a lição

o professor está num salário de sessenta mil
e de vez em quando convida a poeta
a vir falar sobre poemas nas suas aulas de poética
o professor frequentemente comenta
que não entende porque é que a poeta
que ele sabe que está num salário de cerca de vinte mil
num emprego que não é a tempo inteiro
não se tenta tornar uma professora também 

a poeta normalmente responde-lhe
que não sente que tenha
grande coisa a ensinar a ninguém
e acrescenta talvez desnecessariamente
que não ter um certo tipo de salário
é o preço que ela escolheu pagar
por uma considerável liberdade 

a poeta de vez em quando repara
que não se sente
particularmente confortável
nesta amizade
mas também
não particularmente desconfortável 

o professor acha a poeta exótica
ela veio de um país estrangeiro
fala a língua dele com um sotaque
que ele a princípio teve dificuldade em classificar
e pensou até de início que ela viesse
de um destes países que estão no centro da europa
certamente não um daqueles lugares mais caóticos
um pouco abaixo da linha dos alpes ou dos pirinéus
a poeta achou que este era
mais um comentário aborrecido sobre sotaques
na vida de uma pessoa
que escolhera viver como poeta
num país estrangeiro qualquer
por razões que não lhe importava
explicar a ninguém 

a poeta não costumava pensar muito
em que tipo de relação tinha com o professor
até que um dia ele lhe perguntou
com que palavra exactamente
se poderia descrever essa relação
a poeta pensou que naquela manhã
um dos seus gatos
uma criatura de outro jeito
doce, calma e brincalhona
trouxera para casa um rato
que teve de se fazer de morto
com um grande caos na cozinha
para poder escapar com vida 

a poeta pensou em como
prendido o gato
para poder abrir a porta
viu o alívio tenso no corpo do rato
assim que ele pôde dardejar
através das vedações dos jardins
a uma velocidade luminosa  

a poeta cujo jeito para o negócio
tinha sobretudo a ver
com errância e melancolia
lembrou-se ainda
de um poema de joão miguel fernandes jorge
sobre comer a última lata de chouriço enlatado no texas
a poeta fez um ar confuso
e brindou o professor com um gélido silêncio
que ela esperou que fosse suficiente
para ele perceber  

o professor puxou a gola do casaco para cima
e endireitou os ombros
a poeta pensou neste gesto em termos
de expressões vagamente sexistas
não raro aplicadas a treinadores de futebol
no seu pequeno país um pouco abaixo
da linha dos pirinéus 

a poeta passou parte da adolescência em nápoles
e concede que às vezes pensa em certas situações
com uma violência desnecessária
pensa no mundo em termos
de enzo scanno e michele solara
a poeta entende racionalmente
que agora vive num mundo
mais civilizado do que esse
exceptuando quando não  

noutro dia a meio de uma aula
o professor sentiu necessidade de apontar
que discordava do uso que a poeta
fazia da palavra errático
no quinto verso da segunda estrofe
do terceiro poema do seu mais recente livro  

o professor notou que era uma palavra
de conotações desnecessariamente negativas
a poeta queria ter respondido
que de vez em quando era preciso aturar
muitas coisas com conotações
desnecessariamente negativas
para chegar a um pouco de verdade e beleza
mas entendeu que esta resposta
seria talvez moralista 

e comentou apenas
que era exactamente
por ser uma palavra negativa
que a havia escolhido 

o professor declarou que
there was no need to get emotional now
over such a small thing
a poeta reflectiu
já quase no fim da sua paciência
que o professor ganhava a vida
a dizer a jovens adultos
que as palavras que escolhemos contavam
mas concedeu que este talvez
fosse um pensamento
um pouco passivo-agressivo 

no elevador a descerem em direcção ao rés-do-chão
o professor aproximou-se demasiado da poeta
até o seu ombro se colar ao ombro dela
a mão dele pousada sobre a sua pasta
a poeta tornou a pensar na palavra errático
o professor olhou a poeta nos olhos
e comentou que as suas pupilas estavam dilatadas
posicionando-se diante dela
ele afastou uma madeixa de cabelo
de cima dos olhos dela
ela colou uma mão à parede e não se mexeu
lembrando-se da sua juventude napolitana
ocorreu-lhe que estavam
ambos no ângulo certo
para que apenas uma de duas coisas acontecesse
e concluiu com alívio
que seria uma joelhada fácil de desferir 

um par de horas mais tarde o professor
enviou à poeta uma elaborada mensagem
que a poeta descreveria
embora concedendo
que não muito positivamente
como poesia erótica de mau gosto
sobre gatos e pupilas dilatadas
um pequeno mapa em quinze linhas
de uma fantasia sexual aborrecida e previsível
sobre dominador e dominado
caçador e caçado
que fez a poeta pensar
no imperialismo mal disfarçado da pax britannica
e naquele poema de alexandre o’neill
aquele em que todos estamos a pensar
a história da moral 

durante várias semanas
a poeta ficou sem saber o que responder
quando finalmente confrontou o professor
ele alegou a ignorância dela
a sua falta de familiaridade
com baudelaire e murnau
com o erotismo expressionista
do centro e do norte da europa
para aceder correctamente ao significado inocente
e apenas puramente literário daquela mensagem
o professor chamou a poeta de má amiga
invocou a mulher os dois filhos
o empréstimo da casa
o casamento de vinte cinco anos
a poeta pensou que eram demasiados pormenores
para uma mensagem tão idiota 

ponderou o quão mediocremente distante se sentia
em tudo aquilo dos poemas de amor
orgulhosos e solitários de hilda hilst
até das falhas da sua própria
má imaginação melodramática
e veio-lhe à memória sobretudo
aquele verso de um poeta grego
em que ele diz que dá força
passar tempo com os mortos
quando os vivos não chegam 

pensou por fim que já não valia a pena explicar
àquele homem
como para ela não existiam
significados literários puramente inocentes
sobretudo não se havia baudelaire e murnau
lá pelo meio
que há palavras que quando usadas
mesmo nas situações mais confusas
mesmo naquelas que nos deixam mais perplexos
exigem de nós apenas estar disposto
a morrer ou a matar
uma coragem quente e simples
de viver à deriva de um sopro
com uma clareza que é sempre
necessária e difícil
para todos e qualquer um  

Amsterdão, Outubro de 2017

Oxford, 28 de Janeiro de 2022

 

Desiderio de Ricardo Marques (não edições, 2022)

 

