Vou pegar na bicicleta e rodar tudo de novo até ser feliz


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Na casa desconhecida há um pátio com glicínias. Ouve-se o relógio da igreja. São os sinos, a brindar com o seu “cântico nos beirais”. Há uma cozinha com uma grande chaminé, umas escadas em pedra, e um piano, “sempre tocado a quatro mãos”, que guarda as impressões digitais para o futuro. Há uma sala onde se joga às cartas, “um rei, uma vitória, uma dama de espadas”. Alguém puxa de um trunfo, rendido na certeza de poder baralhar, de novo, o destino, e encontrá-lo, novamente, ao amanhecer. É a carta da “juventude”. A que vale mais e leva tudo à frente. Num dos quartos ouve-se Beethoven, quinta sinfonia, e noutro fala-se do Zeca, da Carla e da Maria. Há um livro onde “tudo se escreve”. Está guardado na cave, onde a casa “estende os seus braços e ergue-se em tourada numa possível lezíria onde os sismos recuam a medo”. Na casa grande da Granja, arde um fogo, “por motivos que o fogo não entende”, e noutra casa há uma capela onde há anos brotaram objectos que estavam enterrados, uma sala com um palco e portas tapadas, e talvez pessoas emparedadas.

Rui Pedro Gonçalves nasceu em 1973, na freguesia de Pontével, concelho do Cartaxo. Fez ali a escola primária. Depois foi estudar para o Cartaxo, para o Colégio Marcelino Mesquita, que já não existe. Fez a escola secundária ainda no concelho, e quando entrou na universidade, no curso de Geografia, na Faculdade de Letras, mudou-se para Lisboa. Viveu durante alguns anos na capital e depois voltou para o Cartaxo, para Pontével, para a terra da infância e para a casa de família, uma casa “muito grande e muito antiga, com muitos quartos, um espaço por onde já passaram várias gerações”.

O primeiro livro saiu em 2004, Uma Terra chamada Imaginário, com ilustrações de Inês Xavier. Foi publicado pela Câmara Municipal do Cartaxo, como recompensa por ter ganho o Prémio Literário Marcelino Mesquita, que distingue os melhores trabalhos inéditos nas modalidades de teatro, prosa e poesia, e que é atribuído pela Sociedade Portuguesa de Escritores e Artistas Médicos.

É nessa terra chamada imaginário que descobrimos que houve uma bicicleta: “nessa velha bicicleta / que ainda guardas no teu quarto de brinquedos / atravessámos o vento / ao som dos pedais da infância”, e que essa bicicleta, como vamos saber depois, foi muito importante: “Parece mentira / Mas foi um engano essa infância / de cerejas. / O pior de tudo / foi um furo no pneu / havia a minha bicicleta / e isso foi muito importante.”

Os pais tinham uma casa agrícola, que vinha do tempo dos avós de Rui. Produziam vinho e tinham uma exploração florestal. Quando a madeira tinha de ser cortada, de sete em sete anos a dos eucaliptos, e um bom par de anos no caso dos pinheiros, Rui ajudava os pais, assim como a irmã, mais nova, que também escreve. Foi criado com os avós paternos. O avô era produtor de vinho e tinha uma relojoaria. Tinham grandes propriedades de terra. Os avós maternos, com quem teve pouco contacto, também eram agricultores.  Hoje, já poucas pessoas vivem da terra. Em parte, é essa a “história de certas famílias do Ribatejo e de outros lugares do país.”

Começou a escrever poesia “mais a sério” depois dos vinte, “vinte e poucos anos”. Não se lembra do primeiro poema. Começou, e continuou, por incentivo dos amigos, que liam o que escrevia e gostavam. Estava na faculdade, no curso de Geografia, que afinal não era bem aquilo que ele queria. Então? “Uma profissão ligada à terra”. “A coisa que eu mais gosto é de trabalhar com a terra. Depois vem a poesia, em segunda, terceiro ou até em quarto lugar.” Antes passava as tarde de inverno no café, mas agora escreve sobretudo à noite. “Tenho uma visão prática do dia. Gosto de me levantar cedo, fazer o que tiver a fazer, e isto [a poesia] não é uma obrigação, é um prazer que vem depois das coisas obrigatórias”. Também não lê durante o dia. “Não consigo conceber estar dias inteiros a ler, para mim não faz sentido.” Então? Caminha e cuida das plantas, e trata das tarefas ligadas à casa. E nos anos em que consegue colocação, ensina Geografia.

