Neste mundo existe a arqueologia enquanto ciência e a guerra enquanto coisa supostamente justificável e depois existe tudo o resto que circula no meio. Eu estou no meio, confortavelmente na minha bolha de classe média burguesa, de quem de vez em quando acha que o mundo vai acabar porque determinado tipo de caneta comprada há muito tempo ficou sem tinta e agora não se sabe onde ir comprar modelo igual. Aqui há uns dias, por outro lado, um amigo fez-me ir ver o documentário 20 dias em Mariupol. A minha dificuldade em assistir ao filme começou na primeira cena em que aparece um ser vivo morto. Esse ser outrora vivo era um felpudo gato preto, por sinal bastante parecido com o meu, um buda opulento e hipersocial, gato de meia-idade algures no Oxfordshire. Há uma parte de mim que sente uma tristeza absurda ao contemplar este gato ucraniano morto, cuja vida foi injustamente interrompida. Não merecia morrer, não há razão nenhuma de estado neste planeta que valha a vida de um simples gato. É absolutamente monstruosa a imagem de um gato atingido por uma bomba. Todo o absurdo do mundo é para mim esta imagem deste pobre gato morto. O mundo tem muitas arqueologias e está cheio de coisas completamente injustificáveis porque são obscenas e a obscenidade não é necessariamente uma questão de pornografia. Quando uso a palavra obsceno, na verdade, frequentemente ocorre-me o uso perigoso que os gregos antigos tinham para ela: obsceno era aquilo que acontecia fora de cena na tragédia grega, por ser demasiado violento para ser representado em palco, mas talvez seja ingénuo e perigoso pensar que devemos desviar os olhos do mal ou pensar que não é igualmente obsceno saber que ele existe e fingir que não o estamos a ver. É assim que ele vai sobrevivendo. Aqui há umas semanas reli Os Grão-Capitães de Jorge de Sena. Em 1971, pouco menos de uma década depois de ter escrito estes contos, que ele achava que nunca iam ser publicados por causa da ditadura em Portugal, Sena escreveu-lhe um prefácio (o livro acabaria por ser publicado em 1976). Copio aqui um excerto.
Não há valores transcendentes que mereçam mais respeito do que qualquer vida humana; e se por acaso esses valores alguma vez existiram, estão hoje a tal ponto impregnados de falsidade baixamente humana (ou melhor, a tal pontos eles degradaram a dignidade humana), que são ainda piores do que inexistentes. Porque não é deles que a dignidade humana é feita, mas de muitos singelos e modestos valores imanentes: respeito e tolerância, honestidade e simpatia, horror do mesquinho e do medíocre, e outras destas coisas mais, como a consciência de que o mal só nasce e só existe de haver uma ideia de bem que, sendo imposta, martiriza e mutila o esplendor de existir-se. . . O mal não se perpetua senão no pretender-se que não existe, ou que, excessivo para a nossa delicadeza, há que deixá-lo num discreto limbo. É no silêncio e no calculado esquecimento dos delicados que o mal se apura e afina – tanto assim é que é tradicional o amor das tiranias pelo silêncio…
Por estes dias ando a traduzir um ensaio sobre o amor escrito por uma classicista na década de 80. Nesse texto, particularmente hedonista porque delirante em relação a textos do século V a.C. sobre a função social do amor, lê-se a dada altura que o modo como reagimos ao início de uma paixão, o modo como reagimos ao seu exacto princípio, como estamos ou não dispostos a ser mudados por esse momento, diz muito da qualidade, do decoro e da sabedoria das coisas que estão dentro de nós, se somos ou não capazes de aceitar viver segundo coisas que não controlamos, sem medo de um fim. Os contos de Jorge de Sena, escritos durante uma ditadura e sobre ela, estão cheios de corpos oprimidos e reprimidos, de gente que vive mutilada nas coisas que existem de mais privado. O mundo de Os Grão-Capitães divide-se entre oprimidos e opressores, e ficamos a saber que até uma infecção de ouvidos num regime totalitário é uma coisa potencialmente letal. Estes contos dizem mais ou menos abertamente que não há nada que viver sobre um regime totalitário não corrompa. As pessoas representadas neles são vítimas de todo o tipo de apagamento. É contra esse apagamento que agora releio esses textos. Prolongam o meu mau humor e o meu azedume, a minha indignação, ao pensar que ao contrário das populações que viveram na Europa na década de 30 nossa nem sequer é a desculpa de poder dizer que não sabemos quais os fetiches desta onda populista de pendor reaccionário, se não as consequências de lhe dar força.