Uma viagem que fiz ficou ligada a um livro de Ricardo Marques, Lucidez (e Outras Sombras), e de vez em quando penso nisso com alegria e assombro. A imagem que se vê na capa é baseada numa fotografia que tirei a um fragmento de uma estátua, uma peça de um rosto de mulher que está num museu relativamente obscuro de Roma, ou pelo menos não tão visitado quanto devia, o Centrale Montemartini, no Quartiere Ostiense. Pouco central, pouco conhecido e alojado numa antiga central termoeléctrica, a única atracção turística de que não fica muito longe é do Cemitério Protestante, onde estão sepultados Keats, Shelley, Gregory Corso e outras pessoas que, bem vistas as coisas, são caras ao imaginário do Ricardo. Este museu reúne um acervo de estátuas romanas que não couberam nos outros museus da cidade e foram ali deixadas, um pouco como em depósito. Mas este depósito é um dos museus mais inacreditáveis que conheço, com obras supostamente menores da antiguidade que são tão extraordinárias quanto obscuras. A fotografia que tirei de uma dessas obras o Ricardo viu-a na rede social mais batida de todas e perguntou-me se a podia usar para um livro seu e eu disse que claro que sim, e depois fiquei a pensar que este episódio era típico da curiosidade e do espírito aberto e um pouco flâneur do Ricardo. Pareceu-me que afinal tinha ido ao Centrale Montemartini por causa do livro dele. E achei que esta ideia de pôr esta cabeça de mulher meio mutilada na capa de um livro chamado Lucidez dizia qualquer coisa de urgente acerca da poética do Ricardo, e Lucidez é de resto um livro que pode ser pensado como contendo algumas artes poéticas, e algumas delas inesperadamente assertivas e urgentes (penso aqui em poemas como “Avidez,” p. 32, “Eles não são os meus pares,”p. 56, “O lepidóptero,” p. 57, “Frag mento,” p. 62) onde aflora um juízo estético/ético que pode, ainda que em alguns destes poemas indirectamente, referir-se aos contextos do que significa escrever poesia. Lucidez é um destes livros que deixa patente o labor – uma palavra melhor que esforço, porque o Ricardo faz tudo isto parecer muito natural: as traduções, as antologias, os livros de poesia, a novela escrita durante a pandemia, as exposições, as leituras de poesia, o conhecimento certeiro e infalível do melhor restaurante de ramen na cidade de Lisboa – de um poeta que escreve não para pregar, nalguma espécie de exposição didática (penso que nada poderia estar mais longe do espírito do Ricardo), sobre o que seja lucidez, mas para tentar reunir alguma num livro que não impõe nada, apenas vai, poema a poema, iluminando a necessidade de falar de algumas coisas que estão no campo de forças desta palavra e, afinal, da profunda necessidade de a procurar, de ir tentando chegar a ela. Escrever desta maneira é uma forma de exploração ética e, por aí, de desejo: envolve uma viva atenção, disponibilidade e vulnerabilidade, que são três condições sem as quais, de resto, acho difícil que se escreva poesia.

Parece-me adequado que a este livro de poemas se tenha seguido, com uma novela ensaística pelo meio (A Varanda, Companhia das Ilhas, 2021), um livro sobre, exactamente, o desejo: Desiderio (não edições, 2022), que colige poemas que o Ricardo foi escrevendo acerca deste tema. Pode-se pensar em Ricardo Marques como um poeta que constrói os seus livros em torno de um só conceito (foi este o caso em Metamorphoses, Ruinenlust, Lucidez e agora em Desiderio), com uma preferência por uma precisão minimalista e por uma certa clareza vagamente derivada da dicção dessa poeta que, de acordo com a classificação sugerida por Miguel Tamen e António Feijó num livro de referência recente, O cânone, não operou qualquer revolução em termos da língua – Sophia.

Não há, em Desiderio, nenhum ângulo particularmente vanguardista. Mas isto talvez seja apenas no sentido em que o que parecem ser por vezes os poemas mais à retaguarda de um determinado momento literário são eles próprios uma forma de resistência ao tempo, que por aí ganham um outro potencial de inventividade e renovação. Mas Desiderio pode ser só mesmo lido desinteressadamente, e na verdade, convida o leitor a isso. Sendo, no entanto, um livro sobre um tema por definição privado – o desejo –, Desiderio faz-nos pensar sobre os discursos sociais que criamos sobre o tema, sobre os ícones e convenções por que estes discursos se expressam (de Antínoo a Leonardo a Corbet a Louis Garrel, passando por Hilda Hilst). E quase todos os poemas buscam um diálogo ou uma reflexão acerca da presença dos outros na nossa intimidade. Desiderio é assim um livro onde se insinua uma ideia de desejo como modo de viver, uma busca do outro à luz de uma certa lucidez, às vezes estoica e irónica, imposta pelo frágil equilíbrio entre triunfo e derrota que desejar alguém traz consigo, expondo assim a vulnerabilidade de quem fala (veja-se um poema como “Entre cão e lobo:” “dois cães conversando seus alvos/ de seara em seara trigo passageiro/ moído amiúde com o tronco/ das árvores a minha mó/ feita em miúdos// dois cães um deles mais lobo/ o outro mais magro/cães que caçam separados/ as sobras nos cantos” (p. 50).)” Noutros poemas, encontramos um eco da desesperada vitalidade de Pasolini de “O Pranto da Escavadora,” um poema onde se lê que só amar e só viver importam, não o ter amado ou o ter vivido: “só a beleza aberta/ aquela que abre é a beleza” (“Noli me tangere,” p. 42). Às vezes esta reflexão é simplesmente sobre o lado estético do desejo, a sua contemplação deslumbrada, talvez com qualquer coisa do tropeço adolescente de que falava O’Neill (penso aqui num poema como “Kouros na Biblioteca Nacional.”). Há um poema assombroso, “Voyeurismo” (p. 74), que numa nota discordante recorda, ou parece recordar, o tipo de desejo clandestino que Jorge de Sena descreve em Sinais de Fogo, um mundo de encontros avassaladores e clandestinos. Este poema é imediatamente seguido por um poema onde o desejo confina com a ternura, talvez com a alegria do amor (“Viçoso Vício,” p. 75).

Com que outras poéticas do desejo dialoga este livro? É óbvio talvez pensar em Ovídio e na sua Ars Amatoria, mas não há em Desiderio o lado expressamente didático desse manual de seduções da Antiguidade. Os poemas que aqui leio não me parecem almejar, porém, ao contrário do que sucede com Ovídio, a uma pedagogia da sedução, são antes sobre momentos privados, intensamente vividos, que são revisitados idiossincraticamente, mais ou menos despretensiosamente (embora haja por vezes uma ironia que terá a ver com uma certa preocupação com uma beleza do estilo e a espaços uma gravitas, reminiscente da dicção de Sophia, que é uma forma de falar da elevação do desejo), o que talvez venha de uma consciência de que no desejo o caçador pode tornar-se facilmente o caçado: penso aqui na lúdica sequência de dois sonetos, “Soneto do Activo” e “Soneto do Passivo” – que ironiza sobre estereótipos limitados que têm que ver com um olhar preconceituoso da heterossexualidade sobre a homossexualidade, mas brincando com o contexto da economia (o que, num contexto diferente, recorda outro livro onde este interesse pela intersecção entre economia e poética está presente, Divida Soberana, de Susana Araújo). A exploração de uma psicologia do desejo que está aqui em causa terá então, talvez, mais que ver com o mundo dos diários de Anaïs Nin, no sentido em que se procura aqui uma descrição da experiência do desejo, do que com Ovídio. Há qualquer coisa de escultório na poesia do Ricardo, de um modo mais geral: eles convidam à contemplação, pedem de nós a delicadeza de reparar nos detalhes onde, como se lê num poema de Franco Alexandre, habita um deus.

