"a escrita", por Charles Bukowski



Tradução: João Coles



é amiúde a única
coisa
entre ti e a
impossibilidade.
nem a bebida,
nem o amor de uma mulher,
nem a riqueza
podem
comparar-se-lhe.
nada te pode
salvar
excepto
a escrita.
ela impede que as paredes
caiam.
que as multidões
se aproximem.
rebenta
com a escuridão.
a escrita é o
derradeiro
psiquiatra,
o mais bondoso
deus de todos os
deuses.
a escrita persegue
a morte.
não sabe o que é
desistir.
e a escrita
ri
de si mesma,
da dor.
é a última
expectativa,
é a última
explicação.
é isso
que ela
é.


in Blank Gun Silencer – 1991


writing

often it is the only
thing
between you and
impossibility
no drink,
no woman's love,
no wealth
can
match it.
nothing can save
you
except
writing.
it keeps the walls
from
failing.
the hordes from
closing in.
it blasts the
darkness.
writing is the
ultimate
psychiatrist,
the kindliest
god of all the
gods.
writing stalks
death.
it knows no
quit.
and writing
laughs
at itself,
at pain.
it is the last
expectation,
the last
explanation.
that's
what it
is.


from Blank Gun Silencer – 1991

Dois poemas traduzidos: Mark Strand e Garcia Lorca

Tradução de Tatiana Faia

Não sei ao certo onde Mark Strand se terá sentado para escrever o primeiro dos poemas que traduzo aqui, “Keeping Things Whole,” mas foi um poeta e tradutor galego, Jesús Castro Yáñez, quem por sinal me o mencionou. É um poema que ensaia uma justificação da necessidade de movimento, mas também ele se move, chega à revelação que encerra. O outro poema que aqui traduzo é um dos Seis Poemas Galegos de García Lorca e há outro elo galego. Sabemos onde García Lorca estava sentado quando o escreveu, ou talvez o reescreveu, não é claro, a pedido de dois editores galegos: no café Moderno em Pontevedra, em 1932.  Talvez Lorca esteja a falar aqui sobre a natureza de normas opressivas, mas de certeza que entre ter sido e haver de ser há qualquer coisa que é desarrumada pela liberdade de movimento que aí fica implícita, pelas imagens inusitadas e pouco conformes a qualquer cânone de representação realista. Achei então que fazia sentido ler estes dois poemas juntos.  

 

Manter as coisas inteiras

Num campo
sou a ausência
de campo.
É sempre
assim.
Onde quer que esteja
sou o que está em falta.

Quando caminho
separo o ar
e o ar move-se
sempre
para preencher os espaços
onde o meu corpo esteve.

Todos temos razões
para nos movermos.
Eu movo-me
para manter as coisas inteiras.

 

Mark Strand, “Keeping Things Whole",” Selected Poems, 1979. Publicado aqui.

 

Eu sei que o meu perfil será tranquilo

Eu sei que o meu perfil será tranquilo
no musgo de um norte sem reflexo.
Mercúrio de vigília, casto espelho
onde se quebra o pulso do meu estilo

Que se a hera e a frescura do fio
foi a norma do corpo que deixo,
o meu perfil na areia será um velho
silêncio sem rubor de crocodilo

E ainda que nunca assuma sabor de chama
a minha língua de pombas enregeladas
mas antes o deserto gosto das giestas,


livre signo de normas oprimidas
serei, no pescoço da hirta rama
e num sem fim de doloridas dálias.

 

Frederico García Lorca, in Seis Poemas Galegos (1935).

"Cientificamente me pergunto", de Patrizia Cavalli


Todi, 17 de Abril de 1947 ~~ Patrizia Cavalli ~~ Roma, 21 de Junho de 2022



Tradução de João Coles



Cientificamente me pergunto
como foi criado o meu cérebro,
que faço eu com este engano.
Finjo ter alma e pensamentos
para melhor circular entre os outros,
por vezes parece-me mesmo amar
rostos e palavras de pessoas, raras;
sendo tocada gostaria de poder tocar,
mas descubro sempre que todas as minhas emoções
dependem de um temporal que se avizinha.


Io scientificamente mi domando
come è stato creato il mio cervello,
cosa ci faccio io con questo sbaglio.
Fingo di avere anima e pensieri
per circolare melgio in mezzo agli altri,
qualche volta mi sembra anche di amare
facce e parole di persone, rare;
esser toccata vorrei poter toccare,
ma scopro sempre che ogni mia emozione
dipende da un vicino temporale.

Siroco: um poema de Jorie Graham

Do lado esquerdo, Casa de Keats e Shelley, Roma, ca. 1906

Jorie Graham
”Sirocco,” de Erosion, 1983
Traduzido por Tatiana Faia

Em Roma, no número 26
             da Piazza di Spagna,
ao fundo de um longo
            lance de
escadas, estão os quartos
            alugados a Keats

em 1820,
            onde ele morreu. Agora
podes visitá-los,
            o pequeno terraço,
o quarto. Os pedaços
            de papel

em que ele escreveu
            versos
são guardados atrás de vidro,
            alguns amarelecendo,
alguns fotocopiados ou
            mimeografados...

Fora da sua janela
            podes ouvir o siroco
trabalhando
             o invisível.
Cada folha seca de hera
            é tocada,

retocada. Quem é o
            o espírito nervoso
deste mundo
            que tem de rever uma vez e outra
aquilo que já sabe,

o que é tão quente e seco
            que olha através de nós
por nós,
            para uma resposta?
No porto,
            no terraço

as rígidas formas
            helénicas
das uvas surgiram.

            Hão-de amolecer
até serem fracas o suficente
            para penetrar
este mundo, traduzindo
            desamparadamente
do belo
            ao verdadeiro...
Qualquer que seja o espírito,
            a densidade das uvas


é parte do seu modo de olhar,
            e as mãos lentas
que fizeram esta máscara
            de Keats
na sua outra vida,
            e a velha mulher,

a guardiã
            do memorial
sentada no alpendre
            abaixo do porto
a separar o grão
            de entre os seixos

lançando-os à sua caçarola
            de ferro forjado
Vê o que as mãos dela
            sabem –
são o seu hálito
            a sua língua-

-mãe, dividindo
            descartando,
Há uma luz brincando
            sobre as folhas,
sobre o seu rosto,
            tornando-a

abstracta, tornando-a
            rápida
e estranha. Mas ela
            não se preocupa
com o que a mancha
            mudando-a,

ela está
            a fazer o seu trabalho. Oh como queremos
ser levados
            e mudados,
ser emendados
            pelas coisas em que entramos.

É assim também
            com o mundo?
Deseja ele que nós
            o emendemos,
luz e escuridão,
            verde

e carne? Será
            livre então?
Penso que o mundo
            é um elemento
desesperado. Se pudesse
            deixar-nos-ia acalmá-lo,

recebê-lo. Por isso eis
            o que tenho
de te pedir
            que imagines: vento;
o momento em que
            o vento

se acalma; e as uvas,
            que nada são,
que brotam
            nas tuas mãos.