Édipo revisitado

Rei Édipo em Convent Garden, Encenação de Max Reinhardt, 1912

Este ano o Festival de Atenas e Epidauro encerrou com uma representação do Rei Édipo de Sófocles, levada a cena pelo actor e dramaturgo grego Simos Kakalas. Talvez poucos sítios sejam tão propícios para encenar esta tragédia como Epidauro e não apenas porque para se chegar de Atenas a Epidauro se passa pelo lugar onde no mito Édipo cresce, Corinto. Há qualquer coisa de muito comovente em saber que o complexo arqueológico de que o teatro de Epidauro faz parte era na antiguidade um santuário dedicado ao deus Asclépio e que assistir a representações teatrais era parte da terapia. Talvez em nenhum sítio arqueológico como ali pareça tão visível que os gregos intuíram a existência do subconsciente e a sua força (sobre isto vale a pena revisitar o livro de E.R. Dodds, The Greeks and the Irrational). Numa das inscrições deixadas no santuário por um dos pacientes ele agradece a Asclépio ter-lhe enviado o sonho que o curou. 

Em Epidauro, então, o anfiteatro está rodeado pelo parque arqueológico, que não sendo visitado de noite, não possui iluminação visível. Um dos aspectos mais marcantes de ver uma peça neste espaço é o de que, à medida que a noite cai (as peças tendem a ser representadas a partir das 21.00), o horizonte fica imerso no escuro, o único ponto de luz que se avista da plateia é o palco. De todos os dramas gregos aquele que é definitivamente sobre escuridão é o Rei Édipo de Sófocles. É isso que ver esta peça no mais bem preservado dos teatros do mundo antigo lembra. Na verdade, é um texto sobre diferentes camadas de escuridão: a que vem do passado, do desconhecimento da própria história, e finalmente a que advém de um conhecimento absoluto de uma verdade que, literalmente, faz com que Édipo se cegue no desenlace. É, em certa medida, uma peça sobre a violência implacável do mais ambivalente dos deuses gregos, Apolo, responsável pela peste que assola Tebas e que não a deixa desaparecer até que o assassino de Laio seja descoberto. Nenhum deus dos gregos é capaz de tanta harmonia e tanta crueldade como Apolo. Em 1983 Bernard M. W. Knox publicou a sua leitura existencialista do teatro de Sófocles, The Heroic Temper: Studies in Sophoclean Tragedy, que é também um estudo do desenvolvimento da ideia de protagonista no teatro antigo. Knox nota a dada altura que em nenhum dos tragediógrafos os deuses são tão cruéis como em Sófocles. Penso que isto é muito verdade.

Oliver Taplin escreveu, na introdução à sua tradução do texto (publicada pela Oxford World Classics em 2015, Oedipus the King and Other Tragedies), que a peça é um castelo de cartas. É uma boa imagem. Rei Édipo é uma tragédia, em parte, sobre a instabilidade da sorte, sobre a vertigem do seu lado ascendente e da descida. Quando, primeiro em A Interpretação dos Sonhos e, em menor escala, em Totem e Tabu, Freud teoriza sobre Édipo, é sobre a profundidade do desejo humano, do seu papel na formação de uma personalidade, e também sobre a violência do subconsciente que ele está a falar. Na verdade, não acredito que haja uma audiência contemporânea que consiga ver Rei Édipo completamente fora da sombra da leitura de Freud. E a figura continua a ser relevante para lá desse momento na história da sua interpetração. Depois de Freud e Lacan, Deleuze e Guattari revisitariam Édipo (em o Anti-Édipo) à luz de um sistema capitalista, observando o quanto ele é problemático se visto, ao mesmo tempo, enquanto figura estrutural e imaginária.

A leitura que Freud faz de Sófocles foi bastante atacada por classicistas. Destas leituras talvez a mais influente seja a de Jean-Pierre Vernant (em “Édipo sem complexo,” um texto publicado em 1972 no livro Mythe et Tragédie em Grèce Ancienne), que ataca a argumentação de Freud a partir da ideia de que ela não é correcta do ponto de vista da psicologia histórica, mas sabemos hoje que Freud compreendia mais da cultura teatral ateniense do que aquilo que outrora se pensou. Vale a pena lembrar que o excerto de grego antigo que Freud traduz no exame de admissão à universidade é um excerto do Édipo de Sófocles.

De outro modo, aspectos biográficos não são irrelevantes para pensar o que Édipo significava para Sófocles e o que ele significava para Freud. Alguns classicistas que estudaram esta peça e que especulam que ela data da década de 30 do séc. V a.C. acreditam que, além da peste ser uma alusão à epidemia que dizima uma parte da população de Atenas nessa década, o quanto o texto está obcecado com a relação entre hereditariedade e o estatuto de Édipo enquanto rei de Tebas (o termo normalmente traduzido por rei é uma má tradução da palavra por que ele é nomeado no grego, tyrannos, que, ao contrário do outro termo para rei, basileus, pressupõe que ele não tinha herdado o trono por via hereditária, mas tyrannos não possuía para os gregos a ressonância negativa que tem hoje) reflecte um problema político da própria Atenas, o facto de que Péricles, o principal estadista ateniense da época clássica, perdera o único filho legítimo para a peste e adopta, na sequência, o filho ilegítimo que tinha com Aspásia, a sua amante estrangeira, para que ele se pudesse tornar cidadão da polis. Estudiosos de Freud, por outro lado, especulam que ele talvez nunca tivesse pensado no Édipo como um dos mitos arquetípicos do desejo e da perversão humanas se não tivesse um meio-irmão (filho de outra mãe) com uma idade extremamente próxima, como seria o caso de Édipo com Jocasta, da sua própria mãe.

