«trago sempre comigo»

1. 

trago sempre comigo  
umas feridas a arranhar
no bolso do casaco. 
hoje pus o batom vermelho
que deixa as mãos ensanguentadas, 
enquanto isso
a minha gata encosta-se
cada vez mais silenciosa
aos móveis da casa
sabendo que os tumores a comem
por dentro e eu por fora
tão bonita numa segunda-feira
logo de manhã, a fingir
que não vi o sangue dela
na almofada, que o inverno já passou: 
e tudo o que queria
seria poder morrer
ainda mais nova que a ana cristina césar
para que só as fotos belas ficassem
e nenhuma
das minhas feridas
curasse a tempo
de te rever. 

2. 

primeiro: o coração. 
se calhar dois (um
para quando se morre
outro para a espera do
milagre) 
e o teu sorriso icónico
já perto de desaparecer: 
há coisas que só depois  
percebemos que devíamos  
ter roubado –  
e mais tarde o que me  
fica nas mãos, 
demasiado íntimo
para carregar comigo
enquanto faço as rotinas
na loja do costume e
perguntam
como vai? e sei por
dentro que o teu sexo me ficou
no cheiro, 
por isso sorrio e
genuinamente
respondo que
muito bem, cá se vai
andando
e sorrio de novo
no meu corpo o teu rasto
o arrepio de só há pouco  
teres saído: 
volta, estou tão perto. 
(se todas as noites me
visitasses seria tão fácil  
morrer), 
enquanto por dentro
falo
calada
a dizer tanto
e o corpo, o corpo e o sorriso
que não voltei a ver, 
o sexo
a namorada que guardas na gaveta
lá de casa quando apareço: mas primeiro sorrio
primeiro faço as compras da loja
do costume sorrio de novo
os morangos estão fora de época
o teu sexo numa estufa
as laranjas enormes,  
com uma cor de encher
os olhos, mas primeiro, 
o coração.  
primeiro: o coração. 

 

3.  

“sending my condolences to fear” 


caro benjamin, 
como disseste
que não é preciso ter medo
aqui estou eu
podre de coragem
a amarelecer como os juncos
num pântano de asco, 
a lavar o vestido à mão
porque é essa a forma
antiga de recordar os homens
esquecendo-os, olhando assim
muito tempo
para as manchas de sémen, 
olhando tempo suficiente
para que se aprenda a gostar
delas como retratos despretensiosos
do mundo, assim
muito tempo
até que se tornem
possivelmente resultado
de outro tipo de acidentes
como iogurte ou creme nívea, benjamin
estou tão sem medo
que não sei se existo
ainda. 

 

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