Parei de ver o documentário 20 dias em Mariupol ao terceiro morto, um rapaz que estava a jogar futebol junto a uma escola com uns amigos. Não na cena onde se mostra os seus ténis Nike, exactamente o mesmo modelo que uso para correr quase todos os dias, ensanguentados, mas no ponto em que se vê o seu corpo tapado com um lençol branco e o pai, com uma idade já muito avançada, chora sobre ele repetindo incessantemente “meu filho, meu filho, meu filho.” Tenho-me sentado com gente que tem discursos a fazer sobre a guerra, que tenta justificar a sua obscenidade, que a debate academicamente, que tenta justificar a Rússia, condenar a Ucrânia, condenar a Rússia, justificar a Ucrânia, como se qualquer palavra que pudesse ser dita ou uma situação parecer fazer sentido pudesse justificar este nojo e este terror absolutos de ver um pai chorar sobre o corpo de um filho que não regressará nunca mais. Fui ver este filme porque há muitos meses que tenho medo de que o meu amigo, que vai com frequência a Kiev, por lá morra. Na verdade, tenho pesadelos com isso. O meu amigo não é um soldado nem um espião. É um estudioso de literatura russa e grega. É um tipo impaciente, a quem pareceu que seria compactuar com uma coisa que o horroriza não fazer nada perante o terror de ver o país de onde saiu a cultura que ele mais ama na vida ser de novo usada para justificar uma forma extrema de indignidade humana, de barbárie. Nas primeiras semanas que ele passou numa estação de comboio na Polónia o trabalho dele foi ajudar os refugiados ucranianos que ali iam chegando a tentar encontrar um sítio para onde ir na Europa ou a chegar onde já tivessem quem os acolhesse. Velhas com gatos e cães e netos, mulheres com filhos, mães horrorizadas de deixarem os filhos e os maridos para trás, raparigas jovens e sozinhas, e, até, num dado momento, o que o meu amigo nunca conseguiu entender se era alguém transsexual, um homem disfarçado de mulher a tentar fugir do alistamento obrigatório, ou apenas uma mulher extremamente masculina, a quem ele no entanto, diligentemente ajudou a carregar as malas. Entre viagens o meu amigo falou-me de como os discursos das pessoas que ele foi ajudando a escapar da guerra se foi alterando, como de repente, por exemplo, as mulheres com quem ele contactou nos primeiros meses conversavam com ele normalmente, não tinham qualquer receio de falar com ele ou entre elas e de como à medida que as semanas foram passado as pessoas que chegavam saltavam de terror ao ouvir uma porta bater ou, as mulheres, simplesmente tinham medo de ficar sozinhas com um homem desconhecido, falante fluente de russo, na mesma sala, de como essa consciência, ao meu amigo, lhe causa uma tristeza indizível e que tem nome, o reconhecimento de que a violação também serve como arma de guerra. Pergunta-me o meu amigo, que tipo de homem alguma vez faria isso a uma mulher e chamaria a isso o trabalho de um soldado? Falo-lhe de um poema de Álvaro de Campos sobre justamente isso, ele começa a falar do poeta que estudou na tese de doutoramento, Brodsky. Não temos emenda. Será justificável? Há algum tratado que possamos citar, algum pedaço de terra de que alguém se possa afirmar como justo dono que nos retire um pouco do nojo e do horror que sinto em relação a pertencer a uma espécie capaz de ser tão predatória e tão estúpida, quando o meu terror intercepta o do meu amigo, que quando está em Kiev diz à mãe que está na Polónia? O que é que me poderia possivelmente tirar a tristeza de viver num mundo onde a alegria da arqueologia e professores de grego antigo que escrevem tratados sobre o amor coexistem com gatos ucranianos mortos por obuses russos e pais que choram os filhos sem talvez nunca terem lido As Histórias de Heródoto, onde a dada altura é possível ler que a grande indignidade da guerra, o ponto em que sabemos que ela vai contra toda a natureza, é que em tempos de paz os filhos enterram os pais e nas guerras dá-se o horror inexplicável de os pais enterrarem os filhos.