Numa breve nota introdutória ao livro, Ricardo Marques explica que Desiderio, em certo sentido, reúne quarenta anos de poesia, a mesma idade que é a sua, que os poemas estavam dispersos e foram sendo recolhidos (o primeiro poema data de 2012, o penúltimo de 2021, o último, “Biografia,” não tem data), que muitos deles nascem de coisas (peças, exposições, filmes) e pessoas vistas em viagens. E acrescenta que foi “essa surpresa da desadequação” que o fez escrever. Esta surpresa da desadequação, que tantas vezes é o primeiro indício do desejo, é talvez o fio condutor mais vital que une todos os poemas deste livro. É também isso que o torna tão adequado. Quia pauper amavi, como diria Ovídio.

Oxford, Novembro de 2022-Janeiro de 2023

Livros do ano, 2022 (Tatiana Faia)

Esta lista é uma espécie de balanço, uma enumeração imperfeita de alguns dos livros que mais gostei de ler em 2022. É um pouco hedonista, porque, parafraseando Susan Sontag, ler, tal como escrever, é uma forma de felicidade, e este foi um ano que não foi particularmente dado a hedonismos. Em 2020, durante o primeiro confinamento, comecei um clube de leitura com outra pessoa só. A Clara estava em São Paulo e eu em Oxford, todos os dias nos encontrávamos diante de uma câmara e líamos uma para a outra, ela um romance e eu outro. Este clube de leitura, que existe ainda hoje, cada vez mais me faz pensar no acto de ler como uma janela privilegiada, uma espécie do suave mari magno de Lucrécio, cujas vistas correm tangencialmente ao mundo que continua a girar loucamente. Estou a pensar nisto enquanto me sento para escrever esta lista paralelamente a uma janela que tem vista para um jardim que já não está, mas esteve, coberto de neve. A minha lista é também parcial em duplo sentido, não inclui necessariamente tudo o que amei ler em 2022 e inclui os livros feitos por alguns amigos.

 

On Grief and Reason de Joseph Brodsky (Penguin, 1997) – é uma colectânea de ensaios que inclui algumas das reflexões mais lúcidas que li este ano, sobre o exílio, sobre encontrar poetas e ler poesia, sobre espiões russos em Londres, sobre traições, sobre fazer amor num quarto cheio de espelhos em Roma, sobre regressar à Europa para um funeral (o de Stephen Spender), sobre Kavafis, Horácio e Marco Aurélio. Tenho um amigo inglês que gosta muito de citar uma frase de Brodsky: “Poets are never victims.” Quando se lembra desta frase, o meu amigo acrescenta sempre: “And he knew what he was talking about. He spent time in a Soviet prison.” É exactamente esse modo de falar sobre as coisas que transparece nestes ensaios.

 

Caro Michele e Famiglia e Borghesia de Natalia Ginzburg – Três novelas da década de 70 que falam de laços familiares (sobretudo dos laços entre mães e filhos), da sua inexorável mudança na Itália do pós-guerra. Caro Michele é um romance epistolar originalmente escrito em 1973. Uma mãe vai escrevendo a um filho que primeiramente desaparece da sua vida e depois de Itália, por causa do seu envolvimento com as Brigate Rosse. Assoma nesta novela um pouco a Inglaterra desolada de que Ginzburg havia escrito em As Pequenas Virtudes, e o desolado destino dos exilados, mas antes de tudo isto uma mãe que tem muita dificuldade em entender um filho e que tenta fazê-lo com um sentido de humor duro, que o expõe a ele e a ela num delicado equilíbrio que não é um esforço tanto de o entender quanto de sobreviver através de certas coisas. Famiglia, por outro lado, é uma das novelas mais belas que li este ano, sobre um casal de amigos que estiveram outrora envolvidos e que se encontram numa noite de muito calor para ir ao cinema e nunca mais se separam continuando a entrelaçar as suas vidas de uma forma que envolve as suas novas famílias, outros amigos, outras relações. Talvez não seja tanto uma novela como uma exploração do amor e da amizade, vista a partir do lado absurdo e irrecuperável da vida, e incluindo-o. A versão italiana do audiolivro de Caro Michele é narrada por Nanni Moretti. Talvez poucas vezes um audiolivro tenha tido um narrador tão adequado.

 

Postwar Polish Poetry (ed. Czeslaw Milosz) – uma antologia inglesa de poesia polaca, talvez A antologia de poesia polaca.

 

Mrs Dalloway, Virginia Wolf – reli Mrs Dalloway em Março, pouco depois do início do evento de 2022 que não me apetece nomear. Por um lado, é o romance que me lembra que Bloomsbury, que de resto para mim são mais autenticamente aquelas dezenas de metros que correm entre o British Museum e a livraria da London Review of Books do que outra coisa qualquer, é alguma espécie de centro do mundo e da contemporaneidade, mais do que simplesmente do modernismo, e que muito do que é Bloomsbury, pelo menos para mim, é a força das observações de Virginia Woolf neste romance. Pareceu-me desta vez, não sei porquê, que nenhuma personagem é tão tristemente lúcida como Septimus.

 

A Poesia é uma Mercadoria Inconsumível: Poemas e Recensões de Pier Paolo Pasolini (selecção e tradução de João Coles, Sr. Teste, 2022): é uma antologia editada e traduzida por um amigo e um dos editores deste blog, João Coles, onde em certo sentido se podem ler os poemas e as recensões que nos ajudam a entender Pier Paolo Pasolini como o artista de uma desesperada vitalidade. Um trabalho de edição rigoroso, bem cuidado e bem pensado, num pequeno livro que se transforma assim numa das melhores introduções que conheço à obra de Pasolini em qualquer língua.