Édipo é então uma peça sobre diferentes camadas de escuridão e por isso também sobre o que do passado regressa dessa escuridão, exige ser interrogado e resolvido porque, como nota o coro no início da tragédia, uma epidemia assola a cidade, enviada por Apolo por causa do homicídio do rei anterior, e é preciso encontrar o criminoso que sobre ela trouxe a maldição do deus. Certeza e auto-confiança, desorientação, paranoia, e finalmente o terror da catástrofe são o espectro de emoções que Édipo percorre à medida que a tragédia avança. De todas as personagens trágicas nenhuma demonstra tão perfeitamente como Édipo, no corpo e no caminho que o vimos percorrer, um fragmento de um outro verso de uma tragédia perdida de Ésquilo, aquele em que Aquiles diz que se sente como a águia que vê que a seta que o trespassa tem por adorno uma pena da própria asa.  É este, no fundo, o resumo mais eficaz do enredo da peça.

Aristóteles devia amar esta tragédia e considerava-a o exemplo mais perfeito de uma tragédia grega e isso talvez seja porque a sua progressão é tão lógica quanto um silogismo. O mesmo talvez não possa ser dito do sentimento que os atenienses contemporâneos de Sófocles experimentaram ao vê-la. Qualquer coisa nela os deve ter inquietado, e talvez irritado, profundamente. Sabemos que de todas as peças de Sófocles esta é a única que não vence o primeiro prémio no festival das Dionísias. O mito de Édipo estava, de outro modo, bem estabelecido no imaginário ateniense e helénico. Em 467 a.C. Ésquilo levara a cena uma trilogia cujo tema é o mito de Édipo (as tragédias que compunham essa trilogia eram Laio, Édipo e a única peça que se conservou, Sete contra Tebas, o epílogo era um drama satírico intitulado Esfinge) e antes disso havia um poema épico, Edipódia, dedicado a Édipo.

No imaginário moderno a peça é tabu durante bastantes séculos. Datará do Renascimento a ideia, talvez mal concebida, de que ela é sobre hamartia, um erro trágico, o que tende a enfatizar a responsabilidade moral e a hybris de Édipo, mas o que ele tenta fazer ao sair de Corinto é evitar aquilo que conhece do seu destino, com o conhecimento do futuro que lhe é dado por Apolo, o que leva Jean-Pierre Vernant a dizer, contra Freud, e talvez não inteiramente em erro, que Édipo não sofre do complexo de Édipo. Rei Édipo, nesse sentido, é uma peça em grande parte sobre a impossibilidade de controlar o destino, sobre o papel da sorte na possibilidade de viver uma vida bem-vivida. Talvez Aristóteles esteja de facto certo sobre a peça ser sobre catarse, sobre a passagem através do fogo de uma destruição irreparável para a sua terrível aceitação, e também sobre aquilo que o amigo que foi comigo ver a peça, o classicista (e ao contrário de mim de facto especialista em teatro antigo) Roberto Morales Salazar, descreveu como a necessidade de ir ao teatro para chorar.

É só nas duas últimas décadas do século XIX que a peça se torna popular, ao ser repetidamente representada em Paris pelo brilhante actor Jean Mounet-Sully, recordado por Stravinsky pela sua atenção maníaca a pormenores historicizantes. É decisivamente alicerçada no imaginário do modernismo inglês por volta de 1912, quando Max Reinhardt a encena em Convent Garden em Londres a partir de uma tradução do lendário classicista australiano Gilbert Murray, professor de grego em Oxford. É, no entanto, outra encenação de Édipo feita por Reinhardt, um pouco mais cedo em Berlim, a partir de uma versão de Hugo von Hoffmannstahl, em 1910 (na versão que sabemos que Freud viu, embora especulemos que terá também visto a de Sully), com cenário e coro monumentais, que mudam a história do teatro no Modernismo, e também a história da relação deste período com a tragédia grega. A escolha de actor principal, talvez demasiado jovem para representar o papel à data, Alexander Moissi, parece ter criado uma inesperada intensidade dramática. A figura de Édipo foi mais tarde revisitada por T.S. Eliot, Cocteau e André Gide, entre outros.

O desconforto que o Édipo de Sófocles nos causa é inversamente proporcional ao conforto causado pela progressão perfeita do seu edifício lógico: vemos com toda a ironia a catástrofe desenrolar-se à nossa frente, mas enquanto audiência estamos confortáveis porque está a fazer todo o sentido. Isto é muito grego. Mas ver Édipo é observar um cenário teatral a ser lentamente desmontado diante dos nossos olhos, o teatro da vida de um homem: Édipo, alguém capaz de uma violência sem limite, de matar um rei por uma ofensa numa encruzilhada, mas também o mesmo homem que fugira de casa em Corinto para evitar a profecia escutada em Delfos, que dizia que ele mataria o pai e se casaria com a mãe. A peça começa com o que está à superfície, com um rei preocupado diante dos seus cidadãos, com uma história anterior de investigador bem sucedido (é afinal Édipo quem decifra o enigma da esfinge) e que agora tem de descobrir quem é o assassino do rei anterior, e camada sob camada vemos Édipo afundar-se até se converter noutra pessoa, vemo-lo mudar e mudar de novo com a presença de Jocasta e de Creonte, até chegarmos àquela cena em que ele sugere que o único escravo que testemunhou o homicídio de Laio seja torturado (a maior parte dos estudiosos da peça notam o quanto isto é aberrante, em toda a tragédia grega, tanto quanto me lembro, há apenas outra cena em que um escravo quase é torturado, no Orestes de Eurípides, pelo imaturo e desesperado Orestes).

