A República do Silêncio, Jean-Paul Sartre

Depois da libertação da França no pós-Guerra, a 9 de setembro de 1944, Sartre escreve um manifesto sobre a liberdade num diário criado em 1941, Lettres françaises, que viria a ser um instrumento importante do Partido Comunista Francês. Sartre publicara o seu enorme e brilhante L’Être et le néant (O Ser e o Nada - Ensaio de Ontologia Fenomenológica) em 1943, no qual se confrontou, e nos confrontou, com a condição humana despida de qualquer comiseração humanista, uma descrição fria e precisa sobre a nossa condenação à liberdade (apesar das situações), a má-fé que usamos para evitarmos a responsabilidade insuportável que isso transporta, o inferno estar nos outros (com uma formulação diferente), o homem ser uma paixão inútil, uma dialética sem síntese entre o em si e o para si, uma autenticidade feita de fingimento… (podem ler o prefácio que escrevi para a segunda tradução em português, aqui).

Um ano depois, já não se trata de pensar a nossa condenação à liberdade (necessidade esvaziada de quase todo o valor, um amor fati sem o sobre-homem nietzschiano), mas de descobrir a liberdade mais pura onde julgávamos ser impossível encontrá-la, ou, no máximo, apanhar dela aí apenas alguns frágeis farrapos. Segue-se a minha tradução de «La République du Silence».

«Nunca fomos tão livres como durante a ocupação alemã. Tínhamos perdido todos os nossos direitos, em primeiro lugar o direito à palavra; éramos insultados na cara todos os dias e tínhamos de nos calar; éramos deportados em massa, como operários, como judeus, como prisioneiros políticos; por todo o lado, nas paredes, nos jornais, no ecrã, víamos a face imunda que os nossos opressores nos queriam dar de nós próprios: por causa de tudo isto, éramos livres. Como o veneno nazi se infiltrava até aos nossos pensamentos, cada pensamento justo era uma conquista; como uma polícia todo-poderosa procurava constranger-nos ao silêncio, cada palavra tornava-se tão preciosa como uma declaração de princípio; como éramos perseguidos, cada um dos nossos gestos tinha o peso de um compromisso [engagement].

As circunstâncias muitas vezes atrozes da nossa luta permitiram-nos finalmente viver, sem farol e sem vela, essa situação dilacerante, insuportável a que se chama condição humana. O exílio, o cativeiro, a morte sobretudo, que são habilmente mascarados nos momentos felizes, eram para nós os objetos perpétuos das nossas preocupações, aprendemos que não são acidentes evitáveis, nem mesmo ameaças constantes mas exteriores: tivemos de os ver como a nossa sorte, o nosso destino, a fonte profunda da nossa realidade de seres humanos; a cada segundo vivíamos na sua plenitude o significado desta pequena frase banal: «Todos os homens são mortais». E a escolha que cada um fazia de si era autêntica porque era feita na presença da morte, porque poderia sempre ter-se exprimido sob a forma: «Antes a morte do que...». E não falo aqui da elite que foram os verdadeiros resistentes, mas de todos os franceses que, a todas as horas do dia e da noite, durante quatro anos, disseram não. A própria crueldade do inimigo levou-nos aos limites da nossa condição ao constranger-nos a colocar a nós próprios as questões que evitamos em paz: todos aqueles de nós — e que francês não esteve uma vez ou outra neste caso? — que conheciam alguns pormenores interessantes sobre a Resistência, perguntavam-se angustiadamente: «Se me torturarem, resistirei?»

