Abnegação das Sombras, Eduardo Quina, nota de leitura
/Se confrontarmos a estética, com alguma filosofia da arte à mistura, de Kant e Hegel, percebemos que enquanto para Kant o «belo é aquilo que apraz universalmente sem conceitos», espoletando um «jogo livre e harmonioso das faculdades humanas» (Crítica da Faculdade do Juízo, 1790), para Hegel «a arte produz formas ilusórias e enganosas deste mundo imperfeito e instabiliza a verdade contida nas aparências para as dotar de uma realidade mais elevada criada pelo próprio espírito.» É verdade, continua Hegel, que «ainda não é pensamento puro, mas apesar do seu caráter sensível, já não é também uma realidade puramente material.» (Estética, 1818-29) Assim, querendo seguir Hegel, a poesia, como a arte em geral, «convida-nos à meditação filosófica». Não sei se salvará o mundo, mas dá-lhe um sentido mais profundo. E em Eduardo Quina ela quer gravar a gravidade. De forma simultaneamente precisa e inventiva no novíssimo Abnegação das Sombras (Officium Lectionis edições, 2023). Mas igualmente em Corpos Labirínticos (2015), passando por Maligno (2018) e consanguíneo (2021, sobre o qual escrevi uma nota de leitura, aqui),[1] que o poeta revolve, escava o mundo à procura das impurezas metafísicas, principalmente uma metafísica do corpo sofredor, que lhe dão este pendor de obsolescência programada. A angústia não resulta da inconsequência antecipada das escolhas, ou da impossibilidade de um descanso ataráxico, mas da certeza de que o bem é uma quimera e o mal não se decide a vencer de uma vez por todas. Desta forma, escreve-se para incendiar o leitor.
À sua maneira, Eduardo Quina criou um universo poético próprio, presente e em devir, cuja veia principal talvez seja composta pelo fortuito e pela dor. Uma teodiceia invertida à procura, querendo e não querendo encontrá-lo, do pior dos mundos possíveis. Digo isto também porque Eduardo Quina se dedicou a um lugar do qual, parece-me, quer, sem querer realmente, escapar: «vivo submerso de ilha». Há vidas assim, assentes na incerteza do próximo passo. Mesmo quando encontram o sólido ancestral no novo.
Uma fenomenologia da desgraça que permite (exige?) uma hermenêutica excêntrica, um compasso morfológico e musical que retire de cada palavra, ou quase cada palavra, o sentido pleno que noutros autores só se encontra no fecho do poema. É assim que interpreto, mas não prometo estar certo, a bela recensão que Sousa Dias escreveu à primeira parte do livro, Marionetas: «a matéria da poesia não é a emoção, é a linguagem.» Eduardo Quina tateia, experimenta a linguagem para apanhar as sombras da vida. Mas experimenta-a também para testar os seus próprios limites. Limites de quem? Da linguagem e do poeta, que é o mensageiro do claro-obscuro.
Claro (quase):
«enquanto espero o teu rosto tardio
colecciono pequenas pedras
fragmentos cósmicos de ilha
luz e sombras
— sobretudo sombras —
palavras apagadas pelo fogo extinto
intenções de uma lâmpada projectada
contra a voz
e um verso
que permita o silêncio
sobre a água
como um espelho
em que o sangue se embacia.» (p. 72)
Obscuro(quase):
«[…]
Atravesso o nevoeiro que me esconde:
A incomportável letargia da carne
dos lugares para expurgar a solidão.
entretanto espero a noite eléctrica
como subterfúgio
para que o sangue coalhe nas mãos
enquanto as flores adormecem
no recorte do poema
deste martírio auto-biográfico.» (p. 84)
Um pulsar ou uma pulsão sanguínea, mas não totalmente intempestiva (seria o caos), nem repetitiva (seria calculada e, portanto, anódina). O sangue declina-se em múltiplas variações, tantas que há «pulsos irrigados por pedras.» Isto serve para insuflar vida e morte na paradoxologia vertiginosa. Como quando escreve: «filtrando dentro das artérias a densidade do aço.» Contrapeso a um «arrasto-me dentro do ângulo morto do sonho.» Ou «ainda tentei pelo poder da fala / instaurar a possibilidade da ilusão: / era tarde e deus / tinha-se ausentado para sempre.»
Recordo-me de Nietzsche e da sua forma de narrar a morte de Deus, revelando um segredo de polichinelo para daí retirar a máxima consequência filosófica: podemos afundar-nos no niilismo ou fazer disso a boa nova, o último evangelho. O «maior de todos os acontecimentos» conduz a uma bifurcação: o caminho do sobre-homem (senhor) e o do último homem (escravo). Creio que a poesia de Eduardo Quina estabelece um estado da arte sobre a morte ou a indiferença de Deus. Bem sei que são coisas diferentes, mas convergem na ideia de abandono e ressentimento. «Meu Deus, meu Deus porque me abandonaste?» Agora sou vago e odeio. Mas posso explorar a superior potência da linguagem, contra mim («aniquilamo-nos delicadamente / porque somos irrisórios.») e contra Deus («a promessa vã da culpa»): «no abismo solitário da ilha / segrego as artes da ressurreição». Um retorno mais dionisíaco do que apolíneo. Porque há «inferno», «abismo», «simulacro», «desalento», «destroços», «farrapos reciclados», «espectros», «pesadelos lancinantes». Sem conjuros, nada de jovialidade (Heiterkeit) , «afinal não voamos» e «somos inesgotáveis no sofrimento». Mas há um fulgor indomável, e negro, em tudo o que Eduardo Quina escreve, é raro a redenção artística vir serenar o incandescente, lemos e sentimos que se trata de «sangue subindo em golfadas imprudentes».
Não é com riqueza que os poetas sonham, mas com luz, sombras e liberdade.
[1] Os outros livros são: Sombras mortas entre os dedos, 2015; Ausência, 2017; No Princípio era a Morte, 2022.