Achei que havia na encenação de Simos Kakalas algumas intuições óptimas e algumas decisões difíceis de explicar. Por exemplo, o facto de que todo o elenco da peça está vestido de negro e de modo sóbrio comunica de um modo inteligente a atmosfera de antecipação assustada e de luto que caracteriza a psicologia do coro. E a entrada do coro em cena talvez tenha sido uma das melhores entradas de um coro trágico em cena que observei em muito tempo. Um a um os actores vestidos de negro foram entrando em palco, segurando cada um a sua máscara. Simples e belo. Por outro lado, as máscaras pareceram-me uma má escolha por mais do que um motivo, a começar pelo motivo prático do enorme desconforto que devem ter causado aos actores num calor de 40 graus. Kakalas comentou esta decisão dizendo que queria que as máscaras fossem todas iguais, e que todos os actores as usassem (incluindo creio que em certos pontos Creonte e Édipo que se juntam ao coro), para dar a noção de que todos no fundo são iguais dentro da hierarquia da peça, isto é, dentro do que ela significa, que nem um rei está a salvo de um golpe particularmente cruel do destino. Esta linha argumentativa a mim parece-me talvez ingénua. Uma grande parte da tensão que sustenta a peça é o facto de que Édipo é um autocrata há um longo tempo no poder e, como se vai ver na atitude que ele adopta perante o coro e sobretudo perante Creonte, o irmão de Jocasta de quem ele desconfia porque o vê como um rival, é o representante de uma sociedade extremamente hierarquizada, e alguém que não é inteiramente imune à paranoia que o desejo de se manter no poder normalmente inspira em quem está habituado a ter o controlo.

Édipo, não é, definitivamente, igual a toda a gente. E o seu infortúnio também não o torna igual aos outros, o segredo que explica a sua origem é um golpe particularmente cruel, poucas tragédias são tão cruéis para com a sua personagem principal quanto o enredo de Rei Édipo o é para Édipo. Não me parece que Édipo seja então uma peça cujo objectivo do seu imaginário moral seja o da humildade para fins de igualdade social perante a catástrofe, não sei de resto o que pode vir dessa ideia que não me pareça mesquinho ou opressor. Esta noção parece-me correr o risco de obscurecer o facto de que apesar de tudo é Édipo quem vê, e escolhe ver, a verdade que o destrói e que há nele a lucidez de tentar chegar a essa verdade, ainda que isto aconteça a partir de um lugar de poder e privilégio, o seu triunfo, a verdade que ele acaba por descobrir, é também a sua destruição. (Sófocles é o grande tragediógrafo das conquistas amargas.) Esta noção parece-me ainda reduzir Édipo de outra forma, a sua identidade não se circunscreve inteiramente ao golpe que o destrói e sabemos que isso é particularmente verdade para Sófocles, que regressaria à figura de Édipo na sua última obra-prima, o estranhíssimo Édipo em Colono, uma peça sobre um Édipo zangado que amaldiçoa Tebas e vem morrer à aldeia (subúrbio) de Atenas de onde o próprio Sófocles era oriundo. A polis ateniense, talvez disfarçada de Tebas para os propósitos de Sófocles, por outro lado era, como em certo sentido o é a sociedade ocidental em que vivemos, um lugar profundamente desigual, em nenhuma parte isso é tão visível nesta peça quanto na angústia do coro. Parece-me uma oportunidade desperdiçada mascarar – literalmente – isso.

As máscaras, que supostamente trariam igualdade porque são todas iguais, por outro lado, como comentava o amigo que viu comigo a peça, desumanizam o coro, que é talvez um dos coros mais humanos de toda a tragédia clássica: é um coro devastado por uma doença que paira sobre a cidade, que carrega consigo uma memória da história anterior de Tebas, que está preocupado com a sobrevivência da comunidade a que pertence e que em muitos sentidos é mais inteligente do que Édipo. É uma comunidade com vários rostos, com múltiplas vozes. O facto de que Kakalas resolveu que os seus autores não iam usar microfone no espaço do anfiteatro sabotou ainda mais o coro, o material das máscaras tornava difícil de ouvi-los e sabemos que não era esse o caso com o material de que eram feitas as máscaras na antiguidade, que ajudavam a amplificar o som. Mas cada encenador tem de resolver o que fazer com o seu coro e os coros da tragédia grega são normalmente difíceis de resolver. Podem ser uma enorme vantagem ou uma enorme desvantagem.

Por outro lado, agradou-me o actor que fazia de Édipo (Yannis Stankoglou), é difícil comunicar e sustentar a tensão entre segurança e poder absolutos e melancolia auto-destrutiva através da qual o tirano de Tebas acaba por entender, na difícil relação entre hereditariedade e identidade, o peso que a história da sua origem e o seu passado têm sobre o seu presente.

Desagradou-me, sem possibilidade de redenção, a escolha da actriz que fazia de Jocasta. Começou no facto de ela ter exactamente a mesma idade do actor que fazia de Édipo (também não me convence a opção mais tradicional de optar por uma actriz conspicuamente muito mais velha do que Édipo, segundo o que sugere a cronologia do mito haveria talvez uns quinze anos de diferença entre ambos), mas uma Jocasta que parece obviamente mais nova do que o filho é um problema que pode facilmente afundar toda uma produção desta tragédia (e teve para mim, sem dúvida, em certas cenas, um efeito cómico). Numa boa encenação de Édipo o centro da força dramática da tragédia repousa sobre Jocasta, a primeira grande onda de choque e terror que atinge a audiência chega através dela. Ela é mais velha e mais inteligente do que Édipo, ela entende muito antes o que ele não pode entender e ao contrário dele é incapaz de sobreviver à verdade que é colocada diante de si.

Tendo dito tudo isto, tinha-me esquecido da beleza de certos momentos do texto do Sófocles. Isto é particularmente verdade dos passos corais que se seguem às últimas saídas de Édipo de cena. Para mim continua a ser sempre um privilégio que não é bem deste mundo poder ver uma tragédia grega em Epidauro.