Assim, levantava-se a própria questão da liberdade e estávamos à beira do conhecimento mais profundo que o homem pode ter de si. Porque o segredo de um homem não é o seu complexo de Édipo ou de inferioridade, é o próprio limite da sua liberdade, o seu poder de resistir aos suplícios e à morte. Para aqueles que tiveram uma atividade clandestina, as circunstâncias da sua luta traziam uma experiência nova: não combatiam em pleno dia, como os soldados; perseguidos na solidão, presos na solidão, resistiram aos suplícios no abandono, na miséria mais completa: sozinhos e nus diante de carrascos bem barbeados, bem alimentados e bem vestidos, que gozavam com a sua carne miserável e cuja consciência satisfeita e poder social desmedido lhes davam toda a aparência de terem razão. No entanto, no fundo desta solidão, eram os outros, todos os outros, todos os camaradas da resistência que eles defendiam; bastava uma palavra para provocar dez, cem detenções. Esta responsabilidade total na solidão total não será o próprio desvelamento da nossa liberdade?

Esta negligência, esta solidão, este risco enorme era igual para todos, dirigentes e homens; para aqueles que levavam mensagens cujo conteúdo desconheciam, como para aqueles que decidiam sobre toda a Resistência, havia uma única pena: a prisão, a deportação, a morte. Não há exército no mundo no qual haja uma tal igualdade de riscos para o soldado e para o generalíssimo. E é por isso que a Resistência foi uma verdadeira democracia: para o soldado e para o chefe, o mesmo perigo, a mesma responsabilidade, a mesma liberdade absoluta na disciplina.

Assim, na sombra e no sangue, constitui-se a mais forte das Repúblicas. Cada um dos seus cidadãos sabia que devia isso a todos e que só podia contar consigo próprio; cada um deles cumpriu, na mais completa negligência, o seu papel histórico. Cada um deles comprometeu-se, contra os opressores, a ser ele próprio, irremediavelmente e, ao escolher-se a si próprio na sua liberdade, escolheu a liberdade de todos. Esta república sem instituições, sem exército, sem polícia, teve de ser conquistada e afirmada por cada francês em cada momento contra o nazismo.

Eis-nos agora à beira de outra república: podemos esperar que ela conserve, em plena luz do dia, as virtudes austeras da República do Silêncio e da Noite

Três poemas de Polaroide de Miguel Marques

Segunda

Desenlaço espelhos cobertos,
emudecidos sem mais, com um cantor esquecido
em gaiola opaca, sem alimento nem água,
em puro silêncio,
escutando o teu nome à solta.

Mas sou capaz de olhar um espelho
e dizer-lhe na cara: esse não sou eu,
refaz o teu ofício simples.

Baço, como nevoeiro, e o seu manto de veludo
arrastado bem cedo
pela manhã, lugar onde há quem plante estátuas
de crianças nuas a crescer lentas num jardim.

Até um rio nasce e cresce para morrer
num distante fim de linha.

O seu arbusto de água corrente quando,
desavindo, espanto-me com o delta desenhado.
Margens movediças o sobem, limitando
lençóis de água onde se lava roupa, junto ao
bordado dos açudes, e povoadas por mulheres
magníficas.

Chegam a parir pequenas estátuas de mármore
roxo
– afligem-se quando não berram,
não respiram –,
e, assim, vão plantando estátuas nuas
pela manhã iluminada.

Mais tarde, as estátuas imaginam as suas próprias
vestes esvoaçantes,
e a formiga trepa-as,
dos pés à cabeça,
o basalto emplumado repousa
nos seus ombros delicados,
lembrando pássaros.

Se a cabeça viaja, crava unhas nos cabelos
entrançados devagar,
nas vestes imaginadas a rasgarem-se
no sopro breve de cada
nova manhã.

O círculo de crianças numa brincadeira de menires
soberbos.

Quarta

Toda a casa é trancada pelo Sol abrasador
enquanto escondo,
na cabeça repleta,
minúsculas células de lanternas vivas a clarear-me
o pensamento.

Os meus mortos sentam-se comigo à mesa, as
chávenas mornas
nas suas mãos brancas.

Mãe, eu ainda tremo.

Não hesites assim tanto, minha mão, quando
escreves.

Escuto as memórias que pairam como
helicópteros ruidosos em
agonia ascendente.

