Sete poemas de Daniel Ferreira

Condenados pelo Arco-Íris

Jean-Nicolas Arthur Rimbaud

Já dizia aquele rapaz, o do negócio de armas.
Enquanto eu sorria sem contar até três
talvez dos tomates do meu bisavô.
Vivemos condenados pela cor (pelo pote escondido
atrás das cores) pela semântica corrosiva
que nos aplaina teimosa o corpo.
E esta inocência, esta falsa liberdade
na procura de expiações maiores;
estes bodes gigantes controlados por andas.



Economia de Mercado

Desde cedo percebi
que essa coisa de não riscar
os livros, como nos ensinam
na escola, é preocupação
primordial de alfarrabista.

Sempre que passo num
ou é para comprar – mesmo
riscado – ou é porque tenho livros
com potencial para o desprezo.

Nunca vendo aqueles
que sublinho – e não é puro acaso.
Prefiro deturpar
tudo aquilo que aprendi.


Café Varandas

Fizesse sol na tarde e nada disto faria
sentido. Duas aprendizes guitarras
e cartas. A televisão acesa a perceber –
pois também tem direito – o que é isso
afinal a que chamamos solidão.
As vozes, confundidas, a raiar sob um tecto
de fumo e outro de verosimilhança.

Por momentos, a vida faz todo
e mais algum sentido.

Olho de relanço para o ecrã enquanto espero.


Metafísica do Sonho

Nascer num berço de ouro.
Querer, depressa e cinicamente,
atingir a perfeição pela indiferença.
Esquecer, de uma vez
por todas, os meus admiráveis dissemelhantes.

Com gosto e requinte
afinar a voz,
limar as unhas e pintá-las,
comprar uns óculos
para melhor ignorar as distopias.

Listagem de uma vida
que morreu
possível logo à nascença.
A questão é essa.

Nunca me derrotando
a tristeza por saber
que não me falta nada.

Eles já sabem que o sonho.


Fonte da rija

ao Pata Descalça

Atravessavas o bairro descalço
enquanto o teu irmão, iludido pela promessa
de um circo espanhol,
fugia já pela fronteira. Nos pés –
calejados – a certeza de que nunca,
nem mesmo no natal, os calçarias.
Achavas, na pequena altura, que os pés
para cheirarem mal
precisariam de uma prisão de cordões
semelhante às grades da fábrica do tio
de A., filho do PJ do qual a tua
avó (com pó de talco suspeito
nos sovacos) fugia a sete olhos.

Não éramos de todo inocentes,
sabíamos que a água da Fonte da Rija
era imprópria para consumo
e no entanto aqui prosseguimos:
longe do bairro onde dois
laços se perderam a partir
do momento em que decidiste
calçar, pela primeira vez, um par
de sapatilhas de corrida.


O Teu Lugar no Mundo

para Lawrence: para não pensares que é para ti

 

Quando te entendi pela primeira
vez, como uma aparição terrena
manifesto-espelho
do quão reveladora é a realidade.
Quando percebi que de ti
uma força evidente me puxava
e agitava, fazendo-me tremer
como um berbere no pólo norte despido
a atravessar o céu
poeirento da noite, maravilhado
de galáxias pressentidas.
Quando neste momento
em que me escrevo, sei de ti
o teu lugar no mundo, a tua bondade
árvore de frutos
composto sobre a raiz do problema.
Quando sozinho sinto
e reconheço, o olhar fremente
um peso, no lugar da maçã de Adão,
um vazio por ocupar. Quando
me escorre música pelos ouvidos
e desço a cidade até à longitude dos
areais, cantando-me outros
a ti, a maresia em sal crescente.
Quando o mar me subir então
até à cintura; pouco depois
até ao pescoço; até ao bailado
dos meus cabelos; hei-de viver
abraçado a um polvo.
Faço também o pino e sei que nunca
é demasiado tarde: espero
humilde ajudar-te a salvar o mundo.


Gaivotas

Passam estúpidas
como o tempo, gritam sôfregas
como crianças. E violentam, muitas, o céu
e o final de tarde nesta cidade.
Migração suburbana,
só lhe posso chamar isso.

Da fome, que nem todos
compreendemos, crescem outros tipos
de sobrevivência.

Voltam da lixeira
municipal, e amanhã
é outro dia.
Até que a morte me separe.