,
folhas surgem dentro da casa.
Não a vejas.

À sombra do meu olhar
o que tiver de ser.

 

Joaquim Manuel Magalhães, Consequência do Lugar, Relógio D’Água, 2001, p. 17.

 

 

Joaquim Manuel Magalhães é, sem dúvida, a verdadeira "angústia da influência" para muitos dos poetas nascidos na década de 70 e alguns da década de 60: ou escrever a "favor" ou "contra". O outro também é Herberto Helder. Ao reler os poemas inseridos em Consequência do Lugar, sinto que existe uma grande afinidade entre uma grande parte dos poemas e os de Paul Celan (afinidade essa que teve,quanto a mim, o seu ponto culminante no volume Um Toldo Vermelho). Poderei estar enganado, mas é o que sinto, quer no tom, mas também na economia das palavras, onde certos poemas adquirem um estilo quase epigramático, embora carregados de significado. No exemplo apresentado, a questão da universalidade já não se coloca, tento em conta a enorme subjectividade que o poema encerra. Contudo, a “falta” de universalidade não rouba mérito ao poema ou ao poeta, apenas torna a sua “influência” um pouco mais limitada. E quando digo “influência” refiro-me apenas ao alcance que o poema poderá ter. Sei que talvez esta seja uma maneira bastante maniqueísta de “ler” um poema. Mas também não estou a dizer que é a única.


Nota de leitura (3) 

Diário

Se Deus quiser hei-de morrer
Com tudo feito e por fazer. 

Raul de Carvalho
Duplo Olhar (1978) 
em Poemas Portugueses: Antologia da Poesia Portuguesa do Séc. XIII ao Séc. XXI, Porto Editora, 2009, p. 1383. 

 

Raul de Carvalho é talvez um dos poetas mais esquecidos. E é também um dos nossos melhores poetas, apesar de considerar a sua obra um tanto ou quanto desigual (e talvez seja isso mesmo que o faça ser um dos melhores). É um poeta que muito aprecio e este é o único poema que sei de cor. E ele poderá questionar o leitor: existe poeticidade nele? O seu tom aforístico poderá, de certa maneira, levar ao equívoco e alguém afirmar “isto não é um poema” ou “isto não é poesia”. A primeira afirmação, do meu ponto de vista, é mais tolerável do que a segunda, pois acredito que nada está excluído da esfera da poesia. Acredito que uma das funções da poesia é revelar aquilo que poderá estar “escondido”. Neste caso a revelação é evidente: qualquer um de nós irá um dia morrer, e morrerá com tudo feito e por fazer. Novamente (e porque não?) a questão da universalidade do poema. Em qualquer parte do mundo este poema encerra em si uma verdade inequívoca. O poeta apenas se atreveu a dizê-la em voz alta.

Nota de leitura (2) 

Os Bichos

Parece o movimento
de uma serpente, 
este caminho que percorro
todos os dias
ao encontro do cansaço. 
E nas bermas
gatos esventrados. 
E no centro, 
bem no centro, 
alguns cães pisados. 
Bichos que sem culpa
prefiro pensar adormecidos. 

Henrique Manuel Bento Fialho
Entre o dia e a noite há sempre um sol que se põe
Edição de Autor, 2000, p. 29.

De todos os poemas que já li de Henrique Manuel Bento Fialho, ficou-me este gravado na memória. Não sei se devido ao facto de muito andar na estrada. Se devido ao facto de o considerar um muito bom poema. Mas também é um facto que acredito que toda a poesia tem, em sim, a intenção de comunicar, mesmo que seja na sua incomunicabilidade (recordo, por exemplo, alguns poemas dadaístas). A questão da universalidade é, de novo (e segundo o meu ponto de vista), também aqui importante. Penso que a maior parte dos leitores que conduz, e mesmo aqueles que o não fazem, se conseguem identificar, ou até mesmo rever, no sujeito poético deste poema. O quotidiano é plasmado em cada um destes versos com uma simplicidade desarmante. E essa simplicidade não deixa de ser poética. E é tudo menos fácil, pois falar da morte, sem cair nos lugares-comuns habituais, não está ao alcance de todos.