Desaparecer aos poucos

Não sofras por quem desapareceu, afirmou o velho, suporto o peso dos funerais de toda a minha família e aqui ando. O rapaz ouvia de queixo encostado ao pescoço e com os olhos pregados ao chão. Sobrevivi, não por ser mais forte do que a dor, ninguém é mais forte do que a dor. Sobrevivi, prosseguiu o velho com um escarro lançado como um míssil contra a terra, por ter aceitado que nada poderia fazer para alterar o rumo dos acontecimentos. Não sei se isso é ser estóico. O velho gargalhou ao repetir a palavra estóico. Chorei muito, muito, não podes imaginar o que é enterrar um filho, nunca tiveste um filho, nunca te roubaram um filho com uma facada. Também não podes imaginar o que é ver o corpo morto da tua esposa, um corpo outrora belo estendido num caixão, uma face de princesa sugada pelo cancro. O velho encheu o copo, bebeu o bagaço num gole, encheu outra vez o copo e pousou-o na mesa antes de continuar. Cada dor é uma dor. A minha dor de dentes não é mais forte do que a tua enxaqueca, depende de pessoa para pessoa. Eu chorava no funeral do meu pai e o meu irmão distraía-se a contar anedotas aos familiares mais afastados, e se queres saber não acredito que o meu irmão gostasse menos do meu pai do que eu. O rapaz pegou no copo, bebeu o bagaço e tossiu, não estava acostumado à bebida. Bebeu mais e mais, até ganhar coragem para falar. A minha namorada deixou-me, disse, tímido, sentindo que os motivos que o tinham levado ao desespero não eram nada comparando com histórias como as do velho. Pensava que estava tudo bem até ao dia em que ela entrou em casa, despejou o armário para dentro de uma mala de viagem e partiu dizendo que se tinha fartado da minha infantilidade. Há quanto tempo foi isso?, perguntou o velho. Duas semanas, respondeu o rapaz. Imagina a tua vida daqui a dois anos, dentro de vinte e quatro meses não haverá memória do namoro entre x e y, é tudo vaidade, caminhamos para o pó, o esquecimento é o nosso destino, daqui a dois anos, quando estiveres com outra pessoa, rir-te-ás por teres sofrido por ninharias. O senhor ri-se daquilo que lhe aconteceu?, perguntou o rapaz. Claro, ripostou o velho, rio, bebo, danço e caminho, o importante é caminhar. Aceitar e continuar. Se te arrancar um olho, pensarás que nunca mais quererás viver. Doer-te-á muito. Achar-te-ás feio. Passado um tempo, continuarás a viver sem esse olho. Haverá até momentos em que não te lembrarás de que o perdeste. Lembra-te de que nada dói tanto quanto perder um olho e que, mesmo quando se pensa que essa dor nunca passará, quando se sente uma dor tão funda, mas tão funda, que só um tiro na mioleira parece salvífico, existem razões para estar vivo. Que razões são essas?, perguntou o rapaz. Estarmos aqui os dois com uma garrafa de bagaço, termos um cão em casa a precisar que o alimente, não termos perdido o desejo pelas mulheres, haver quem sofra mais do que nós, quem não tenha um pedaço de pão para comer. Se esquecermos a vaidade, suspirou o velho, se esquecermos quem somos, viver é mais fácil. Como se faz isso?, questionou o rapaz, ao mesmo tempo que tentava imitar o escarrar profissional do seu novo amigo.