Quatro poemas de Ismael Ramos

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Tradução de Daniel Ferreira


 

EM CADA UNIDADE FAMILIAR HÁ UM CARPINTEIRO, FABRICA CAIXÕES

 

O pai fabrica a sua própria morte. Esmera-se na figura. Cuida a forma dos dedos. Os signos do desfalecimento.
Estou a pensar no que me ensinou o meu pai. Lembro-me: não quis aprender nada.
O que não queria dizer é: terei sempre dezassete anos.
O pai constrói os órgãos do filho à sua semelhança. Confia na piedade.
O pai constrói-se dentro do filho. Em madeira. Depois arde.

 

de Lumes (2017)

 

EN CADA UNIDADE FAMILIAR HAI UN CARPINTEIRO, FABRICA ATAÚDES

 

O pai fabrica a súa propia morte. Afánase na figura. Coida a forma dos dedos. Os signos do desfalecemento.
Estou pensando no que me ensinou meu pai. Estou recordando: non quixen aprender nada.
O que non quería dicir é: terei sempre dezasete anos.
O pai constrúe os órganos do fillo á súa semellanza. Confíase á piedade.
O pai constrúese dentro do fillo. En madeira. Despois arde.

 

de Lumes (2017)  

 

 

EOS

 

Às nove da manhã entra a minha mãe num café ao pé da estrada, coxeando, atrás da minha irmã. Tomam o pequeno-almoço em silêncio. No balcão, eventualmente, alguém toma café e está atrasado para abrir o seu negócio. Provavelmente homens que dormiram umas quantas horas e nada mais. De vez em quando cruzam olhares e trocam dois dedos de conversa. A mãe lê o jornal e a minha irmã tira fotografias de tudo com o telemóvel.

Tomam o pequeno-almoço sentadas numa mesa ao fundo. Os donos do café conhecem-nas ainda que não saibam os seus nomes. A mulher por trás do balcão sorri e a minha mãe devolve-lhe o sorriso.

Depois, a minha irmã tem duas horas de inglês, ortografia e matemática. Isto quatro dias por semana. A minha mãe passeia pelas traseiras dos edifícios, duas horas, quatro dias por semana. Às vezes cansa-se e arrasta o pé direito.

À saída voltam ao café ou sentam-se contra alguma parede perto da estrada. O meu pai vai buscá-las na volta do trabalho.

É duro, mas tem de ser. 

 

de Lumes (2017)

EOS

 

Ás nove da mañá entra miña nai nun bar ao pé da estrada, coxean- do, detrás miña irmá. Almorzan en silencio. Poida que haxa na barra alguén que toma café e chega tarde a abrir o seu negocio. Probablemente homes que durmiron unhas poucas horas nada máis. De cando en vez míranse e fan algún comentario a unha da outra. Mamá le o xornal e miña irmá saca fotos de todo co móbil.

Almorzan sentadas nunha mesa do fondo. Os donos do bar coñécenas aínda que non saiban os seus nomes. A muller detrás da barra sorrí e miña nai devolve o sorriso.
Despois, miña irmá dúas horas de inglés, ortografía e matemáticas. Así catro días na semana. Miña nai pasea por detrás dos edificios, dúas horas, catro días na semana. Ás veces cansa e arrastra o pé dereito.

Á saída volven polo bar ou sentan contra algunha parede preto da estrada. Meu pai recólleas á volta do traballo.
É duro, pero ten que ser.

 

de Lumes (2017)

RETRATO DA MINHA MÃE COM UM PÊSSEGO

 

I

 

A minha mãe esfrega um pêssego pela coxa. Há um rasto de cor. Não porque a carne seja branca, mas porque a fruta apodrece.
A minha irmã escreve sobre como as mulheres romanas se maquilhavam usando fruta podre. Diz que é incrível. O que quer dizer é que lhe dá nojo.

 

II

 

A minha mãe arrasta um pêssego pela coxa. Sentada, não há direção.
O gesto não tem função alguma. Por isso é o gesto do poema. Só mancha, cheira, põe em relevo a nudez de tudo o resto.
Eu observo apoiado na porta.

 

III

 

Uma pele roça outra pele. Faz-se ferida, mancha. Desliza antes de chegar ao caroço. Desfaz-se.
E não há voo nem ferida.
Se eu olho, o gesto é quotidiano. Também o poema. O pêssego tem o tamanho do punho da minha mãe.

 

de Lumes (2017)

 

RETRATO DE MIÑA NAI CUN PEXEGO

 

I

 

Miña nai refrega un pexego pola coxa. Hai un rastro de cor. Non porque a carne sexa branca, mais porque podrece a froita.
Miña irmá escribe sobre como as mulleres romanas se maquillaban empregando froita podre. Di que é incrible. O que quere dicir é que lle dá asco.