 

La tia Julia y el Escribidor de Mario Vargas Llosa – penso que só li dois romances monumentais este ano, mas ambos pertencem a esta lista de livros do ano, o primeiro é La Tia Julia y el Escribidor, um romance divertidíssimo, sobre um adolescente aspirante a escritor, estudante de direito, com um precário emprego na radio e mais precisamente na produção de radionovelas, e do seu primeiro amor, também ele digno de radionovela, a tia Julia, divorciada e quatorze anos mais velha e também sobre o lendário Pedro Camacho, lendário autor boliviano de radionovelas. É fascinante ver a inteligência narrativa de Vargas Llosa, como este romance é e não é uma colecção de novelas dispersas entre si e ao mesmo tempo o retrato do que em teoria devia ser uma subcultura, a do melodrama nem exactamente pop das radionovelas no Perú, mas que é um fresco de todo um tempo, pontuado pela duração de uma paixão adolescente.

 

A Tale of Love and Darkness de Amos Oz – este romance caiu no meu mês de Agosto entre um par de releituras porque tenho um amigo com quem falo, infelizmente, de longe em longe que me disse com grande fervor (aquele fervor que normalmente me faz não querer pegar num livro) que era um dos melhores romances que tinha lido na vida. A primeira parte destas conversas costuma ser sempre a mesma, “olha lá, Tadeu, o que é que andas a ler?” O assunto de A Tale of Love and Darkness é exactamente aquilo que o título inglês parece prometer. No fresco de personagens inesquecíveis que Oz recria a figura maior talvez não seja tanto o pai quanto a mãe de Amos Oz, a sua inteligência misteriosa, a escuridão que o seu suicídio traz, a forma como a muitos anos de distância Oz tenta reconstruir o mundo em que isso aconteceu, não só o de uma criança a crescer no jovem estado de Israel mas o de relações familiares e entre pequenas comunidades que uma criança sensível talvez não pudesse entender completamente, mas sentir sim, e tão profundamente que isso se torna um bilhete de regresso a um mundo entretanto mais ou menos desaparecido.

 

Uma antologia de poesia italiana: 13 autoras: de novo uma antologia feita pelo João Coles e publicada pelo Sr. Teste. Pode ler-se ao lado de outra breve antologia de poesia italiana de que gosto muito, The Faber Book of 20th Century Italian Poems (Faber, 2004, editada por Jamie McKendrick), e em certo sentido elas completam-se. O João selecciona aqui, cuidadosamente, uma espécie de cânone alternativoda poesia italiana contemporânea. Não há um poema mau. Prolonga um pouco o trabalho que tinha sido iniciado em Um Pouco do Meu Sangue, outra antologia de poesia italiana feita pelo João, em 2020, para a Contracapa.

 

Feux de Marguerite Yourcenar: é um livro que tem qualquer coisa de ovidiano (de o Ovídio de Heróides), são uma série de histórias de amores dilacerados, angustiantes e angustiados. Sobre o amor enquanto vital à sobrevivência e enquanto evento a que é necessário sobreviver.

 

Sonhador definitivo e perpétua insónia: uma antologia de poemas surrealistas escritos em língua francesa, Regina Guimarães (selecção e tradução), Saguenail (prefácio). Há uma concretude no surrealismo que de vez em quando me faz falta. Esta belíssima antologia lembrou-me porquê.

 

Either/or de Elif Batuman – algumas das horas mais divertidas que passei a ler um livro este ano foram passadas com este bildungsroman de Elif Batuman. O subtítulo podia ser Como Kierkegaard pode assombrar a sua vida. Mas para lá do lado picaresco que é sustentado pelo sentido de humor de Selin enquanto ela avança de uma paixão mal correspondida, e consequente obsessão de que ela não se consegue libertar, para outras relações igualmente tóxicas, que culminam no entendimento do acto de perder a virgindade e da exploração da sexualidade, algures entre Nova Iorque e a Turquia, como algo que é transacional de formas complicadas, desenha-se um entendimento mais profundo do que significa estar vivo, o que talvez seja, não em menor parte, uma mistura de coragem, sensibilidade e sentido de auto-preservação.

 

Time of the Magicians de Wolfgang Ellenberger e Places of mind: a biography of Edward Said de Timothy Brennan. O segundo destes livros talvez não seja tanto uma biografia como uma hagiografia, e talvez não seja tanto uma hagiografia por causa da relação próxima que Timothy Brennan tinha com Edward Said, quanto por causa da vitalidade e da inquietude de Said enquanto intelectual público, enquanto exilado profundamente privilegiado cujo trabalho (e figura) espelha e se divide entre várias culturas na intersecção entre o Oriente e o Ocidente. Sobre o primeiro livro escreveu o Victor Gonçalves aqui. Time of the Magicians coloca em paralelo as vidas e o pensamento de Wittgenstein, Benjamin, Cassirer e Heidegger, para descrever como uma década do século XX mudou a história da filosofia. Algures entre a leitura de um livro e outro dá para mapear a inquietude e o fascínio que as palavras e o que algumas pessoas pensaram sobre elas exercem sobre o tempo em que estamos a viver. 

 

After Sappho de Selby Schwartz, Una Donna de Sibilla Aleramo e La femme gelée de Annie Ernaux –O primeiro destes livros podia ler-se como uma introdução aos outros dois até porque Sibilla Aleramo é uma das personagens de After Sappho, uma série de prosas breves sobre mulheres, intelectuais, escritoras e artistas, e o modo como as suas vidas e a sua produção artística se cruzam com a da primeira poetisa do ocidente, Safo, e com as vidas umas das outras, numa longa corrente de correspondências que começa com Lina Poletti, uma das primeiras mulheres em Itália a declarar-se abertamente lésbica, e que termina com Virginia Woolf e Vita Sackville-West. Essas correspondências vão-se tecendo contra o fundo de uma série de outras vinhetas, sobre leis e decretos que foram sancionando e institucionalizando a misoginia e a desigualdade de género na Europa. Sibilla Aleramo, que foi amante de Lina Poletti, publicou Una Donna em 1906, mas o romance foi escrito entre 1901 e 1904 e, claro, rejeitado para publicação em várias casas editoriais. Em certo sentido, há uma correspondência com La femme gelée de Annie Ernaux. Ambos são textos iminentemente autobiográficos, ambos olham para a instituição do casamento como parte de um sistema de opressão em sociedades patriarcais (ainda que em épocas e em sociedades relativamente diferentes). É um romance escrito em chiaroscuro o de Sibilla Aleramo, cruel, barroco, marcado pelos lugares-comuns de uma certa escrita da decadência, de uma época que não consegue ainda conceber a possibilidade de uma felicidade sem culpa fora das normas de uma sociedade opressiva, e nesse sentido sem dúvida com qualquer coisa do olhar de um Gabriele D’Annunzio sobre estruturas familiares, mas é ao mesmo tempo um texto corajoso, com uma energia resiliente, que resiste até aos clichés do tempo histórico fora do qual ele não chega a conseguir conceber-se. Mas La Femme Gelée de Annie Ernaux consegue, em parte porque é um livro de outra época (a data de publicação original é 1981). É um livro que consegue olhar para o trajecto de uma rapariga desde a juventude até um casamento e uma experiência de maternidade que parecem pôr fim a quaisquer aspirações individuais – intelectuais, profissionais, amorosas – e expor e, pelo menos em certa medida, evadir o tipo de desfecho que se encontra em Sibilla Aleramo. Três textos no feminino inquietos, a que talvez se pudesse acrescentar The Cost of Living de Deborah Levy.