Felizmente, tenho apenas uma boca, demasiadas
vozes me tomariam de assalto, em sobressalto,
enquanto pássaros de luto sobrevoariam
o telhado deserto.

Uma boca húmida
onde mantenho lascas de carvão
em brasa, caverna de vapor aquecido
sem chaminé erguida.

Digo que as lágrimas dos meus mortos são
estrelas nos seus rostos marmóreos,
e qualquer estrela
é uma lâmpada por apagar, esquecida
quando de vez se tranca
a casa vazia.

E não é que o exemplo dos mortos
conduz os vivos?

Basta ver quem lidera o pelotão de cada
funeral.

Décima sexta

Hasteada a bandeira de fumo branco
a drapejar na brisa, ténue,
como o fio vibrante da teia de uma
pequena aranha.

Ou cordões de água que desenham as alças
do teu vestido imaginado.

Ou ainda, lírico cabelo desatando linhas
compridas de versos, onde
as aranhas aprenderiam
a tocar harpa
se as suas presas, de tão assustadas,
não lhes desafinassem as teias.

Nas memórias visíveis
que são as polaroides, uma floresta
de mãos abertas
com as suas unhas pintadas de verde,
dedos nus que se entrelaçam profundamente.

Se a primeira árvore da floresta
lança raízes à estrada,
a última leva os ramos à cabeça
em desespero.

Uma moeda de ouro rola
pelo declive das copas
do arvoredo,
tenta encontrar a ranhura certa,
dando início a mais um jogo noturno.

E bem no centro da imagem
desbotada, de lábios vivos,
a mulher que fuma
num desassossego,
erguida a bandeira de fumo branco
que drapeja no hálito quente
do vento.

Arde que arde na bandeira furiosa.

O teu irmão no escuro

ele flutua
como preservado
num preparado de noite

o seu coração
projectado fora do peito
bate
bate
para nossa diversão
olha as artérias
que o ligam ao corpo
torcidas e enoveladas
dizia
ele bate no escuro
para nossa diversão
vês
sabes
eu acho
que o mundo precisa
de mais bondade
devíamos ser treinados
desde novos
na arte da bondade
não achas?

e depois bates no vidro
e acenas um adeus
ele não responde
o teu irmão no escuro

passas
à próxima peça
em exibição

Visões de troia

i

Naquele início de tarde ao cruzar
de barco a foz do sado não vimos
frente a troia o dorso dos golfinhos
Pensar que sempre neste e noutros
mares habitaram cadáveres de pessoas
e de cetáceos presos em cordames 

Rumo à praia há um cheiro a alfazema
a verão em maio a ideias liquefeitas
e a deuses visitando os corpos 

Com que artifícios os operários construíram
esta passadeira e com que restos de madeira?
De barcos lestos desembarcam na praia
homens musculados com armas contra o sol 

É longo o cerco dos dias o mês
encosta-se a uma nova estação 

ii

Nas metáforas de Homero não é certo
quem morre se a natureza se as pessoas
esquartejadas do verso para fora  

Arde rápido no olhar o mato seco
que empilha em dunas as areias
o fogo é extenso a vida sem duração
o dia inclina a cabeça à noite irrevogável 

À nossa frente das flores antes fechadas
saem borboletas e abelhas rumo à colmeia
na nascente púrpura do ocaso 

em troia paz e morte
coincidem passo a passo

CV 

Sou a antítese segura, o desejo secreto dos recorrentes, 

A espuma da raiva da manhã, a geada no canto da boca, 

O mistério da fé e do ridículo, o colo estéril da gula, 

O sonho dos mortos, o caudal esquecido da extinção,  

Contudo nas mãos vazias, mundos de ilusões, 

O cansaço emprestado dos avós, a pegada do copo vazio, 

Tu que julgas as graças dos anjos, condenas o inevitável sono, 

Que esperas das juntas pregas de visco e vício, 

Deixa-te cair em tentação, como num sono morno, 

Não esperes mais, o amanhecer será sempre mais uma volta. 

Turku 

28.01.2024