Tininha

Tininha diz ao papá: «Papá, que é isto? A Via Láctea os numinosos espaços nocturnos já não me surpreendem! Parecem só um tecto de sala, que a tia de quem menos gosto decorou. Papá, que é isto?» «Ó Tininha! É lavar a cara com água fria! É partir para uma voluptuosa volta — de mota, no mato.» Tininha acatou e atestou: deu de caras com a surpresa do bicho. O bicho — a Via Láctea os numinosos espaços nocturnos — ferida-acordeão que o sopro de Tininha agrava ou mitiga. Tininha viu: a noite cicatriza em dia, o dia cicatriza em noite.

De Canto da Alforreca, Douda Correria, 2016

Três melómanos

Às três e meia da madrugada
na Rua da Bica de Duarte Belo
três melómanos discutem música e metafísica.
Já tanta cerveja foi tragada
que nem sempre é rigoroso
um ou outro elo

no encadeamento lógico do discurso.

«A música é
a cara chapada da divindade.
(Não há melhor maneiro de o pôr!)
Ainda ontem, a ouvir Gang of Four,
num segundo me ocorreu o postulado.
Aquela sensação de
eu conheço o sujeito de algum lado

A cara chapada da divindade.»

A segunda respondeu:
«Tu devias ter mais tino.
A ser a música de Deus alguma coisa
não será a cara mas o intestino,
órgão que absorve
elementos de si simples
— ritmo harmonia silêncio histerias —
e os transforma em intrincada energia

que nos aquece,
nos alumia,
nos agarra pela gola.
É um pouco o que sucede com o Piazzolla.

Não a cara mas o intestino.»

E o terceiro:
«Não é bem assim.
A música é é o labirinto que
Deus tece sem fim

pra passear e se perder pra sempre,
para inventar câmaras e antecâmaras
e corredores e novos pátios
e escadarias que dão para certas matas.

Não me surpreende
que vocês isto não alcancem, vocês
que continuam presos ao ardil
do CD. São
coisas que só se entendem em vinil.

Pra passear e se perder pra sempre.»

Passou um gato com um guizo. O guizo
tilintou duas vezes, calou-se,
tilintou a derradeira,
o gato foi-se.

Deixou uma saudade
de som de guizo de gato
reverberando pela
Rua da Bica de Duarte Belo
acima e abaixo.

E acabou a conversa.

Porque
a música é o remoinho que engole a própria metafísica.

De Da Madragoa a Meca, &etc, 2013

"On weakened legs I walked around the town the whole day. I took photographs"

Poema de Katerina Iliopoulou
Tradução de José Luís Costa

Durante trinta anos, o fotógrafo húngaro André Kertész esgotou, caminhando,
a rede das ruas de pelo menos três cidades. Aos oitenta e cinco anos,
confinado pela tristeza ao seu apartamento da Quinta Avenida de Nova Iorque,
fotografa com uma Polaroid tudo o que encontra à sua volta.
Com os movimentos subtis de uma estátua de vidro, muda posições no quarto.
Altera o eixo de focagem do seu olhar.
Não precisa de ir a lado nenhum.
E diz: «Esquecia-me de comer. Tirava fotografias. Começava com a luz do sol
de manhã e esperava pela tarde. Fotografava e fotografava. Esquecia-me de tomar os
[medicamentos.»
Dois anos mais tarde, no livro que intitulou «Da minha janela», podemos ver
a cidade dissolver-se para lá do vidro, podemos ver a sombra duma mão ameaçar uma
luzidia maçaneta sem nunca a alcançar, um transparente busto de vidro digerir
devagar as árvores nuas do jardim, as torres gémeas acima do parapeito.
Podemos observar o que não vemos.
Depois voltou a sair. Fotografou no jardim o espasmo de uma menina a correr
e meia silhueta de um homem vestido de preto a desaparecer. Fotografou-se em Paris
a si mesmo, duplo, de olhos fechados, e uma porta branca espatifada e entreaberta [reflectida num espelho.
Todos os dias recolhe frágeis vespeiros sem mel
inquietos favos de zumbido.
Todos os dias os despeja para dentro do seu infindável arquivo.
Não tem modo de parar com isso
Não é um lugar donde lhe seja permitido fugir.
Cada formulação, cada fabricação da morte
ressuscita dentro do zumbido que pede mais.
Mais neve, mais uma rede de vestígios
Mais um reflexo da sombra na cal
Mais uma caminhada numa estranha suspensão de alegria
quando deixa que o ferrão o morda sempre mais uma vez.


