Valor

Considero valor cada forma de vida, a neve, o morango, a mosca.
Considero valor o reino mineral, a assembleia das estrelas.
Considero valor o vinho enquanto dura a refeição, um sorriso involuntário, o cansaço
de quem não se poupou, dois velhos que se amam.
Considero valor aquilo que amanhã já não valerá nada e já hoje vale pouco.
Considero valor todas as feridas.
Considero valor poupar água, reparar um par de sapatos, calar a tempo, acudir a um grito, pedir permissão antes de sentar, experimentar gratidão sem recordar de quê.
Considero valor saber num quarto onde é o norte, qual é o nome do vento que está a secar a roupa.
Considero valor a viagem do vagabundo, a clausura da freira, a paciência do condenado, não importa qual a culpa.
Considero valor o uso do verbo amar e a hipótese de que exista um criador.
Muitos destes valores não os tenho conhecido.

 

Erri de Luca, Opera sull’ acqua e altre poesia, Einaudi, 2002.
Tradução de Tatiana Faia

Os educadores que nos libertam

Nietzsche leu, em profunda admiração e embriaguez filosófica, O Mundo Como Vontade e Como Representação de Schopenhauer em 1864

Deus morreu, os monoteísmos, foram-no envenenando até o tornarem ou anódino ou fanático (o excesso revela o desespero perante o féretro). Libertos da figura tutelar (iconográfica, bibliográfica e ritualógica), parecia que finalmente corríamos o grande, heroico risco de sermos livres, tornando-nos aquilo que somos. Depois, sem nos apercebermos, surgiram os influenciadores globais, exímios gestores do senso comum. Iniciou-se uma nova era de alienação, aliviando o stress aos mais ansiosos.

Conhecemos o «Como nos tornarmos aquilo que somos» (Wie man wird, was man ist) do subtítulo de Ecce Homo de Friedrich Nietzsche (1888). Mas todas a sua obra é pontuada por uma tensão para se ser o que se é, impondo-nos a responsabilidade pela nossa vida (só tornando-nos aquilo que somos confirmamos o seu valor). A vocação de cada um é, antes de mais, tornar-se aquilo que é, única forma de nos diferenciarmos da massa humana dos iguais, humanos, demasiado humanos. Pelas ações, como queria Píndaro (e os Gregos, para os quais o «cogito ergo sum» de Descartes seria quase incompreensível, viviam num mundo agonístico, no qual cada indivíduo corria o constante o risco de cair na desmesura, dele ou de outrem, humano ou divino, cada grego era mais um elemento do grandioso pathos trágico, feito de uma poiética do sofrimento), mais do que pela reflexão, mesmo reconhecendo a qualidade e a força da autoanálise crítica nietzschiana.

Tornarmo-nos aquilo que somos (werde, der du bist) parece ser um paralogismo, dedicado a manipular uma racionalidade exaurida de dispositivos críticos. Como podemos tornar-nos aquilo que já somos? Talvez Nietzsche queira renovar, noutros termos e noutra trama vital e filosófica, o «Eu sou aquele que (quem) sou» do Antigo Testamento. Manter a potência, talvez trágica, da autonomia individual (sou eu que me torno aquele que sou), acrescentando-lhe (o que é uma revolução ontológica) o processo, dentro do tempo, e da temporalidade, do eterno retorno, de me tornar, de me ir transformando, autotransformando, modelando um qualquer barro original, feito de genética, de social e de vontade.

Na terceira Consideração Intempestiva, Schopenhauer Educador (1874), consagrada à figura solitária do mestre filósofo, o seu mestre, Nietzsche defende, a partir de uma conceção da genialidade romântica, evitando o pessimismo niilista schopenhaueriano, isto é, um pessimismo insolúvel, que se os jovens querem ser livres devem saber o seguinte: «Um homem nunca se eleva tão alto como quando não sabe aonde o levará o caminho que escolheu» (citação de Ralph Waldo Emerson, que foi emulando ao longo da sua vida). E não sabe porque os impulsos que o levam a escolher vão sendo definidos, não por uma qualquer essência, alojada no centro do seu eu, que seria ou não possível reconhecer, mas pelas influências, tantas vezes paradoxais, dos mestres, dos educadores, como Schopenhauer. Mestres que devemos seguir, com certeza, mas também trair, com o mesmo grau de necessidade.