 

Yannis Ritsos, Os Diários do Exílio (traduzido por José Luís Costa e Rui Miguel Ribeiro, posfácio de Claudio Russello, Edições do Saguão, 2022). Yiannis Ritsos escreveu estes diários poéticos em sucessivos “exílios” internos, em campos de concentração infames (Limnos, Makronissos) que existiram na Grécia durante a guerra civil que se seguiu ao fim da Segunda Guerra Mundial, entre 1948 e 1950. A edição cuidada, com uma capa que emita os maços de cigarros que se fumavam nesses campos, o hors-texte que acompanha e edição e que Aragon escreveu em defesa de Ritsos, o excelente posfácio do Claudio, mas sobretudo a belíssima tradução seriam coisas que podiam explicar a gratidão que sinto por este texto finalmente existir em português. Mas tentar dizer isso é uma falsa aproximação. Os poemas que Ritsos escreveu nestas circunstâncias são o que Jorge de Sena descreveu num poema sobre não ter dinheiro para comprar livros (“Ode aos livros que não posso comprar”) como uma forma de ir reunindo e mantendo uma humanidade que vai escasseando. Os companheiros, lugares, objectos, trânsitos que Ritsos descreve têm um lado utilitário que envolve uma paráfrase de William Carlos Williams: as pessoas morrem miseravelmente, todos os dias, por falta de coisas que se podem ler em poemas. Não conheço nenhum livro de poemas que seja uma melhor demonstração disso do que este livro de Ritsos.

 

 

Três livros de poemas de pessoas que me são demasiado próximas que marcaram o meu ano foram Os Deuses da Resina (húmus, 2022) do Pedro Braga Falcão, que reúne três livros que ele me disse em tempo que eram sobre os seus pais e sobre os pinheiros em redor da casa onde ele cresceu. Duvido um pouco disso. Os poemas do Pedro são monólogos sobre a força da poesia enquanto música, enquanto pulsação para viver, sobre a paixão de que os poemas são um repositório, mas que é uma forma de habitar o mundo, de o ver criticamente, com tanta inteireza quanto possível. Paixão, na verdade o desejo, é explicitamente o tema de Desidério (não edições, 2022) de Ricardo Marques. Desidério é também uma espécie de balanço do percurso de poeta do Ricardo. Prata (elementário, 2022) de José Pedro Moreira é um livro sobre a prata, ou sobre Píndaro e a ideia expressa nas suas odes de que não há um prémio para o segundo lugar. Na mesma colecção gostei bastante de Titânio de Regina Guimarães (2022), e Sr. Estrôncio de Ricardo Tiago Moura (2020).

 

Um primeiro livro de um poeta novo, sobre o qual não escrevi, o que me pesa na consciência, e que não vi particularmente incensado por crítica nenhuma: Prelúdio e Fuga em Português Suave (Fresca, 2022) de Hugo Miguel Santos. É um primeiro livro marcadamente italianófilo. Talvez seja difícil de escapar ao facto de que os poetas tendem a decidir as suas genealogias literárias nos primeiros livros. A do Hugo é Pasolini e uma certa geografia literária da Itália do Sul, embora ele tenha estudado na Itália do Norte, mas talvez mais o Pasolini em estado de graça de A Longa Estrada de Areia, do que o de Escritos Corsários, e esta genealogia estende-se, é também a do desaparecimento de um amigo, e a que retrocede a um pai e a um avô. É um belo primeiro livro. Fica a nota.

 

Faltava aqui escolher um livro que li com Clara, no meu tal clube de leitura transatlântico para duas. Uma pequena história sobre a escolha desse livro. A 1 de Dezembro de 2022 dei por mim no aeroporto de Heathrow a ler-lhe, meio às escondidas, enquanto fazia tempo para apanhar um voo para Atenas, as três últimas páginas de O Desprezo de Alberto Moravia, um livro cuja leitura arrastámos interminavelmente durante meses. Nada nesse romance misógino é tão misógino como o seu final. Moravia é particularmente bom a escrever sobre a relação entre estruturas de opressão e corrupção moral – pense-se numa novela como O conformista. Antídoto para a amargura que essa leitura nos trouxe foi o livro que lemos em paralelo com esse, A Ilha de Arturo de Elsa Morante, durante muitos anos de resto mulher de Moravia (e é possível que qualquer coisa em O Desprezo revisite a ligação amorosa que Morante manteve com Visconti), que é um romance sobre a ternura e o melodrama da infância e da adolescência, que trazem Arturo até ao princípio da idade adulta, com a ilha de Procida como pano de fundo. É difícil não amar Arturo, o quanto ele quer morrer e o quanto ele quer viver. E é difícil não amar a sua madrasta, também ela uma adolescente, Nunziata.

O pequeno-almoço

Padaria Kora, Atenas. Fotografia de Mariana Bisti.

Para a Inês

 

Aquilo de que melhor me lembro sobre Breakfast at Tiffany’s são as cenas em que o gato, Cat, é abandonado e reencontrado num beco. E, claro, a cena inicial, com Audrey Hepburn a comer o pequeno-almoço em frente à montra da famosa loja de diamantes. Imaginei sempre que Truman Capote devia ter visto toda a novela desenrolar-se a partir do momento em que lhe ocorreu a primeira imagem. Por outro lado, ainda estou para encontrar uma coisa humana que seja expressão mais acabada de um recomeço do que os pequenos-almoços. Num dos seus poemas mais famosos, “Anunciação,” Ruy Cinatti escreveu que nós não somos deste mundo, mas que “anoitecendo, a vida recomeça.” Esta vida que recomeça de noite, à medida que o poema continua, chega à manhã e a um amigo nómada, que se vem aproximando, mas ninguém nesse poema toma o pequeno-almoço.

