Desatenção

Não sei se me lembro bem, foi inesquecível. Tínhamos finalmente alcançado o lugar monumental e famoso, e tudo aconteceu deste modo, sensivelmente deste modo. O autocarro da excursão escolar percorrera em esforço as estradas sinuosas e fomos reparando que o guião da viagem, tão minucioso, incluindo mapas e umas quantas citações poéticas, servia de leque, óculo improvisado ou avião de brincadeira que aterrava no sítio subitamente tão concreto. Sintra, atravessada de luz entre arvoredos, abraçava viajantes afinal desprevenidos. Olhávamos com surpresa e o grupo desorganizava-se. Onde fixar a atenção?

Os responsáveis pela visita de estudo inquietam-se com o incumprimento do roteiro. Impunha-se seguir de imediato o percurso do capítulo VIII de Os Maias, expoente, sublinha o guião, da arte realista; subtítulo, como é sabido, “Episódios da vida romântica”. Mas alguns alunos lambiam enormes gelados, outros ficavam a ouvir música no passeio oposto, voltados para uma parede vazia. Os olhos piscavam, encandeados, porque a praça onde estacionáramos entontecia de demasiada luz. O centro do lugar, onde quer que isso fosse, irradiava em labirintos ofuscados. Estavam desatentos! Sintra refulgia de espaço, como assinalava de novo o guião, mas as sombras eram também fortes e criavam áreas onde a humidade se tornava espessa e os vultos quase invisíveis. Estaríamos todos? Sorviam enormes gelados, mostravam-se imensamente desatentos e olhavam para tudo.

Numa praça, como se nos pudesse salvar, reparamos então nesta fonte. Apenas uma alegoria: castelo com torreão, encimado por uma esfera armilar, o conjunto suportado por um círculo de cabeças de peixes com os olhos vazados. São talvez cabeças de peixes. Olhamos com atenção até doerem as pálpebras tensas e as imagens se desfocarem. Liberta-nos, enfim, o movimento da água que jorra. Frescura, são limos profundos os arvoredos das muralhas rentes ao fogo do ar, animam-se os jogos de nuvens deste verão. Alguém passou por trás, tocou ao de leve, um perfume na brisa.

Os dedos seguem as linhas do mapa, contornam as manchas que representam os palácios. Estão ligados por sinuosos carreiros, mas as curvas, aprendêmo-lo na ascensão, transformam-se com o avançar das plantas para a estrada. A mudança da cor das folhas também aproxima ou afasta os paredões florestais, enleiam-nos constantemente os passos, fazem-nos tropeçar nas raízes poderosas.

Chegamos à Pena e os alunos dispersam-se pelo Palácio. Com o guião acenam de um pátio para a torre no outro extremo, onde, só por momentos, se encontram alguns colegas, logo a seguir ainda visíveis no fundo de uma escadaria esconsa. Poderá tornar-se perigosa uma tão inocente visita de estudo? "Por favor, controlem os vossos alunos", sugere a funcionária defendida pelo balcão, "quantos são eles afinal?". Acenam com o guião, nunca aparecem no mesmo sítio, à mesma luz, para mais vai-‑se formando no cimo da serra alguma névoa que desce.

D. Fernando de Saxe-Coburgo Gotha arrastou por décadas a fio,  quase de propósito, segundo se diz, até ao próprio ano da sua morte, as obras do edifício amado. Desdobrou projectos e projectos de postigos, escadas encaracoladas e pórticos, decorações de inusitada fauna e flora, ameias, súbitas sacadas sobre o abismo, obscuras alegorias, gárgulas, coruchéus, pátios que se abrem sobre pátios ou inesperadas paredes após uma curva, minaretes, desvãos, degraus que iludem o movimento, jardins interiores- esplanadas onde se possa surpreender uma mulher de costas, lendo uma e outra página, com os auscultadores nos ouvidos, acariciando distraidamente as pontas dos cabelos negros, revelando o brilho sombrio do olhar, se se mexe um pouco, a aconchegar a gola do casaco grosso na friagem do nevoeiro que nos cerca. O erudito monarca ia, pois, assistindo ao panorama, que sempre o surpreendia, dos novos quartos e mirantes. Nos últimos tempos, contemplava esses quadros de bruma e ramagens sobressaltadas enquanto chegavam, de uma divisão dos fundos, as serpentinas exóticas do canto da recém Condessa D'Edla, cantora de ópera com quem decidira inesperadamente casar em segundas núpcias. Dias e dias, de sala em sala, limitava-se a contemplar os mais extensos rasgões de névoa. O guião confirma: nessa época empenhou-se com particular fervor no projecto do parque florestal envolvente, entretendo-‑se a delinear, com rigoroso pormenor, a incontrolável proliferação dos druídicos bosques cenográficos. Apoiava as mãos nos muros das varandas, que todos os dias ganhavam o aspecto de idênticas mas sempre diferentes aguarelas de líquenes e musgos. E então, podemos imaginar, soletrava com intensa desatenção as exactas palavras do poeta inglês: There is a pleasure in the pathless woods / there is a rapture on the lonely shore (...).