Eis o que Nietzsche diz nessa Intempestiva, cap. 1, depois de perguntar sobre como nos encontramos a nós mesmos («Aber wie finden wir uns selbst wieder?»): «O que é que realmente amaste até agora, que coisas te atraíram, o que é que te dominou e, ao mesmo tempo, o que é que te preencheu? Observa a série completa desses objetos venerados e talvez eles te revelem, pela sua natureza e sucessão, uma lei, a lei fundamental do teu verdadeiro eu (eigentlichen Selbst). Compara estes objetos, vê como eles se completam, se ampliam, se ultrapassam, se transfiguram, como formam uma escada pela qual subiste até ao teu eu. Porque a verdadeira essência não está escondida no teu íntimo, mas incomensuravelmente acima de ti ou, pelo menos, daquilo que tu consideras habitualmente o teu eu. Os teus verdadeiros educadores e formadores (Erzieher und Bildner), aqueles que te formarão, revelarão aquilo que é verdadeiramente o sentido original e a substância fundamental da tua essência, em todo o caso aquilo que é de difícil acesso, como um feixe atado e rígido: os teus educadores não podem ser outra coisa que não os teus libertadores (deine Erzieher vermögen nichts zu sein als deine Befreier).»

Incêndio

no mapa
as aldeias
em fogo

amarelo
campos de aveia
alimento dos cavalos

laranja
o que está em disputa

castanho
os caminhos possíveis
(desde que ainda
se tenha cavalos)

as horas passam
não arredam pé
da mesa
os amigos
absortos no jogo

quando ainda
se podia fumar no café
comprávamos
um maço a meias
e jogávamos toda a tarde
eu abria a partida
escrevendo alguns versos
numa folha em branco

agora
é a tua vez
o fogo alastra

Manhã e Noite, Jon Fosse, nota de leitura

Acabei de ler, chegando tarde, como quase sempre me acontece, sem nenhuma virtude especial, relativamente ao que entra em ebulição, Manhã e Noite, um romance do último prémio Nobel da Literatura, o norueguês Jon Fosse, editado pela Cavalo de Ferro, tradução de Manuel Alberto Vieira, com 111 páginas divididas em duas partes. Na primeira, curta, descreve, quase em direto, o nascimento de Johannes, filho do pescador Olaï e da sua mulher Marta, relato pontuado pelas observações, práticas e determinadas, da parteira, uma voz de quem sabe mais do que ajudar a dar à Luz. Johannes nasce no meio de uma frase, o pai ouve os sons do parto, pensa em Deus e no filho que se tornará pescador, como ele. Na segunda parte, o autor narra um dia no qual Johannes, já velho (um salto no tempo que vai sendo preenchido, mas não muito, ao longo do livro), reformado, depois de criar sete filhos e da mulher, Erna, haver morrido, encontra o seu amigo Peter (não se sabe imediatamente se está vivo ou morto), também pescador, na praia, embarcando com ele para pescar caranguejos. No regresso experimenta, entre outras coisas, um encontro espectral com a filha querida, Signe, que passa através dele sem o ver (é um livro sobre passagens). A história começa, pois, com um nascimento e termina com a morte, ou melhor, com o morrer.

Um livro com poucas, pouquíssimas peripécias, aposta antes num movimento fluido entre o mar e a terra, as recordações e a realidade tangível, o sonho e a vigília. O protagonista viaja entre a frugalidade do passado no limiar da pobreza mas com a casa cheia de vida e o conforto de reformado solitário, hoje. Todos os filhos foram bem-sucedidos, Signe mora perto e encontra-a muitas vezes. Johannes ainda pesca, por recriação, agora. Fuma e bebe café. Mas a casa não aquece, por mais lenha que queime. Através de uma escrita minimalista, quase um processo de criação automático, o narrador «descobre as coisas à medida que as escreve», compondo como fosse uma espécie de improvisação musical.

O estilo, marcado pela repetição, pela pontuação inesperada (aproximando-se, sem complexos, da oralidade, mas também de outra coisa que não isso, como se quisesse encontrar ritmos e significados mais arcaicos) e pela alternância de perspectivas (sem ser verdadeiramente polifónico), é perfeito para esta deambulação, lenta e resignada, entre a vida e a morte, com a qual ele diz aquilo que tem para dizer. A derradeira jornada de um impreparado ser para a morte, impressa numa prosa original e honesta. As paixões tristes dominam o romance, mas, contra Espinosa, elas trazem uma vitalidade tranquila (acrescentam ser), a que se pode chamar melancolia criadora, ou bela melancolia, fortalecendo os leitores. Este livro permite sentir as vibrações dos abismos da vida, essenciais para completar o ciclo, ou ciclos, da existência. Sem a intenção, todavia, de abalar, quando nos resgata da banalidade não o faz arrastando-nos para novos mundos, reorienta somente, de forma ligeiramente iconoclasta e através de uma arqueologia sobre o viver, a viagem interior que prosseguimos desde que nascemos. Não pegamos fogo ao lê-lo, é verdade. Mas é um bom mergulho, e podemos tomá-lo por si mesmo ou como um meio para pensarmos sobre o profundo sem a ditadura do fundamento.