 

II

 

Miña nai arrastra un pexego pola coxa. Sentada, non hai dirección. O xesto non ten función ningunha. Por iso é o xesto do poema. Só mancha, recende, pon de relevo a nudez de todo o demais.
Eu miro apoiado no marco da porta.

 

III

 

Unha pel roza outra pel. Rompe, mancha. Esvara antes de chegar á semente. Desfaise.
E non hai voo nin ferida.
Se eu miro, o xesto é cotián. Tamén o poema. O pexego ten o tamaño do puño de miña nai.

 

de Lumes (2017)

 

AGOSTO

 

Há barcos e pavilhões em chamas na cabeça da minha mãe. O sol nos recantos da videira.
Um punhado de farpas. Dedos.

 

*

 

Descrevi-o como a queda de uma nadadora. Os pés dobrados sobre a borda da piscina. Mas é mentira.É antes um corpo com varizes, nada parecido a um escorço ou algo redondo. Nada parecido a uma árvore. Tem a ver com a cabeça que bate contra uma pedra. Outra vez. Tem a ver com rezar, jamais com a natação.

 

*

 

Há pássaros a cantar na cabeça da minha mãe. E isso parecia-me belo. Mas os pássaros magoam com o bico, mordem, vomitam. Gotículas de sangue como olhos negros, diminutos.
O pássaro é circunstancial, como a ferida. Mas não cura.
O pássaro jamais se cura e cresce.

 

*

 

É sempre difícil descrever uma queda. Eu vestir-me-ia como o meu pai se tivesse que cair. E estaria calor, porque as coisas caem se estão maduras, se pesam.
Cair, bater, não sangrar.
Debaixo da árvore os homens aguardam a queda da maçã. Ela decidiu apodrecer pendurada.
Não teve escolha.

 

*

 

Eu trouxe toalhas, a minha irmã trouxe toalhas. Mas não havia sangue.
Vestir-me-ia como o meu pai, que apoiou a cabeça da minha mãe sobre o seu joelho e sustentou o que parecia impossível sustentar. Eu chamei-o de ninho de pressões, ainda que ali não nascesse nada.

 

*

 

Talvez foi compreender a cascata. O seu jeito contínuo de quebrar.

 

*

 

Não há fotos porque não se celebra, ainda que se conte.
Se houvesse fotos apareceria uma mulher atrás de uma cadeira com uma máscara de papel castanho. Sem olhos nem boca. E continuaria a ser um rosto.
Se houvesse fotos estaríamos todos juntos na praia. Eu levaria toalhas, a minha irmã levaria toalhas. Duas crianças ao fundo. O meu pai estaria perto da água. Os três vestidos com roupa do dia a dia. Enquanto isso, a minha mãe apanharia sol encostada ao joelho do meu pai, em fato de banho. A luz acariciando-lhe a cara. As folhas da videira que se movem sem deixar cicatriz.

 

de Lumes (2017)

 

AGOSTO

 

Hai barcos e pavillóns en chamas na cabeza de miña nai. O sol nas físgoas da parra.
Unha presada de achas. Dedos.

 

*

 

Describino como a caída dunha nadadora. As dedas dobradas sobre o bordo da piscina. Pero é mentira.
É máis ben un corpo con varices, nada parecido a un escorzo ou algo redondo. Nada parecido a unha árbore. Ten que ver coa cabeza que bate contra unha pedra. Outra vez. Ten que ver con rezar, nunca coa natación.

 

*

 

Hai paxaros cantando na cabeza de miña nai. E iso parecíame fermoso. Pero os paxaros danan co bico, morden, vomitan. Pinguiñas de sangue coma ollos negros, diminutos.
O paxaro é circunstancial, como a ferida. Mais non cura.
O paxaro non cura nunca e medra.

 

*

 

Sempre é difícil describir unha caída. Eu vestiríame coma meu pai se tivese que caer. E faría calor, porque as cousas caen se maduran. Se pesan.
Caer, golpear, non sangrar.
Baixo a árbore os homes agardan a caída da mazá. Ela decidiu podrecer pendurada.
Non tivo elección.

 

*

 

Eu trouxen toallas, miña irmá trouxo toallas. Pero non había sangue.
Vestiríame coma meu pai, que apoiou a cabeza de miña nai sobre o xeonllo e sostivo o que parecía imposible soster. Eu chameino niño de presións, aínda que alí non nacese nada.