Estou a pensar em manhãs e pequenos-almoços porque há pouco tempo tive uma discussão com uma amiga que começou por ser sobre colonialismo e acabou a ser sobre pequenos-almoços. Não sei como chegámos aí. Há um verbo inglês de que gosto muito e que uso pouco. Meander. Meandering é o que se diz dos cursos dos rios com as suas muitas voltas, com a sua forma de labirinto, mas também pode ser dito de alguém que segue um percurso intricado ou de alguém que vagueia sem grande plano ou destino. Gosto das minhas conversas como os cursos dos rios pendem para as suas complicações. A minha conversa sobre colonialismo com a Inês, andou e andou, e andou até que já não tinha nada a ver com isso e acabou no pequeno-almoço. Aliás, acabou com a memória dela de um poema sobre um pequeno-almoço histórico (Russell Edson, “The Historical Breakfast”), em que um homem declara cada elemento desta refeição, em toda a sua banalidade, histórico. Mas daí lembrámo-nos de A importância do pequeno-almoço da Francisca Camelo. Os pequenos-almoços podem ser pequenos teatros. Não são, talvez, Históricos (embora alguns o sejam), mas são históricos, culturais, políticos, têm elementos sociológicos (daí nos termos lembrado do livro da Francisca). Pensei, por uma vez, que seria possível fazer o balanço de um ano em pequenos-almoços, como é possível medi-lo em livros lidos ou séries vistas, e que isto não seria completamente disparatado.

Por exemplo, o pão que normalmente como ao pequeno-almoço, em casa, quando estou quieta em Oxford, no princípio deste ano custava £3,40, o que nunca me pareceu extraordinariamente barato em comparação com o pão da minha infância rural, passada num pequeno país do Sul da Europa, onde penso que talvez o seu preço não chegasse aos cem escudos, e, tenho a vaga ideia, de que com a mudança da moeda terá passado a 1€, mas talvez esteja a exagerar. Cerca de vinte anos estão agora entre mim e essas memórias. O pão que compro para o pequeno-almoço em Oxford custa neste momento £4,50, é talvez o mais caro que alguma vez foi desde que tenho memória de comprar pão. É o primeiro ano, no entanto, em que o compro depois de uma pandemia seguida por uma guerra. O preço do pão que sobe preocupa-me, faz-me pensar demasiado em imagens que vi em manuais de história, de cartazes com o preço do pão na Alemanha entre as duas guerras. Faz-me pensar mais em imagens de fome do que no pequeno-almoço.

O meu pão inglês é classe-média até à náusea do cliché e tive de fazer alguma pesquisa até descobrir ao certo onde o comprar. O pão inglês nunca é facilmente bom, em muitas lugares que vendem pão nem sequer é feito todos os dias. Isto diz qualquer coisa da relação deste país com a comida. O meu pão é comprado em padarias com nomes pretensiosamente franceses ou dinamarqueses, onde se vendem tipos de pão inspirados em diferentes países e continentes. O pão que eu compro é producto e reflexo de uma sociedade cosmopolita e global.

O pão que não é classe-média que entra nos pequenos-almoços ingleses de pessoas que não podem pagar £3,40 por a loaf of sourdough bread (o pão que eu sempre tinha achado normal, que é fermentado, mas que é afinal, neste país, pão gourmet) é comprado normalmente no supermercado, é tipo Panrico e é pensado para sobreviver a um ataque nuclear. Não digo isto em qualquer espécie de bom sentido: é um pão com zero valor nutricional, ao qual a dado altura, por lei, o governo inglês decretou que tinha de ser adicionada vitamina D, por causa da insuficiência crónica desta vitamina que afecta as pessoas que em regra o consomem, que na verdade somos quase todos, porque ninguém lhe escapa na proverbial sandes do almoço. Atrás deste pão muito mais barato há uma verdade triste e inescapável: a de que Inglaterra é um dos países mais desiguais da Europa. E isto é visível em algo tão mínimo como o pão.

Durante a pandemia, na pastelaria dos libaneses em Cowley, o dono instituiu a regra de dar pão e comida fosse a quem fosse, se a pessoa dissesse que não podia pagar. Surpreendia-me saber que esta pessoa tinha, noutro capítulo da sua vida, vivido como corrector de bolsa em Londres. E depois tinha-se fartado de tudo e aberto este lugar, logo no início da pandemia. Tenho uma amiga com quem costumava tomar o pequeno-almoço que é historiadora do império romano e que tem muita dificuldade em aceitar que as diferenças sociais sejam tão óbvias ao nível de algo tão básico como pão. A minha amiga teve uma infância rural como eu. Diz-me às vezes que um dia se fartará da história do império romano e que poderá depois abrir uma padaria e que esta é a profissão mais digna que ela conhece. Eu digo-lhe que aparecerei para comprar o pão do pequeno-almoço. As padarias fascinam-me de manhã, quando tudo ainda está prestes a começar.

            Há cidades neste continente onde amo tomar o pequeno-almoço, sobretudo se estou com tempo, e outras em que odeio. Odeio, por exemplo, tomar o pequeno-almoço no centro de Roma, onde vou errando de café em café, cada qual mais apinhado de turistas, onde um cornetto, a versão italiana dos croissants, custa um preço absurdo, para turista, que é a expressão de uma falha de hospitalidade e da monopolização de um centro de uma cidade que não tem existência para lá do turismo. É um teatro sem vida, uma natureza morta esse pequeno-almoço desmaiado nessas mesas inóspitas. Como se pode começar um dia assim? Não se pode entender ao certo o que é tomar um pequeno-almoço em Roma num destes cafés. Há, no entanto, excepções. Como por exemplo, aquele pequeno café em Trastevere, não muito longe de Piazza Trilussa, cujo nome agora me escapa, um pouco escondido, demasiado parecido com os cafés de Lisboa. Mas em bairros mais afastados do centro de Roma pode entender-se mais facilmente o que seja esse pequeno-almoço, um cornetto, um cappuccino e um expresso, por favor, digo num italiano que funciona, em Pigneto, o bairro onde Pasolini filmou Accattone, ou em San Lorenzo, onde isto custa ainda, apesar da inflação, qualquer coisa como 2.50€, e onde estou rodeada de romanos que estão a ler o jornal ou a olhar para o telefone, ou que saíram para passear o cão, ou que se preparam para ir trabalhar. A pulsação da vida nesta cidade atravessa este momento. Os cornetti lembram-me, apesar das diferenças, os croissants que se pode comer ao pequeno-almoço no Porto. Também os cafés de Roma e do Porto se parecem. É um cliché dizer isto. Estou aqui à procura de uma afinidade entre duas cidades que amo muito.

            Há cidades em que tenho rotinas maníacas para tomar o pequeno-almoço, que denunciam as minhas obsessões com voltar sempre aos mesmo lugares e por trás disso sei que se esconde o meu amor por certas ruas, por certas pessoas em certas ruas, com um sentido de fidelidade e uma gratidão natural, quase inconsciente, um pouco comovida. Isso acontece-me, por exemplo, se estou em Lisboa e resolvo atravessar metade da cidade só para ir tomar o pequeno-almoço ao café Luanda, as torradas e o galão, uma combinação através da qual regressa por um instante toda uma estação da minha vida que desapareceu e não voltará nunca mais. Reparo com isto que sempre que mudei de hábitos em termos de pequenos-almoços houve alguma mudança sísmica na minha vida, algum grande corte.

