espiões

The Spy who Came in from the Cold, John Le Carré/ Martin Ritt, 1963

The Spy who Came in from the Cold, John Le Carré/ Martin Ritt, 1963

às vezes chegam a meio da noite
e algum tempo mais tarde acabam por ser
fuzilados junto aos muros
que dividem as cidades
onde nós vivemos nas nossas apertadas
parcelas de amargura e felicidade
e que não se parecem nada com as vidas complicadas deles 

não conseguimos entender porque fazem este trabalho
mas às vezes conseguem voltar a casa
quando não voltam morrem anonimamente
e muito poucas pessoas dão pela sua falta
as suas famílias raramente sabem
o que fazem eles ao certo
ou o que lhes aconteceu exactamente
às vezes um ou outro extraviado
bate à porta de casa muitos anos mais tarde
pela calada da noite
e não fica por muito tempo
as suas mães quando envelhecem
sofrem de ainda mais melancolia
do que as mães dos exilados 

usam sempre nomes falsos
e dormem com mulheres casadas
que amam ou não amam
e nisso parecem-se mais connosco
queixam-se que é sempre um inferno
quando se apaixonam
mas apaixonam-se com mais perigo
do que nós e temos inveja deles por isso 

parece por vezes
que viveram sempre no nosso país
e falam a nossa língua sem sotaque
outras vezes não mentem sobre de onde vieram
explicam que isto é para que não se esqueçam
muito das histórias que têm de contar
quando precisam de mentir
a outros espiões que por vezes
precisam de recrutar
para cumprir as suas missões 

tornaram-se nossos amigos
porque sabem que somos
estrangeiros como eles
mas sentem uma certa satisfação
por saberem que são mais estrangeiros do que nós 

vivem em casas que nunca serão suas
e têm carros estacionados
em todas as garagens da cidade
porque nunca sabem quando é necessário fugir 

às vezes contam-nos que quando se apaixonam
de verdade precisam de deixar armas carregadas
em estações de metro ou de comboio
e as pessoas por quem se apaixonaram
acabam por ter de fugir
ao cair da noite em aviões privados 

são eles quem os transportam
debaixo do seu chapéu de chuva pela pista do aeroporto
ou têm de se manter discretamente ao longe
nas salas de espera ou nos baldios em redor dos hangares
para se certificarem que os amantes
conseguiram escapar no último minuto 

conhecem sempre as melhores janelas
de onde ver as vidas monótonas dos escritores
de onde espiar o crepúsculo depois de longas horas
observando gente que se move
por salas em esquemas
onde nada acontece
onde tudo acontece 

estão sempre num estado de hipervigilância
reparam em coisas nas quais nunca pensamos
e são perigosos porque sabem
como invadir a nossa privacidade
mesmo quando não precisam de alterar
magicamente a frequência do microfone
dos nossos telefones
para ouvir todas as nossas conversas
e ler todas as nossas mensagens secretas 

todos os seus papéis são falsos
nenhumas das suas roupas lhes pertencem
de vez em quando não podem aparecer
para beber café connosco
porque estão ocupados a ser interrogados
ou mesmo torturados
por espiões mais espertos do que eles
o que nos confessam ser duplamente irritante
porque se atrasam para o café
e porque às vezes se magoam gravemente
às vezes pedem-nos coisas bizarras
e pouco razoáveis

nunca nos falam do seu trabalho
nunca sentem a necessidade de explicar ao certo quem são
têm sempre as melhores histórias para contar
e contra nós sabem sempre como disparar
as perguntas a que nunca tínhamos pensado ter de responder

 

  

Oxford, 2 de Junho de 2021