 

*

 

Se cadra foi comprender a fervenza. O seu xeito continuo de romper.

 

*

 

Non hai fotos porque non se celebra aínda que se conte.
Se houbese fotos aparecería unha muller detrás dunha cadeira cunha carauta de papel marrón. Sen ollos nin boca. E seguiría sendo un rostro.
Se houbese fotos estariamos todos xuntos na praia. Eu levaría toallas, miña irmá levaría toallas. Dous nenos ao fondo. Meu pai estaría preto da auga. Os tres vestidos de diario. Mentres, miña nai tomaría o sol recostada sobre o xeonllo de meu pai, en traxe de baño. A luz acariñándolle a cara. As follas da parra que abanean sen deixar cicatriz.

 

de Lumes (2017)



NOTA SOBRE O AUTOR

 

Ismael Ramos (Mazaricos, Galiza, 1994) publicou os livros Os fillos da fame (Prémio Johan Carballeira, Xerais, 2016) e Lumes (Apiario, 2017), mais tarde, traduzido para castelhano como Fuegos (La Bella Varsovia, 2019) pelo poeta. Este ano, 2020, Fuegos foi galardoado com o Prémio Javier Morote, concedido pelas livrarias independentes espanholas, na categoria de melhor livro publicado por um jovem autor em 2019. A sua obra integra volumes coletivos como No seu despregar (Apiario, 2016), 13: Antoloxía da poesía galega próxima (Chan da Pólvora e papeles mínimos, 2017), Poetízate: Antoloxía da poesia galega (Xerais, 2018) ou Piel fina: Joven poesia española (Ediciones Maremagnum, 2019). Foi ainda publicado em revistas como A Bacana, Clarín, Dorna, Grial, Luzes, Oculta Lit, PlayGround ou tr3sreinos. Teve poemas seus traduzidos para alemão, castelhano, finlandês, francês, húngaro, inglês e português. Na World Wide Web escreve no blogue O Triste Stephen (otristestephen.tumblr.com).

OS POETAS CANTAM A EPOPEIA DO UNIVERSO À ESCALA DE  UMA ELEVAÇÃO DE 461 A 477 M/S DA SUA VELOCIDADE MÉDIA 

Durante séculos
o Homem mal teve tempo de
nascer, conhecer os filhos e desaparecer, contemplando um Uni- 
verso que para ele permaneceu imóvel. 
Ao ritmo deste  
filme, sucedem-se em cada segundo, 10 000 gerações. 
Sim: porque deste filme
prodigioso o Homem só viu a derradeira imagem. 
E como as leis dos choques impõem uma uniformização das
causas estranhas à sua existência quotidiana
a vida é um relâmpago.  

A partir do corte e cola de O Romance da Matéria. O estudo da evolução do universo (trad. Ramiro da Fonseca, Livros do Brasil, 1970), de Albert Ducrocq. 

 

Caderno 5

Caderno 5

os pastéis de nata ali não valem uma beata [antologia de 2017]

Enfermaria 6, Lisboa, maio de 2018, 220 pp.

Editado por João Coles, José Pedro Moreira, Paulo Rodrigues Ferreira e Tatiana Faia

Capa de Gustavo Domingues

12€

Autores

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Tudo isto para dizer que o Caderno 5 da Enfermaria 6 é uma antologia dos textos que mais agradaram ao quinteto editorial da Enfermaria publicados no site durante 2017. Que o objectivo deste caderno talvez seja agarrar e perder, e não lamentar perder, essa coisa fugidia implícita na longa corrida de personagens arquetípicas do romance português do século XIX: mais do que deixar uma imagem da literatura a acontecer, ou um cânone lusófono em formação (nunca teríamos a isso pretensão), ou gabarmo-nos de publicar o melhor poeta do nosso bairro, simplesmente queríamos deixar aqui um quadro vivo das coisas que aconteceram na Enfermaria 6 durante um ano, aberto para um impulso de olhar para a frente. Esta é uma recolha de ensaios, poemas, contos, notas, breves apontamentos. A sua função pode bem ser vista como a nossa tentativa de mapear os gestos de alguns autores que, generosamente, connosco, tentaram a sua corrida e tentaram registar o significado de determinados momentos, no seu peso histórico, filosófico, político, poético. No seu peso jogando contra eles ou a favor deles. A favor da beleza do quotidiano, contra o lado reles da burocrática rotina cívica. Enquanto blog, a Enfermaria 6 é actualizada quase diariamente, com textos sobre coisas que ferem e sobre coisas que nos fazem pulsar, de autores maioritariamente oriundos de Portugal e do Brasil. Acreditamos que muitos destes textos merecem um registo menos efémero do que o tempo entre uma actualização e outra do nosso blog. Deixamos aqui então esta nossa proposta de anuário. E comprometemo-nos a tentar voltar para o próximo ano.