Em Chiaia, em Nápoles, há um café diante de uma piazza onde por vezes vou tomar o pequeno-almoço, e envio sempre uma fotografia desse pequeno-almoço a um amigo. É raro cruzarmo-nos nesta cidade da qual gostamos muito os dois. Quando é ele quem cá está, é ele quem me envia uma versão desta imagem. Piada, provocação e nostalgia são os sentimentos deste ritual que, bem vistas as coisas, não pode ser chamado de anódino.

Há os meus pequenos-almoços em Atenas, que são muitas vezes solitários, empreendidos cedo e antes de me juntar a um amigo ou outro, e isto acontece porque sei que nem um santo talvez teria paciência de os tomar comigo. Começam normalmente numa padaria que fica num bairro que se chama Kolonaki até onde normalmente ou tenho de andar um pouco ou fazer um desvio e a padaria fica no topo de uma colina. O cheiro do pão e dos pães de canela e de cardamomo consegue sentir-se desde cá de baixo, consegue ver-se também uma pequena fila de turistas e locais madrugadores, mas esta fila vai aumentando à medida que a manhã avança. Compro um pão de canela com o azul do horizonte ao fundo da rua e começo depois a descer em direcção a Exarchia, com a colina do Licabeto, onde Aristóteles se despediu de vez de Atenas, atrás de mim e é só em Exarchia, num café com uma montra que um grupo de anarquistas partiu em protestos, e assim ficou, que compro o meu primeiro cappuccino do dia. Não venho aqui por causa do café, embora não seja mau, e há a vantagem de haver leite vegetariano, mas porque uma amiga me apresentou este sítio, que fica diante de um apartamento que partilhámos durante parte de um verão. Mas este é já um pequeno-almoço muito urbano e até turístico para Atenas, que talvez lembre a minha amiga dos cafés de São Paulo, onde ela vive, que reflecte uma opção dietária perpassada de preocupações para com o planeta e para com os animais. Mas um pequeno-almoço ateniense não se encontra nem nesta padaria de Kolonaki nem nesta completamente coffee shop, vinda de Londres ou Berlim, uma aberração em Exarchia, bairro de anarcas, sintoma de uma gentrificação que virá e será implacável, e que acabará, temo, com muitos dos fournos, as padarias gregas, onde o pequeno-almoço para mim é muitas vezes bougatsa, uma espécie de tarte com doce de leite, ou croissants de chocolate, e café grego, que, na verdade, é café turco.

Quando me apetece tomar o pequeno-almoço em Atenas sem andar de um lado para o outro em busca, afinal de contas, da minha versão matutina daquilo a que Tom Waits chamou numa canção de heart of Saturday night, há um café que amo, perto do museu da Acrópole, que de noite é um bar, que se chama Lotte, onde gosto de me sentar a observar as pessoas. E gosto do nome do sítio, que é tirado de Goethe, e eu queria muito conseguir imaginar o que seria Lotte em Weimar em Atenas.

De tudo isto se conclui que os pequenos-almoços são históricos, mas também a-históricos, políticos e privados, actos de busca e da imaginação, expressões de gratidão idiossincrática pelo dia que começa, mas também, por vezes, actos de intensa nostalgia. Mas a nostalgia, creio, não é necessariamente uma forma de saudosismo barato ou de sentimentalismo, embora, claro, também seja isso (e às vezes penso que não há nada de errado com certas formas de sentimentalismo). Mas pode ser também uma maneira de resistência, um gesto para abrir o livro em branco de um dia e tentar amar as horas que estão por vir.    

O nosso amigo em comum

O nosso amigo em comum meteu-se desta vez em trabalhos sérios e entregou-se na manhã de ontem às autoridades, fiquei a saber por uma vizinha nossa e queria que também tu tivesses conhecimento, tão longe que te encontras aí nessas planícies de vento e de pedra. Suponho que não conheças muito da história, por isso permite-me deixar-te aqui os traços gerais de um episódio que veio abalar, mais do que alguma vez esperado, a habitual tranquilidade do nosso bairro. Sentirás porventura nas minhas palavras algum escrúpulo em condenar abertamente o comportamento do nosso amigo, mesmo nos seus momentos mais abruptos e insensatos. Fica porém sabendo que tal se prende menos com algum tipo de avaliação condescendente das suas acções ao longo dos últimos dias, o que aliás seria praticamente impossível, considerando a sua extrema gravidade, do que com certo sentimento de culpa que desde ontem lentamente me tem invadido, firme e crescente como batalhão inimigo avançando sobre milheirais indefesos ou a primeira neve da estação fria. Não que eu tenha tido qualquer parte, moral ou juridicamente condenável, na forma infeliz como os acontecimentos se precipitaram. Ainda assim, enquanto observador atento de todo o estranho caso, bem como na qualidade de agente desencadeador do conflito criado, e verás como efectivamente o fui, não posso deixar de me sentir responsável pela perdição em que terá caído o nosso bom amigo em comum. Tu mo dirás, se assim entenderes. Não to peço, embora suspeite, conhecendo-me como julgo conhecer, que também estas linhas andam em busca de algum perdão ou paz de espírito.

Mantém minha mãe, desde que deixei de trabalhar, o feliz hábito de me vir despertar todas as manhãs às oito horas em ponto com a sua doce saudação de bons dias e o providencial amargor do café forte que só ela sabe fazer. Em meu abono devo dizer que de início por várias vezes a tentei convencer de que não havia necessidade de semelhante tratamento a fazer lembrar realezas ou tempos de infância em dias de febre. Mas ela insistiu, asseguro-te, alegando não lhe custar nada, ser até para ela uma rotina prazenteira. Insistiu e eu não me opus. Creio que no fundo é a forma de ela tratar de garantir-me uma certa disciplina de horários e não permitir que, passando eu agora a maior parte do tempo em casa, a vida doméstica não descarrile em letargia e desmazelo. Considerando que os meus projetos pessoais a seus olhos não mais parecem que passatempos ou no máximo afazeres de circunstância, ao menos um despertar a horas certas permite-lhe acreditar com alguma convicção que o filho não é aquilo a que poderia chamar-se um inútil, um desocupado. Estou em crer, como te digo, que essa maternal invasão dos meus aposentos, todos os dias à mesma hora, acompanhada do invariável procedimento de desejar-me os bons-dias, pousar o café na mesa de cabeceira e afastar os cortinados para abrir passagem à luz da manhã, é a maneira de minha mãe conservar o seu domínio sobre uma situação que não é de todo do seu agrado e desse modo não deixar que o filho se perca. Que ele não se vá abaixo, como uma vez a escutei dizer ao telefone à minha irmã. Que após eu ter recebido parte da ampla herança de minha tia eu tenha abandonado o emprego mais enfadonho da história para finalmente me dedicar à escrita do grande romance é algo que ainda não lhe quadra, eu sei, estou consciente disso, mesmo que desde muito cedo, a meu pedido solene, ela tenha desistido de mo dizer abertamente, tendo igualmente da sua parte constatado a inutilidade de quaisquer argumentos perante a minha determinada posição. Tolera-me por conseguinte a vida de recatado literato que a fortuna me permitiu adoptar, reservando-se o direito de me disciplinar horários, refeições e um ou outro abuso de linguagem. Foi por isso ela a anunciar-me certa manhã de abril, ainda eu mal acordado e pior saído de um sonho confuso, meu deus, vem ver, estão a cortar o cipreste.