O outro poema de Katerina Iliopoulou na tradução de José Luís Costa nesta série pode ser lido aqui.

Canal I: Um poema de Katerina Iliopoulou

Poema de Katerina Iliopoulou
Tradução de José Luís Costa

A voz de Katerina Iliopoulou é uma das mais importantes da poesia grega actual, tanto pelo seu trabalho poético em si, quanto pela sua crença na arte como expressão de um momento colectivo, que pode ser idiossincraticamente partilhado por vários num mesmo espaço, como sucede na revista de que é a editora responsável, Farmáko (FRMK): Uma revista para a investigação do fenómeno poético. Farmáko quer dizer remédio. A sua é uma poesia preocupada com a reinterpretação de mitos e lugares e com o que é artesanal, expande-se para incluir animais, memórias de gestos artísticos perfeitamente anónimos (como aquele que é recordado no poema que aqui publicamos) e, sobretudo, parece-me ser comprometida com a ideia, como se lê num dos seus livros, de que a poesia é uma estratégia para viver porque o mundo não é uma obra acabada, é um espaço para onde dirigimos o nosso olhar interrogativo e, no qual, a partir desse olhar, escrevemos e somos escritos, gestos que acrescentam qualquer coisa que vai para lá da realidade, que por si não basta. Talvez seja por isso que os poemas de Katerina Iliopoulou parecem por vezes crónicas atentas e tensas de pequenas metamorfoses (a do mergulho de um pequeno nadador, ou a que se sofre ao atravessar um campo) e talvez por isso os achemos tão necessários. É uma grande alegria para nós poder partilhar alguns poemas seus na Enfermaria 6. O seu perfil está disponível aqui.

Tatiana Faia



CANAL I

Aprisionados no antes e no depois
deitamos olhares furtivos ao espelho
nele o nosso rosto endurecido e marcado
Em frente a estrada,
o rosto imaculado da juventude.
Aqui, juntos, no mesmo corpo.
Não se foi embora
não é um caminho que possas tomar,
nem um novelo que se desfie até ao fim
ai de nós, não
É uma concha que se contrói internamente
sem que se consiga ver a saída
sem que se descortine uma direcção
Um desígnio desconhecido
insaciável
E a viagem não é chegar mas descoser.
Desfaçamos pois as costuras.
A minha avó descoseu
um fato de homem inteiro
numa só noite
e voltou a cosê-lo do princípio
do avesso
Duplicava assim a sua vida
do avesso
O percurso tem duas direcções
cada momento
múltiplo cada momento
para a frente e para trás
e do início, várias vezes a mesma estrada.
Não era artimanha mas mestria.
Porque sem o conhecimento de um artesão tudo se perde duas vezes.
Como presente e como memória.
Deixa o tempo fluir
A provação é a passagem
Que encontres modo de passar até pela casa dum botão
Não se trata de avançares mas de aconteceres.

Tacto

Tonia Tzirita Zacharatou
Tradução do grego de José Luís Costa

Os meus dedos conhecem duas texturas
a pele e a terra
embora nem sempre consigam
distingui-las.
É o tacto aquilo que perde
um foragido que tenha queimado
as pontas dos dedos
tendo decidido passar a viver
sem impressões digitais.
Talvez até me sentisse eu melhor
se pudesse tocar
a pele seca, a terra
sequiosa que foi a tua
uma pele que eu não sentia
com os dedos mas que se estendia
e transbordava por todos os lados
quando o mundo era ainda
uma casca de laranja
enroscada em torno do meu pulso.


O poema anterior nesta série, bem como um texto introdutório de Androniki Tasioula ao livro de que ele faz parte, Segunda Juventude, pode ser lido aqui.