Regressamos à vila após o almoço. Alguns alunos perdem-se, vão chegando aos poucos ao local de encontro pré-determinado, vieram por caminhos diferentes, não ouvem metade das explicações sobre o Lugar e o Romance. Para mais, as palavras parecem às vezes ligeiramente confundidas por um curso musical insinuado. Será possível, alguém ouve, num telemóvel, Bach, Variações Goldberg? Um vestido enfuna ao vento imperceptivelmente, o cabelo colado ao rosto tem múltiplos reflexos acobreados. Com o livro e o cicerone contratado à Biblioteca Municipal, este último de casaco de ganga mas o ar blasé de Carlos da Maia, percorremos as ruas estreitas, os muros com inexplicáveis caligrafias de hera e caliça, palacetes enormes deixando entrever o seu mundo fechado. Olhamo-los sempre de baixo para cima através de gradeamentos sumptuosos. Quando paramos nas fontes para beber uma água muito fria, alastra no fio do pensamento uma espécie de branco incandescente.

Lemos passagens do livro à medida que caminhamos, mas o vento desfolha-nos as páginas vegetais, altera-nos o capítulo VIII, depositam-se as partículas de pólen que vêm das quintas, os grãos de ferrugem das varandas dos chalés, construídas expressamente para observação da instabilidade das vistas. A intriga enreda-se, afasta-se num fumo muito delgado, como os riscos da gravura inglesa que representa Sintra. Vimo-la há pouco na montra de um antiquário, um pequeno grupo excursionista entre árvores, perdido nas enormes dimensões da paisagem.

O mapa está puído mesmo no centro da palavra "Seteais" e por isso, mal avaliada a distância, chegamos mais depressa do que esperávamos. No vão do arco, como dentro de uma pesada moldura de pedra, brilhava, á luz rica da tarde, um quadro maravilhoso, de uma composição quasi phantastica... - recita de cor o cicerone, com um ar inspirado. As alunas adoram-no, bebem-lhe as palavras, lembra os modelos que conhecem das páginas das revistas cor-de-rosa com que assinalam os trechos do romance obrigatório. O pressentimento dos passos antigos sugere o local onde devemos inclinar os nossos olhos que, não obstante, descobrem sobretudo as novidades do momento actual- penso, distraindo-me da paisagem que já, aliás, me distraíra do livro, o qual, por sua vez, com o peso das palavras, me causara uma impressão tão forte que me obrigara muitas vezes a fechá-lo, marcando a página com o dedo.

Todos vagueiam agora pelas esplanadas. Encosto, dir-se-ia que sem querer, ao coração, sim, a esse músculo, o grosso volume queirosiano. Atravessam-no manchas de sol e sombra, e é então que tu, definitivamente, avanças para este enredo com dedicatória, uma súbita vibração na lisura do papel, o livro, enfim, apoiado no rebordo da mesa, junto à fonte. És tu que passas transformando o padrão de luzes da praça. A história compreende-se melhor quando se levantam, desatentamente, os olhos da página: e era já delicioso o pensar n'ella assim por aquella estrada fóra, penetrar, com essa doçura no coração, sob as bellas arvores de Cintra... Depois, era possivel que d'ahi a pouco, na velha Lawrence, elle a cruzasse de repente no corredor, roçasse talvez o seu vestido, ouvisse talvez a sua voz. Tu pousas o copo borbulhante junto ao livro, tens afinal umas calças justas às pintinhas, o cabelo claro, fechas por instantes, num efeito teatral, os teus olhos azuis, respiras profundamente.

Estávamos fatigados de imagens e ascensões, dos poetas ingleses em êxtase e das personagens antigas que abriam o caminho à nossa frente. Alguém lembrou que faltava comprar as queijadas, viéramos a Sintra comprar queijadas de que afinal nos esquecíamos. Os alunos mantinham os guiões que sobraram bem dobrados no bolso; aliás, a bem da verdade, é preciso acrescentar que alguns desses papéis ficariam pelo chão, mensagens enigmáticas para uma próxima excursão escolar.

O grupo reunia-se com dificuldade, preparando a partida. Estávamos junto à fonte e já atrasados. "Gosto de Sintra", disse eu a despropósito. Concordavas em absoluto, mas acrescentaste que preferias chamar-te Ana, por exemplo; notámos com inteligência a simetria, uma palavra que poderia ser lida de várias maneiras e até de trás para a frente. Sim, ouvias Bach, as tais variações, era um pouco previsível num enredo assim, mas o que fazer do acaso que se mostra demasiado verosímil? Tratava-se, de qualquer forma, das esperadas variações, tanta invenção do mundo para que alguém, diz a lenda, afinal adormecesse. Nesse preciso momento percebi que me apaixonara por ti, é assim que se diz?, perdidamente por ti. Mostraste a tua edição do livro, examinei-a atentamente: Porto, Livraria Chardron, de Lello & Irmão Editores, Rua das Carmelitas, 144. É um belo exemplar, terceira edição em dois tomos, este é o primeiro, rubricado esmeradamente pelo primitivo dono, no princípio do século, dois ou três acordos ortográficos atrás. Folheavas o romance com os teus dedos longos e aéreos: "Repara, tem dois sétimos capítulos, a páginas 281 e 329, é um lapso tipográfico, de maneira que é como se o célebre capítulo VIII não existisse aqui, é outro, apesar de o termos lido e ensinado assim, com a maior das dedicações".

Fechaste o livro. O teu nome. Mal tive tempo de o dizer no lugar que deixávamos, suspenso na sua gravura de terra, ar, fogo e água.

Repito: não sei se me lembro bem.


Nota: ao longo do texto citam-se em itálico passagens do poema de Lord Byron  Childe Harold's Pilgrimage, aludindo a Sintra, e do capítulo VIII de Os Maias de Eça de Queirós, na exacta edição referida.