 

Oxford, 8-10 de Setembro de 2023

Rei Édipo, Encenação de Simos Kakalas, Festival de Teatro de Atenas e Epidauro, 2023

 

Margarita Liberaki

Penso que devia haver um teste psicológico básico que candidatos a políticos deviam ser obrigados a fazer. Só poderiam passar a candidatos a eleições se fossem aprovados nesse procedimento. Às vezes até para os trabalhos mais básicos uma pessoa tem de ir a pelo menos duas entrevistas em que as suas competências são, normalmente num espetáculo triste e pouco dignificante, dissecadas para medir a sua competência na tarefa que pretende exercer. Conversas, exercícios, interacções de grupo. Tentei uma vez demover-me de um emprego para passar para outro bem mais simples, que me deixaria com mais tempo para plantar morangos e escrever versos, as duas únicas actividades que no fundo me interessam, mas não consegui convencer os entrevistadores a darem-me a oportunidade de dar cabo de uma carreira profissional na qual não estava particularmente investida. O que correu mal neste plano? A segunda entrevista, claro. As minhas prioridades erradas transpareceram todas na segunda entrevista. Pela mesma lógica, haveria muito mandato político absolutamente vergonhoso a que este processo simples nos teria poupado. Se não tens um vocabulário de mais de cinquenta palavras ou se és um sociopata narcisístico com uma personalidade pouco colaborativa, e não lidas bem com discussão e crítica, se não te importa o bem comum, se te agradam ataques verbais gratuitos que se destinam a obliterar uma certa empatia por outras pessoas para explorar divisões internas e/ou externas e incitar o ódio, se não queres saber do sistema nacional de saúde, de ajudar a criar as condições que promovem níveis de acesso elevados a educação e cultura, não devias poder ser candidato a dirigente de um pequeno aquário com um par de peixinhos dourados, quanto mais de um país com um arsenal nuclear. Tudo isto é tão óbvio que não devia sequer chegar a ser controverso.

E, contudo, estou a escrever estas linhas que não servem para nada sob o efeito das imagens, bastante surreais, da reunião de Putin com o seu conselho de segurança, em que ele pergunta a cada um dos elementos se querem dar voz a uma opinião dissonante quanto ao projecto de invadir a Ucrânia ou, como ele lhe chama, defender a Rússia e/ou a Ucrânia, embora nem nessa mentira ele seja particularmente sistemático. Enquanto o vídeo destas imagens passava, a amiga que estava sentada ao meu lado tapou instintivamente os olhos com as mãos na cena em que se vê Putin a pressionar o seu chefe do serviço de espionagem, Sergei Naryshkin, como se ele fosse um menino não muito inteligente com quatro anos de idade, para ele dizer se concorda que a Rússia apoie a independência de Lugansk e Donestsk. O chefe dos espiões parece relutante e genuinamente nervoso. Engana-se e diz que apoia a inclusão destes territórios na Rússia, é pressionado de volta por Putin, que lhe diz que não é isso que ele lhe está a perguntar.

Talvez haja qualquer coisa nos momentos de grande mediocridade moral que nos infantilize enquanto adultos, porque estamos a ser diminuídos e porque reconhecemos esse aviltamento. Estou em crer que qualquer coisa na expressão deste homem trai o facto de que ele reconhece a loucura abjecta deste momento. Putin, no entanto, sentado a grande distância do seu conselho de segurança, chamando-os um a um para declararem a sua aliança a esta ideia de merda e incrivelmente estúpida que é invadir um estado soberano a que boa parte da população da Rússia gosta de chamar de país irmão, com um presidente a duras penas democraticamente eleito e que afinal não é palhaço nenhum, deixou ele próprio de sequer tentar manter a aparência de chefe de estado vagamente democraticamente eleito. O que estamos a ver quando vemos esta cena é, então, o tipo de teatro que lembra um pouco as cenas dos juramentos de gangsters em filmes sobre a máfia, um pouco como notava Shaun Walker, cronista do The Guardian, na sua lúcida análise deste momento. E é uma cena decadente, exceptuando que há mais proximidade entre as figuras que aparecem naquele quadro de Thomas Couture, Os Romanos da Decadência, do que entre Putin e o seu conselho de segurança. Enquanto os romanos da decadência estão todos mais ou menos ao molho e com fé nos deuses, à espera de Alarico ou da próxima orgia, julgados moralmente por um par de filósofos que observam à distância, não se confundindo com os restantes, a distância a que Putin se coloca do seu conselho não é certamente a de um rei-filósofo e serve para lembrar quem é que segura os fios destas marionetas. É também a longa distância da irracionalidade e do oportunismo dos autocratas e dos bullies. É horrendo de ver, além de inestético. Significa que nada do que se vai passar a partir daqui obedecerá a grandes lógicas. Basta pensar que a Ucrânia é um país de quarenta milhões de pessoas e que, mesmo que esta invasão corra espetacularmente bem para Putin (no fundo não correrá bem para muito mais gente), é extremamente caro e difícil oprimir quarenta milhões de pessoas a longo prazo. Esta cena lembra então demasiado Calígula ou Nero e dá mesmo vontade de perguntar onde anda a guarda do pretório.  

            A minha amiga de mãos a tapar olhos que viram, tudo considerado, bastantes coisas, em diferentes continentes do mundo, ao longo de umas quantas décadas, lembrou-me, no entanto, a imagem de outra amiga, há uns anos, sentada numa fila central num pequeno teatro em Oxford, a tapar os olhos com as mãos no final de uma peça que tínhamos ido ver, levada a palco por um grupo de alunos gregos. A peça chamava-se No 10 de Junho e o dramaturgo era Yiorgos Iliopoulos. O texto da peça é baseado num evento histórico de que nunca tínhamos ouvido falar, nem eu nem a minha amiga que é grega, um daqueles eventos tão brutais e tão traumáticos, mas ao mesmo tempo tão remotos, que ficaram enterrados na memória de um século. Distomo era em 1944, e ainda é hoje em dia, uma pacata vila no sopé do monte Hélicon. Fica a duas horas de carro de Atenas e a meia hora de Delfos.  Em 1944, nas imediações da vila, uma coluna de soldados alemães foi atacada pela resistência grega, três soldados alemães foram mortos, num ataque que eles assumiram ter vindo da direcção daquele lugarejo. O que se seguiu foi de uma barbaridade absolutamente atroz. Os soldados alemães tomaram a direcção da vila, com um comandante de apenas vinte seis anos à cabeça, e, na noite de 10 de Junho, assassinaram brutalmente, numa espiral de loucura absoluta e absurda, cerca de 200 pessoas, na sua maioria mulheres, crianças e anciãos. A disputa prolonga-se ainda hoje, em tribunais italianos, gregos e alemães, sobre se o ataque de facto terá partido da vila, a maior parte das evidências sugere que não, e mesmo entrar neste nível de discussão é já um erro repugnante. Assume que é aceitável ou que em algum mundo pode fazer sentido ou ser justificável que alguém armado até aos dentes entre gratuitamente em casa de outra pessoa e a surpreenda para a matar na sua quietude doméstica e indefesa.

