Milan Kundera, elogio fúnebre
/A morte de Kundera permitirá que toda a cena seja ocupada pela sua obra, era isso que ele pretendia, beckettizar-se (lemos este belo neologismo num qualquer jornal de referência que agora não conseguimos citar), desaparecer por detrás da sua obra.
Em jeito de homenagem, Tatiana Faia e Victor Gonçalves escrevem sobre os seus encontros com o autor da Insustentável Leveza do Ser.
Tatiana Faia
Numa entrevista bastante recente à BBC, Salman Rushdie, falando do ataque de que foi vítima em 2022 em Nova Iorque, recordava, a propósito da morte de Milan Kundera, que ele era um escritor que acreditava que o riso era uma forma de desmontar os extremismos. Isto fez-me ir à procura da última entrevista que Kundera deu à televisão francesa (em Apostrophes, 1984). O tema era o erotismo em A Insustentável Leveza do Ser, sem dúvida o livro mais lido de Kundera, e nela Kundera diz que vivemos numa época onde a intimidade é facilmente exposta e que sem intimidade a personalidade evapora-se. Isto recordou-me uma anedota contada por Philip Roth, que se encontrara com Kundera na Checoslováquia, e que contou algures como aí tinha sido vigiado pela polícia e um amigo seu, Ivan Klima, tinha sido, depois de ele ter partido, interrogado sobre os motivos da sua presença, ao que ele respondeu perguntando ao polícia que o interrogava se ele tinha lido os romances de Roth, que o motivo pelo qual ele fizera aquela visita eram as mulheres. Talvez haja nesta história sobre um outro escritor qualquer coisa do riso de Kundera, o tal que desmonta o extremismo, faz entrar pela porta da violência a normalidade, os traços de natureza das pessoas pelas quais elas vão sendo gente (é com o mesmo amor ao detalhe menor que outro escritor, Saramago, tende a olhar para as suas personagens).
Não me lembro de me ter rido particularmente com A Insustentável Leveza do Ser, mas recordo uma observação que ficou comigo, que mudou uma coisa bastante simples para mim, mas talvez bastante fundamental. Há um momento no livro em que Kundera discute a noção de que a crueldade que exercemos contra os outros continuará a existir enquanto continuarmos a ser capazes de ser cruéis para com os animais. Deu-me uma certa obsessão esta ideia, que é aquela que me ocorre quando de vez em quando sou esmagada por uma verdade que não quero ou não posso combater. Ter lido Kundera, que não sei, nem me importa, se era vegetariano ou não, explica então em parte o meu vegetarianismo. Pode parecer pouco esta anedota, mas aqui fica um desses exemplos que por vezes são clichés de marketing, ou frases ditas por críticos em dias de cansaço, quando estão pouco inspirados, e outras apenas uma maneira de falar de uma verdade – simples e dura como um seixo: de vez em quando um livro encontra-nos e muda a nossa vida. Isto é, então, uma pequena elegia para Milan Kundera.
Victor Gonçalves
O que resta das nossas leituras, que partículas permanecem no nosso sistema de pensamento, que partes do nosso cérebro são influenciadas pelos resquícios do que fomos e da forma como fomos lendo? Os bioarquivos contaminados pelas influências heteróclitas da vida e… das novas leituras. Todos usamos o «li, mas não me lembro», ou «li, mas quase não me lembro». Um esquecimento que empobrece, com certeza, mas sem ele, como nos ensinou Friedrich Nietzsche, estaríamos condenados ao peso de um passado que esmagaria o futuro.
Milan Kundera pensou o esquecimento noutro sentido: esquecer o passado retira profundidade ao presente e torna o futuro previsível (não há futuro que resista ao conhecimento prévio do que vai ser), isto é, um esquecimento que conduz diretamente à ignorância. No imediato, depois da notícia da sua morte, recordei-me de ter lido a Insustentável Leveza do Ser, a Arte do Romance, a A Ignorância e A Imortalidade. Mas estão fora da memória mais ativa, talvez só trabalhem subterrânea e fortuitamente em mim (que força de modelação tem isso?). No campo da semiconsciência, companheiros distantes mas importantes, tenho, então, as quatro obras referidas. Será também por serem bastante conhecidas e citadas? Muito do que julgamos pensar por conta própria não passa de discurso em segunda mão, mais ou menos bem recondicionado. As nossas ideias são o estrato mais recente de um palimpsesto infinito.
Seja como for, ele mostrou-me uma categoria fundamental do mundo contemporâneo: o Kitsch. Uma produção quase industrial de obras que não são nem lúcidas nem belas (o Kitsch vive de um simulacro de beleza fácil de assimilar pelas massas), uma exaltação do banal. Percebi também outras possibilidades do absurdo, do mau absurdo (o sem-sentido que simula ter sentido, próprio ao regime checoslovaco neoestalinista pós-68, mas também à sociedade de consumo do Ocidente rico), distinguindo-se do absurdo que reforça o anti-determinismo, e por isso mesmo a liberdade, de Sartre e, sobretudo, Camus. O de Kundera está mais próximo do de Kafka (que li intensamente) ou Musil (que admiro), por vezes, talvez de Beckett (que me dá sempre muito a pensar). De qualquer forma, o seu absurdo não abafa o riso, Kundera, dizem os que privaram com ele, tinha um bom humor fantástico, e o risível que provoca boas disposições no ânimo habita na sua obra, pressenti-o eu e asseguram-no alguns dos seus maiores leitores. Talvez o risível seja a via entre os dois abismos que descreveu a Philip Roth (admirador incondicional da sua obra): o do fanatismo e o do cepticismo absoluto. Retenho também a erotização, roçando o pornográfico, sem saídas pelo alto (metafísicas ou libertárias, ambas dionisíacas). Ou a identidade, como nos fazemos e desfazemos constantemente, egos esburacados.
Afirmava que não era um escritor, mas um romancista. Nesta arte, pelo seu poder de diagnóstico e criação, cabia toda a cultura europeia. Deste Cervantes, passando por Diderot e Rabelais e acabando em contemporâneos seus de língua checa. Pelo que tenho lido em vários jornais, Kundera é um dos maiores antropólogos culturais do velho continente, mas também um pensador da geopolítica europeia. A escritora Norma Manea disse há poucos dias ao jornal Le Monde «Perdemos uma testemunha fundamental e um grande pensador da Europa do século XX, das suas convulsões e conflitos.» Uma Europa que ele considerava frágil, em perigo, como o referiu a Roth em 1980.
Esta caracterização aliada a uma vaga, mas persistente, sensação de que o devia ter lido mais, que isso comporia alguns gestos imprecisos da minha forma de pensar (olhar para o mundo, para mim e interpretar, com rigor e com excesso, pensar um futuro para a Europa), conduzem-me para leituras por vir, será o meu próximo (2024) autor de cabeceira.