A série mais vista no Reino Unido por estes dias é a muito digna e edificante narrativa de Tom Hanks Masters of the Air, que, não caindo numa glorificação acéfala dos heróis, glamoriza, quase por convenção do género, muito do que é o horror da destruição que representa, caindo na falácia de que a sobrevivência dos soldados no centro do enredo é alguma forma de força expressiva de um sentido de carácter e personalidade que talvez nunca emergisse sem esse horror. Isto em parte é consequência de ideia de que alguma espécie de mérito defende os heróis de morrer, entra nesse grande mito do nosso tempo, o da meritocracia e por aí do génio – duas coisas que sem dúvida não existem sem as comunidades e os seus contextos. Para que os heróis sobrevivam, no enredo de películas como a de Tom Hanks, é necessário que existam personagens que são secundárias, acessórias à sua caracterização. É aqui que a ficção não funciona de todo como a realidade e seria interessante questionar um pouco a história daquilo que é o conceito de personagem secundária, das suas representações mais e menos complexas nas ficções que usamos para entender o mundo em que vivemos. Ninguém, idealmente, é acessório no enredo da sua própria vida, é um pouco obsceno pensar na categoria de personagem dispensável para efeitos de caracterização de terceiros. Por outro lado, que o mérito é uma categoria ilusória em relação à sobrevivência é algo que fica completamente explícito num livro que se refere ao mesmo período histórico desta série, Se Isto é um Homem de Primo Levi. Não há fim para o absurdo do que Primo Levi tem a narrar e a total ausência de relação entre mérito e sobrevivência fica completamente explícita num dos primeiros episódios do livro, quando Levi conta que sobrevive a ser enviado para uma câmara de gás porque o oficial nazi encarregado de fazer a triagem entre os prisioneiros mais fortes e mais fracos sacrifica por um erro cometido num número um prisioneiro mais saudável do que ele e por isso mais capaz de trabalhar. A minha crítica aqui não é à série de Tom Hanks em si, que de resto tenho visto com interesse semelhante ao dos meus semicompatriotas ingleses, é ao facto de que, no seu lado de producto de entretenimento e consumo ela glamorizar o sofrimento humano, passar a mensagem de que algumas pessoas muito excepcionais são o modelo a ser seguido, que o mal não as destrói, não as corrompe, quase não toca a sua beleza e que isso basta para que tudo corra bem, para que ganhemos, quando numa guerra ninguém ganha nada.
O motivo pelo qual eu não consigo ver 20 dias em Mariupol não é por me querer manter desinformada, é porque há coisas que para mim têm de continuar a ser recebidas com a consciência do seu extremo horror e isso é porque preciso de me continuar a lembrar exactamente do que é o mal para o conseguir nomear, porque o pouco que me reste fazer talvez seja dizer que não quero que o sofrimento humano se torne para mim apenas televisão. E isso é para não ter a ilusão de que qualquer coisa neste planeta, qualquer ideologia de merda sobre fronteiras e bandeiras e posse de territórios e desrespeito por aquilo que Sena nomeia no seu prefácio como singelos e modestos valores imanentes, possa servir para dizer que alguém merece continuar vivo enquanto outros não.
Oxford, 16 de Março de 2024