O que me leva ao ponto, não particularmente relevante em face do nível de terror deste evento histórico, de explicar porque é que, apesar da audiência daquele teatro se encontrar bastante emocionada no final da peça, a peça me pareceu falhada, com qualquer coisa de uma chantagem emocional predatória e imatura, que diz qualquer coisa, porém, da relação da minha geração, educada no lado pacífico e confortável da Europa, com níveis de violência para os quais a maior parte de nós não tem – e eu, pelo menos, preferia continuar a não ter – uma empatia que permita entender intimamente, com uma clareza que não pode ser esteticizada ou adornada de forma nenhuma, o indizível nível de horror que deu origem à relativa estabilidade social da Europa em que crescemos. Neste sentido, o motivo por que acho que esta peça falha torna-se, então, bastante simples de explicar. Nenhuma das personagens que o dramaturgo coloca em cena chega a ser, em momento nenhum, mais do que uma função da sua própria morte, nunca chegam a habitar qualquer coisa que se pareça com uma individualidade plena, são apenas o que em convenções narratológicas se chama personagens-tipo: o padre da aldeia, que está ali para ser decapitado pelos nazis, ou a rapariga prestes a casar-se que está ali para ser violada por todo o regimento, ou a mulher grávida, cujo destino final, terminados os primeiros quinze minutos da peça, aguardamos com grande desconforto e terror. A instrumentalização que o texto faz das suas personagens acaba por repetir a instrumentalização que os nazis fizeram dos corpos capazes de sentir dor, e das emoções, capazes de serem completamente monopolizadas pelo horror, daquelas pessoas. Todos os textos literários, claro, usam as suas personagens, porque todas elas têm sempre de funcionar a um nível que é puramente retórico, o de passar a mensagem para que a arquitetura desse texto em particular converge, a agenda do escritor. O dramaturgo que escreveu esta peça, Yiorgos Iliopoulos, não é particularmente jovem, mas é aqui autor de um texto que me parece particularmente imaturo. E é-o em parte pela dificuldade de falar complexamente de uma coisa que é particularmente vital que um bom dramaturgo não perca de vista, o facto de que as vidas humanas, as históricas, as ficcionais, a do mais humilde figurante – se o texto não for uma sátira – não podem ser completamente instrumentalizadas pela sua função retórica no texto, tem de haver um equilíbrio qualquer, aquilo que no fundo é a poesia que se encontra nos textos, como existe de resto no mundo real, entre o que é geral acerca das nossas vidas, que é tão transparente nas convenções sociais nas quais vivemos, e o que é único, a forma como uma vida humana não contém mais nada que não exactamente essa vida, o que começa na singularidade de um rosto e continua a manifestar-se em todos os momentos na idiossincrasia de gestos, emoções, maneiras de falar, de responder, dos afectos que cultivamos, dos espaços que construímos e são os nossos e de alguma forma nos expressam, todas essas coisas que explicam a nossa singularidade, o que permite entender indirectamente porque é que o nosso amor pelas pessoas que amamos é singular, porque está vitalmente ligado a essas particularidades. A peça de Iliopoulos falha então, a meu ver, porque ele não consegue nunca mostrar isto. A nossa empatia é manipulada de uma maneira formulaica, que vai simplesmente acumulando o genérico sobre o previsível, de modo que aquele texto nunca se converte no exercício de empatia profunda e radical que um texto que se proponha a falar sobre este tipo de facto histórico tem de ser. Em vez disso, fiquei mesmo a coçar a cabeça e a perguntar-me uma coisa da qual normalmente não duvido: se podíamos ter continuado a escrever poesia depois de Auschwitz.  

Em discussão com a audiência no final da peça, o dramaturgo caiu naquele cliché imperdoável, que nos transporta automaticamente de volta a momentos medíocres em salas de aula de história de adolescências confortavelmente ocidentais, em que a Segunda Guerra Mundial se misturava com a nossa profunda e indiferente urgência mecânica de ouvir a campainha tocar, para voltarmos a ser livres de novo. O cliché era o de que ele tinha escrito aquela peça para a morte daquelas pessoas não ter sido em vão, o que a meu ver expôs outro problema que me pareceu estar patente naquele texto, o de se tratar um pouco de pornografia histórica, da do género que é produzida não para examinarmos com cuidado algo que nos deixa atónitos, mas para nos sentirmos satisfeitos com quão bonzinhos somos.

Digamos então que o massacre de Distomo, a 10 de Junho de 1944, foi completamente em vão e não serviu para mais nada do que tornar o mundo um buraco mais negro e deplorável do que ele precisa de ser e nisso é paradigmático da forma de doença colectiva que todas as guerras são. Temos de nos libertar desta crença de que a memória do terror é profilática e nos converte em testemunhas indirectas e entendidas do que esse terror significa, não converte. Essa pretensão é nociva e errada. A boa historiografia devia era dar-nos a dimensão daquilo que a nossa experiência não pode entender completamente e que se prende com a proporção subjectiva do horror que certos eventos infligem nas pessoas que os têm de viver, que não é, pelo menos ainda, parte da nossa experiência. É o tipo de coisa que explica porque é necessária a dose de empatia que Ésquilo no século V a.C. sentiu pelo exército invasor persa, contra o qual ele próprio tinha combatido, e cuja derrota é o tema de Os Persas. A ficção desse ponto de vista pode ser bem mais eficaz do que a historiografia. Pense-se num filme muito mal recebido à época em que estreou, que nem sequer é bem um filme, é quase uma colecção de apontamentos sobre algo que não pode ser completamente comunicado por um acto narrativo, Alemanha Ano Zero de Roberto Rossellini (1948), passado numa Berlim completamente arrasada pela guerra, que segue a luta pela sobrevivência, e sem redenção, de uma criança.

