Céleste Albaret faz a lida do palácio
/Na ombreira do verso
há uma voz que ainda
consente em ser útil
e permite que eu a veja
e repita, sílaba por sílaba.
A mesa de mogno da sala
está pronta para receber
o papel branco-amanhecido:
Celeste está cansada,
de cotovelos obstinados,
cheia de conversas de salão.
Contrafeita, prefere o tom centrípeto
da mulher a dias que ocupa
o tampo e o tempo da mesa
com lágrimas de cansaço
entre cálices de vinho.
E ela então agiganta-se
e escreve
os recados a Deus,
o quotidiano macabro
do mezanino que a envolve.
Vigio-a nessa atmosfera insidiosa,
vejo-a lenta como algodão
de dia, sei que ela canta
crepitante nas piores horas
do pensamento.
Esta figura não tem
a brancura de Euricleia.
As suas pobres moedas
rodeiam
a lista negra dos dias,
os recados queimados, todos
com a minha mortal assinatura
– Erich Auerbach –
Ela tem o sonho cravado
nuns olhos roxos, distantes.
Os dedos desta mulher
parecem ter
vida própria,
assalariada, difusa.
(Onde andaste
para trazeres os dedos
assim?)
Mas a mulher
a dias apenas espreita
da janela oval
o Mar de Mármara,
trabalha em meu lugar
à mesa de mogno,
escrevendo recados a um
adeus adiado.
Ela espreita sempre
à janela do palácio,
completa a ruína
do que nos rodeia,
eu abro o vinho
às escuras
numa sala pétrea
do pensamento
e saio de rompante
quando sei que é
tempo de partir –
seguro no meu passo,
ouço-a ainda tossir.
O seu manto de presságios
é uma coisa prática.
De coração perdido, apostados os dois
Em esconjurar mapas e bibliotecas,
todo um cristalino colar de mitos.
Limpos e obscenos em claro convívio:
este é só mais um fim
De um inumerável princípio.