O cipreste do bairro, sabes? Não sei se os tens por aí, para dizer a verdade desconheço as paisagens que contemplas ou por que arvoredo te moves. Algum cemitério triste os terá seguramente, são árvores dadas a espaços exíguos. Mas falo-te nem mais nem menos do rei do bairro, aquele colosso firmemente plantado no jardim de uma vivenda vizinha, numa rua paralela à nossa, e que eu me habituei a admirar, desde que me conheço, emoldurado pela janela do meu quarto. Destacava-se de árvores e casario em volta pelo seu denso corpo de coluna enegrecida e ao poente era a primeira forma a lançar com violência o seu marcado contorno contra o desmaio do céu. E agora, como se de um crime à luz do dia se tratasse, um bando de algozes munidos de moto-serras amputavam-lhe os grossos braços perante a chocada indignição de minha mãe. Foi o assunto do dia lá em casa e já na sala a televisão ligada sem som surpreendia por ignorar a notícia da atrocidade que naquele momento se perpretava. Ao mesmo tempo que minha mãe, possuída por repentino dever de proteção ambiental ou talvez, estou em crer, por esse tão humano instinto de resistir à mudança, se empenhava na procura de contactos de gabinetes e secretarias municipais para onde ligar a denunciar a criminosa infração, eu por meu lado tive então a infeliz iniciativa de telefonar ao nosso amigo em comum, desencadeando assim, como verás, os tristes factos que depois o levaram à perdição. Infeliz iniciativa, certo, mas penso também que inevitável, considerando a minha disposição naquelas horas, o estado de alma, como costuma dizer-se, e a sensibilidade contagiante de minha mãe, absolutamente determinada em defender a vida daquele bom gigante. E ao dia e hora em que te escrevo, consumado já tudo o que de pior se poderia imaginar, julgo entender com maior clareza, tanta quanta vai já faltando à jornada que termina, a importância daquele cipreste no bairro, e de todas as verdadeiras árvores à face do planeta.

A permanência. A permanência, digo-te, muito para lá de qualquer convicção ecológica. O que nos perturbou lá em casa foi essa constatação de uma permanência subitamente demolida pela decisão caprichosa de um qualquer insignificante indivíduo. Insignificante e temporário, impermanente. Como suportar o insulto de uma constância ameaçada em nome da vontade de alguém que daqui umas décadas já não andará por aqui? Aquele cipreste, simbolizando a cadência justa e equilibrada dos meus dias passados à secretária do avô, em busca da palavra justa no lugar mais acertado, aquele cipreste, repara bem, agora pura e simplesmente sonegado à nossa rotina, desfeito em toros de lenha e amontoados de folhagem sem vida, deixando no horizonte uma lacuna do tamanho de um monte escuro. Tudo isto fiz ver ao nosso amigo em comum nesse fatídico telefonema, com o exclusivo objectivo, acredita, de partilhar com ele a minha revolta, envolver no assunto um amigo, um outro membro da comunidade, para que se juntasse a uma qualquer onda de reprovação, não mais que isso, uma vez que pelo que podíamos verificar pela janela já pouco ou nada poderia ser feito para salvar o cipreste do seu funéreo destino. Mas imagino que o devo ter apanhado num dia de maior susceptibilidade, digo-o em minha defesa. Acontece às vezes, não? Uma palavra dita no tom exacto, no momento crucial, ao ouvido da pessoa mais sensível para a escutar. Talvez tenha sido isso, espero um pouco, que o tenha levado a reacções tão extremas, mesmo considerando a gravidade do crime que se cometia.

Conto-te um pouco do romance que ando a escrever, tens paciência ainda? Não imagines grande disciplina de trabalho da minha parte, pois infelizmente me acho bastante dado a dispersões de todo o tipo, alguém que me telefona, pequenas tarefas domésticas ou simplesmente essa tão recorrente incapacidade de me sentar à secretária e verter tinta sobre papel, desbastar a brancura a golpes de texto, escrever um parágrafo qualquer, por mais escasso e desconexo que seja, para assim pelo menos partir, sair do sítio, que é o contrário de ficar preso, retido, aprisionado no mesmo lugar. Penso que é medo. Medo de escrever. Ou medo de começar e não saber para onde, por onde. Medo de abandonar a segurança do tempo e do espaço anterior ao texto, ou então, muito provavelmente, terror de descobrir até onde as palavras me podem levar. Conto-te então a história, o início da história que há-de ser? Um jovem casal, Teresa e Alexandre, decidem um dia abandonar a sua agitada vida urbana, repleta de compromissos profissionais e sociais, e vir habitar uma casa de província, na orla de uma floresta. Buscam tranquilidade, tempo. Buscam talvez até algum estado primordial, no qual a existência humana se manifeste simplificada, liberta da violência do pensamento. Mas quem lhes disse que ali junto à floresta, longe da gente e da cidade, poderiam encontrar o que buscavam?

Termino já, não te aborreças, fugiu-se-me a carta do propósito inicial. Nem cheguei a perguntar como estás, que coisas contas da tua vida remota, quando planeias voltar a casa. Tu me contarás em resposta a isto, peço-te. Em todo o caso, ficas por mim informado que no passado dia 14 de Abril, o nosso amigo em comum agrediu a golpes de machada os três funcionários da empresa contratada para nesse dia abater a maior árvore do bairro, eliminando-a assim para sempre da nossa paisagem. Após a bárbara agressão, de que felizmente não resultaram mortos, ainda que dois dos indivíduos tenham sofrido ferimentos considerados graves nas costas e membros superiores, o nosso amigo abandonou o local na sua viatura, tendo andado fugido às autoridades durante três dias, precisamente até ontem de manhã, altura em que decidiu entregar-se. Diz-me minha mãe que será amanhã apresentado ao juiz.