Alemanha Ano Zero de Roberto Rossellini, 1948

A morte precoce da mais insignificante das criaturas, por exemplo, lembrando um poema de Cesariny de uma extraordinária e estranha dignidade, um rato morto com que nos cruzamos num parque, não nos serve para nada. É apenas e só um invólucro de dor tremenda e sem sentido que não pode servir a ninguém para absolutamente porra nenhuma. A experiência disso é o que um poeta grego, Yiorgos Seferis, definiu, num poema escrito nesse mesmo ano de 1944 que talvez seja de reler com cuidado, pedindo uma expressão emprestada a um verso do Agamémnon de Ésquilo, como a memória da dor que perpetua a dor (μνησιπήμων πόνος). Toda a didática da memória é detestável se o seu propósito é mascarar-se de mecanismo de compensação desonesta por uma perda que deixa no seu lugar uma escuridão total que nunca nada, ninguém, poderá compensar. A morte precoce de pessoas, que é parte fundamental do negócio que uma guerra é, deixa apenas uma dor interminável e um vazio tremendo para quem terá de viver com essa perda. É tudo. E dá vontade de citar aqui um ensaio de Natália Ginzburg em As Pequenas Virtudes, escrito no pós-guerra, em que ela diz que não podemos mentir nem nos nossos livros nem nas coisas que fazemos, que isso era a única coisa decente que tinha saído da guerra que a sua geração tinha acabado de viver.

Margarita Liberaki

Em 1946, a então muito jovem romancista grega Margarita Liberaki publicou o seu segundo romance, Τα Ψάθινα Καπέλα, cujo título à letra significa Os chapéus de palha, mas que em inglês foi traduzido (por Karen van Dyck) como Three Summers e republicado em 2019 pela NYRB. O romance é sobre três irmãs que crescem numa casa num subúrbio de Atenas ao longo de três verões. É um romance sobre a passagem para a idade adulta, sobre a relação entre as irmãs e a mãe e a tia, sobre a ausência misteriosa de uma avó polaca, que desapareceu um dia sem deixar rasto ou dar explicação, sobre a curiosidade que nos faz amar estar vivos. Contra o fundo do que é o mundo encantado do verão, as colheitas crescem, constrói-se um observatório para olhar as estrelas, há longas caminhadas, surgem os primeiros amores, os amigos que chegam e partem, encontros e conversas intermináveis e há segredos que se revelam à medida que as irmãs passam de raparigas a mulheres. O centro da narrativa é a irmã mais nova, Katerina, uma personagem maravilhosa e louca, capaz de no final fazer algo verdadeiramente inesperado e surpreendente, que nos deixa de lágrimas nos olhos, e que muda mesmo o mundo, sugere outro modo de viver. O que é mais surpreendente para além desse gesto, que rejeita vitalmente perpetuar uma versão patriarcal do mundo, é que não há qualquer alusão ao período da guerra em que o romance foi escrito, exceptuando num ou noutro pequeno pormenor (há uma família inglesa que parte e regressa mais tarde) e numa longa sequência onírica que tem qualquer coisa das sequências oníricas desenhadas por Dalí que se podem ver num filme que estreou um ano antes de Three Summers ser publicado, Spellbound de Hitchcock. Tirando estes pormenores oblíquos, Margarita Liberaki exclui completamente esse evento histórico da sua narrativa, é como se ele não existisse e não tivesse acontecido. A carreira subsequente de Liberaki enquanto romancista acabaria por clarificar que este gesto é mais da ordem de uma preferência por arcos narrativos que são na sua totalidade metáforas fortes e eficazes sobre os contextos históricos em que ela escreveu do que o tipo de escapismo fácil que viria de uma fraca consciência política ou histórica. Margarita Liberaki é uma grande romancista. O seu romance sobre a guerra civil grega, O Outro Alexandre, é construído a partir de uma ideia mirabolante, sobre um pai que tem duas famílias, e dá aos filhos exactamente os mesmos nomes, até que os filhos supostamente legítimos descobrem a existência dos irmãos, num crescendo de paranoia que terá consequências para todos.

Tenho-me perguntado muitas vezes o que é que em Os Chapéus de Palha se torna tão conspicuamente um comentário ao período histórico em que ele foi escrito. E é isto. Os Chapéus de Palha enumera cuidadosamente todas as coisas que uma guerra ameaça e destrói, tudo o que nela pode ser perdido e é vital para uma vida bem vivida, tudo o que é digno do nosso amor, do nosso cuidado e deve ser protegido a todo o custo, e na verdade acaba por sê-lo neste romance a partir da sua evocação e da sua nomeação em aparência perfeitamente natural mas no fundo insistente e sistemática. Nós, que felizmente não sabemos o que é o horror de uma guerra, conhecemos afinal essas coisas demasiado bem. É para as protegermos que a memória histórica devia servir, não para termos a pretensão de que o horror de uma guerra serve para outra coisa qualquer que não mutilar e destruir pessoas e que por isso o espetáculo horrendo de tanques a avançar sobre carros de civis, numa cidade até há apenas alguns dias pacífica, nos poderia dar jeito para alguma coisa em termos da nossa consciência histórica ou moral.