"Uma espécie de Editorial", Cassandra Jordão & Victor Gonçalves

 

Sete poemas de Daniel Ferreira

Condenados pelo Arco-Íris

Jean-Nicolas Arthur Rimbaud

Já dizia aquele rapaz, o do negócio de armas.
Enquanto eu sorria sem contar até três
talvez dos tomates do meu bisavô.
Vivemos condenados pela cor (pelo pote escondido
atrás das cores) pela semântica corrosiva
que nos aplaina teimosa o corpo.
E esta inocência, esta falsa liberdade
na procura de expiações maiores;
estes bodes gigantes controlados por andas.



Economia de Mercado

Desde cedo percebi
que essa coisa de não riscar
os livros, como nos ensinam
na escola, é preocupação
primordial de alfarrabista.

Sempre que passo num
ou é para comprar – mesmo
riscado – ou é porque tenho livros
com potencial para o desprezo.

Nunca vendo aqueles
que sublinho – e não é puro acaso.
Prefiro deturpar
tudo aquilo que aprendi.


Café Varandas

Fizesse sol na tarde e nada disto faria
sentido. Duas aprendizes guitarras
e cartas. A televisão acesa a perceber –
pois também tem direito – o que é isso
afinal a que chamamos solidão.
As vozes, confundidas, a raiar sob um tecto
de fumo e outro de verosimilhança.

Por momentos, a vida faz todo
e mais algum sentido.

Olho de relanço para o ecrã enquanto espero.


Metafísica do Sonho

Nascer num berço de ouro.
Querer, depressa e cinicamente,
atingir a perfeição pela indiferença.
Esquecer, de uma vez
por todas, os meus admiráveis dissemelhantes.

Com gosto e requinte
afinar a voz,
limar as unhas e pintá-las,
comprar uns óculos
para melhor ignorar as distopias.

Listagem de uma vida
que morreu
possível logo à nascença.
A questão é essa.

Nunca me derrotando
a tristeza por saber
que não me falta nada.

Eles já sabem que o sonho.


Fonte da rija

ao Pata Descalça

Atravessavas o bairro descalço
enquanto o teu irmão, iludido pela promessa
de um circo espanhol,
fugia já pela fronteira. Nos pés –
calejados – a certeza de que nunca,
nem mesmo no natal, os calçarias.
Achavas, na pequena altura, que os pés
para cheirarem mal
precisariam de uma prisão de cordões
semelhante às grades da fábrica do tio
de A., filho do PJ do qual a tua
avó (com pó de talco suspeito
nos sovacos) fugia a sete olhos.

Não éramos de todo inocentes,
sabíamos que a água da Fonte da Rija
era imprópria para consumo
e no entanto aqui prosseguimos:
longe do bairro onde dois
laços se perderam a partir
do momento em que decidiste
calçar, pela primeira vez, um par
de sapatilhas de corrida.


O Teu Lugar no Mundo

para Lawrence: para não pensares que é para ti

 

Quando te entendi pela primeira
vez, como uma aparição terrena
manifesto-espelho
do quão reveladora é a realidade.
Quando percebi que de ti
uma força evidente me puxava
e agitava, fazendo-me tremer
como um berbere no pólo norte despido
a atravessar o céu
poeirento da noite, maravilhado
de galáxias pressentidas.
Quando neste momento
em que me escrevo, sei de ti
o teu lugar no mundo, a tua bondade
árvore de frutos
composto sobre a raiz do problema.
Quando sozinho sinto
e reconheço, o olhar fremente
um peso, no lugar da maçã de Adão,
um vazio por ocupar. Quando
me escorre música pelos ouvidos
e desço a cidade até à longitude dos
areais, cantando-me outros
a ti, a maresia em sal crescente.
Quando o mar me subir então
até à cintura; pouco depois
até ao pescoço; até ao bailado
dos meus cabelos; hei-de viver
abraçado a um polvo.
Faço também o pino e sei que nunca
é demasiado tarde: espero
humilde ajudar-te a salvar o mundo.


Gaivotas

Passam estúpidas
como o tempo, gritam sôfregas
como crianças. E violentam, muitas, o céu
e o final de tarde nesta cidade.
Migração suburbana,
só lhe posso chamar isso.

Da fome, que nem todos
compreendemos, crescem outros tipos
de sobrevivência.

Voltam da lixeira
municipal, e amanhã
é outro dia.
Até que a morte me separe.