Mas voltemos à bicicleta. Entre casas reais e imaginárias, esses “organismos que ardem por dentro”,  houve portanto uma bicicleta. “A bicicleta é para mim a coisa mais palpável e mais materializável que talvez exista na minha vida”. A bicicleta serviu para tudo, para fazer amizades, descobrir ruínas e terriolas, andar dentro de casa e fugir dos cães. E o poema, o tal que fala duma infância de cerejas e de um furo no pneu, continua: “O mesmo será dizer que andei por aí / A buzinar aos cães e aos velhos / E a fazer trim / Nos trilhos das formigas.

Houve, aliás, várias bicicletas. Verde, azul, verde, e agora uma de montanha, porque apesar de a bicicleta estar guardada naquele “lugar feliz da nossa cabeça, onde as memórias boas estão guardadas”, e onde as raparigas e os rapazes crescidos em desespero ainda vão dormir à cama da mãe, o poeta escreve: “Ainda tenho uma bicicleta obsessiva / no rebentar das ondas do mar / da minha solidão”. E noutro poema: “Vou pegar na bicicleta / E rodar tudo de novo / Até ser feliz”.

 Em 2006, Rui Pedro Gonçalves publicou o livro Noites na Granja (edição de autor). Na primeira página há uma citação de um livro de Gógol, o Noites na Granja ao Pé de Dikanka, que ajuda a explicar o título do seu livro. Diz assim: “Petró dormiu dois dias e duas noites seguidos. Ao terceiro dia acordou e pôs-se a olhar demoradamente para todos os cantos da sua casa, mas foi em vão que tentou lembrar-se de alguma coisa: a sua memória era como o bolso de um velho sovina, donde ninguém consegue tirar um tostão”. Uma epígrafe que, de resto, não podia ser mais enganadora. O que se segue é um exercício de memória, de recuperação, de regresso a casa, à infância e à bicicleta, ensaiado ao longo das páginas deste documento pessoal. Um bocado como o homem do cais que atira as coisas todas para o rio, sapatos, chapéus, livros, um frigorífico, um elefante, presos a uma corda, e depois, já em velho, volta para vir buscá-las e levá-las para aquele lugar feliz da cabeça. Os últimos versos de um dos poemas dizem assim: “À noite / Ainda de janela aberta à grande planície, / Ouvíamos os cânticos da terra e a sua transpiração mediterrânica. / Sem o sabermos, / Íamos fundando raízes no interior de nós / E, depois, adormecíamos na frescura do pinhal / E dormíamos muito, muito.”

Rui Pedro Gonçalves é também autor de Diques (2007) e Nitratos do Chile (2010), título que vem do painel de azulejos que ainda hoje se encontra em muitas localidades portuguesas, “Adubai com Nitrato do Chile”, o adubo natural que era usado na agricultura, e que o avô, segundo conta, provavelmente terá usado para enriquecer a terra. O título presta-lhe por isso homenagem.

Em 2009, participou num livro de textos e poemas publicado pela editora Averno, Merry Christmas, que reúne autores como Alberto Pimenta, Fernando Cabral Martins, Manuel de Freitas, Renata Correia Botelho, entre outros, e em 2012 participou em Ruindade, o livro dos poetas ‘Ruis’: Rui Caeiro, Rui Pires Cabral, Rui Pedro Gonçalves, Rui Miguel Ribeiro e Rui Azevedo Ribeiro. Tem também poemas publicados em alguns números da revista “Telhados de Vidro”, editada por Manuel de Freitas e Inês Dias.

Este ano publicou Um Rapaz à Procura da sua Idade, pela editora Do Lado Esquerdo. O livro abre como uma dedicatória a Bernado Sassetti: “Era uma vez um rapaz que gostava de tocar piano. Aprendeu a tocar, pois não conseguia ter gaivotas entre quatro paredes. Um certo dia, o piano ficou fechado e o rapaz foi ter com as gaivotas. Ainda foi a tempo de registar umas certas notas musicais, mas deixou-as consigo, por ser tarde nesse dia de Maio”. Rui não chegou a conhecer o pianista, mas admira a música dele. “Tem um bocado a ver com a bicicleta, com o movimento da bicicleta. É uma música circular, obsessiva, como se andasse sempre em círculo.” Como se quisesse rodar tudo de novo até ser feliz.