Os Persas de Ésquilo, Epidauro, Teatro Nacional da Grécia, 25 de Julho de 2020 

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O teatro de Epidauro é o elemento central de um complexo arqueológico dedicado ao deus da medicina, Asclépio, e é de todos os teatros que nos chegaram da antiguidade o mais bem conservado: a estrutura e a acústica permanecem intactas, como, segundo nos conta Pausânias, as sonhou o arquitecto Policleito no final do século IV a.C. Os doentes que convalesciam no santuário eram encorajados a ver teatro como parte da sua terapêutica. No poema “Out of the bag” do livro Electric Light, Seamus Heaney alucina que é visitado por Higeia, deusa da saúde, em Epidauro. O espaço é representado como uma espécie de fantasmagoria que convoca uma memória de infância, uma ideia de fábrica do ser, um teatro de retorno à origem, demasiado quente, um pouco doentio, fértil. Em 1988, num texto lido na Sorbonne 13 anos antes de o livro de Heaney ver a luz do dia, e hoje coligido como “Arte Poética V,” Sophia narra uma experiência em Epidauro, que existe como espécie de regra crucial da sua poética:

 

            Um dia em Epidauro – aproveitando o sossego deixado pelo horário de almoço dos turistas – coloquei-me no centro do teatro e disse em voz alta o princípio de um poema. E ouvi, no instante seguinte, lá no alto, a minha própria voz, livre, desligada de mim.

            Tempos depois escrevi estes três versos: 

            A voz sobe os últimos degraus
          Oiço a palavra alada impessoal
            Que reconheço por não ser já minha.

            Há em Epidauro a impressão de estarmos perante algo que nos ultrapassa e que nos liga profundamente à origem (Heaney) e à passagem do tempo (Sophia), talvez porque o presente e um passado muito antigo se toquem neste espaço, num amplo parque hoje adornado de ruínas e pinheiros, onde sob o calor violento nos passeamos e nos podemos encontrar, talvez como explica Sophia com algo que, libertando-nos, nos devolve a nós próprios alterados. Qualquer coisa como um encontro com a profundidade do ser. Isto não é tanto uma explicação um pouco esotérica de um lugar difícil de explicar em palavras, mas antes uma ilustração do que as palavras dos poetas podem acrescentar ao nosso entendimento de um espaço para além do convívio com manuais de arqueologia e guias de viagem.

Na contemporaneidade, o Festival de Atenas e Epidauro acontece no pico do verão. Durante as representações em Epidauro o canto das cigarras enche a atmosfera, mistura-se e compete com as vozes das centenas de pessoas que compõem a audiência, uma amálgama de gregos e turistas. É sempre o coro das cigarras que ganha no fim da peça e existe como o fio condutor que nos resgata da tensão constante em que o acto de ver uma tragédia nos mantém. É esse o som, acho, que no final nos devolve à realidade, que assinala que ainda somos parte do mundo. Há no meio da algazarra um horizonte da mais profunda inquietude: a iluminação artificial necessária à representação é um acidente que apenas temporariamente afasta a escuridão da noite e essa escuridão é o mais adequado pano de fundo contra o qual ver tragédia. Não há talvez uma única tragédia que nos tenha chegado da antiguidade que não seja acerca de um combate contra alguma espécie de força obscura: a nossa desmesura, a dos outros, a das circunstâncias, a cólera dos deuses, a força opressiva das leis sob as quais vivemos ou sob as quais nos querem fazer viver. A tragédia é uma arte de questionamento de coisas impostas e recebidas, feita de tenções e negações, de gestos de não aceitação, desobediência e revolta. É também por isso que os atenienses viam nela uma expressão vital da sua participação cívica. Não é por nada que o seu declínio parece acompanhar o da polis ateniense. A melhor definição que conheço, dada na contemporaneidade, do que era o trabalho de um tragediógrafo, aparece num poema de Yiorgos Seferis (Nobel da Literatura em 1963), sobre Eurípides:

 

Euripides the Athenian

 

He grew old between the fires of Troy
and the quarries of Sicily. 

He liked sea-shore caves and pictures of the sea.
He saw the veins of men
as a net the gods made to catch us in like wild beasts:
he tried to break through it.
He was a sour man, his friends were few;
when his time came he was torn to pieces by dogs.

 

Seferis (tradução de Edmund Keeley e Philip Sherrard)

 

 

No passado 25 de Junho o Teatro Nacional da Grécia estreou a sua peça em Epidauro pela primeira vez na sua história também em directo online, numa tentativa de divulgar o festival e contrariar aquilo que a câmaras não esconderam: como seria de prever, uma audiência muito abaixo do habitual, que de outro modo é o espelho de uma crise profunda que vai alterar radicalmente a face de certas artes e provavelmente vai forçar certos sectores e instituições a uma reinvenção difícil e radical. Basta pensar que em Londres o híper-turístico Globe Theatre está à beira da falência.

Os Persas de Ésquilo é uma peça que sobrevive há várias centenas de anos. As palavras que compõem o texto foram escutadas pela primeira vez em cena em 472 a.C., entre os atenienses. O corego, isto é, o cidadão que custeava a despesa do coro, foi Péricles, o lendário estadista da idade de ouro da Atenas clássica. Os Persas é a primeira peça de Ésquilo que nos chega, embora a sua carreira tivesse começado um pouco mais cedo. É uma peça bastante excepcional: o seu tema não são os mitos que para os tragediógrafos foram muitas vezes uma segunda língua a partir da qual falavam do seu próprio tempo, mas um acontecimento contemporâneo, no qual Ésquilo esteve envolvido, que era para ele um assunto pessoal e um facto da sua biografia: a guerra contra os persas, que ocupou a primeira metade do séc. V a.C., e chega ao fim com os gregos vitoriosos, sendo o evento principal que precipita e permite a hegemonia de Atenas clássica sobre as outras cidades-estado da Grécia. Ésquilo combateu em Maratona em 490 contra o exército de Dario e muito provavelmente de novo em 480 em Salamina, o principal evento histórico a que a sua peça se refere, e perdeu um irmão na guerra. Ésquilo devia ter consciência de que um dramaturgo escrever sobre a guerra contra os persas podia custar caro, literalmente. Frínico, pouco depois de 494 a.C., levara a cena uma peça cujo tema era o saque de Mileto. Esta peça perdeu-se, mas sobre ela diz-nos Heródoto que os atenienses multaram Frínico em mil dracmas pelo atrevimento de os recordar dos seus próprios problemas.

A relação visceral dos gregos com o teatro é algo não está de todo circunscrito à antiguidade. A formação daquilo que é o carácter cultural da Grécia contemporânea pode ser explicado em torno de um evento que ficou conhecido como a Orestiaka. No outono de 1903 o Teatro Nacional, então acabado de fundar, leva a cena uma versão da Oresteia em demótico (a língua vernácula, por oposição à norma culta do katharevousa, a norma culta e uma reconstituição próxima do grego antigo) da autoria de um dos poetas nacionais da Grécia, Kostis Palamas. Protestos e confrontos, sobretudo de estudantes, entre os apoiantes e os opositores da ideia de ser possível encenar uma versão moderna e em demótico de uma tragédia antiga duraram vários dias e resultaram num morto. (Questões de base filológica na Grécia são outra coisa.)

            Os Persas levados à cena em Epidauro no passado dia 25 de Julho com encenação de Dimitris Lignadis, não são certamente material que possa gerar este tipo de controvérsia, mas também não são exactamente um objecto comercial facilmente descartável. Tomemos como exemplo duas críticas feitas à encenação que não podiam ser mais diametralmente opostas. Natalie Haynes no The Guardian dá-lhe quatro estrelas e chama à peça um triunfo de empatia, Louiza Arkoumania, na revista grega Lifo, dá-lhe uma estrela e arrasa a peça pela falta de empatia em relação aos persas, e, de facto, pelo aparente apagamento do tipo de pena e terror que se deve sentir por uma tão rápida e catastrófica mudança de fortuna como a que é representada na peça. No centro do texto estão o medo e a tensão constantes de Atossa, rainha do poderoso império persa, à espera de notícias do filho, que partira numa expedição contra os gregos, à cabeça de um exército que esvaziara a terra da Pérsia, assim nos diz o texto de Ésquilo, da flor da sua juventude. Todos os homens em idade militar haviam partido com ele, deixando apenas mulheres, anciãos e crianças para trás. O coro agita-se também ele à espera de notícias. O fantasma de Dario, numa cena que séculos mais tarde ecoaria um pouco em Shakespeare, é evocado em busca de conselho apenas para declarar o exército completamente perdido (não em pequena parte por causa da sua conduta impiedosa, saqueando estátuas de deuses e queimando templos), prevê o desastre que viria a seguir a Salamina, Plateias, e confirma que o exército dos Persas está para lá de salvação. A peça termina com a chegada de Xerxes, em farrapos, com as roupas manchadas de sangue.

            A cenografia, o guarda-roupa e, acima de tudo a música (que vem com alguns ecos da fértil tradição da música da liturgia ortodoxa grega, provavelmente ligada por uma longa linhagem de evolução criativa à tradição onde se originou a própria tragédia grega), nesta encenação de Lignadis são excelentes. Atossa é o centro da peça e é aqui que a controvérsia começa. Comecemos pelos actores, Lidia Kornodiou, a atriz que dá corpo a Atossa, foi ministra da cultura do Syriza, repetindo um feito que na história da Grécia parecia reservado apenas a Melina Mercouri, é uma das mais destacadas actrizes gregas, com uma longa e venerável carreira no teatro e na representação de teatro antigo. O centro da peça parece-me, no entanto, não ser tanto Atossa quanto o mensageiro, interpretado por Argiris Pantazaras. O guarda-roupa é incrivelmente elegante com ecos de alta costura, as camisas do coro e do mensageiro estão bordadas com excertos do texto de Ésquilo. A peça alterna em certos pontos entre o grego antigo e o grego moderno, e abre com o párodo em grego antigo, o que expõe perante a nossa visão e audição o facto de que Ésquilo é um dos maiores poetas que alguma vez viveu.

            Os problemas de Louiza Arkoumania com a peça são relevantes para pensar sobre a performance e começam com o guarda-roupa. Ela diz-nos que os actores parecem modelos de alta costura, o que é desadequado para um povo cujo exército acaba de sofrer uma pesada derrota (esta objecção é arqueologicamente errada, mas bastaria atentar no texto de Ésquilo, que constantemente chama a atenção para o facto de os persas serem fabulosamente ricos; o seu cuidado em termos de aparência era, de resto, famoso no mundo antigo). Que esta é a primeira de muitas falhas, porque é um dos primeiros obstáculos à nossa empatia, o que em parte está certo, o tratamento que Ésquilo faz dos persas é justo e nobre, numa lógica de nos dizer que a boa sorte pode terminar para qualquer um, e que a catástrofe que coubera aos persas pode bem mais tarde tornar-se a dos gregos, ninguém é invulnerável à mudança da fortuna. Mas há de facto algo de intrinsecamente desagradável em Atossa que em parte obscurece esta empatia, vestida de negro, há algo nela que nunca chega completamente a captivar-nos, ao contrário do que sucede em Ésquilo. Esta Atossa tem qualquer coisa de Lady Macbeth e, a partir daí, um pouco talvez de Melania Trump. Outros aspectos um pouco menos bem conseguidos (a expressão mais adequada será mesmo um pouco palermas) incluem o facto de que Atossa repete três vezes a pergunta acerca de quem é o déspota que governa sobre os gregos, sendo a democracia a mais importante diferença cultural entre persas e helenos, para que o mensageiro finalmente responda que eles não são servos nem súbditos de homem nenhum, quando no texto de Ésquilo esta pergunta é posta apenas uma vez (verso 241); outro desses aspectos menos bem conseguidos é o adereço da mini-Acrópole, constantemente acesa em palco, uma espécie de Acrópole-candeeiro para hipsters, que não convence como símbolo e arrasta para a sua pequenina escala uma cenografia de outro modo impecável.

Mas textos para performances não são evangelho, felizmente, e talvez a resistência a uma empatia completa que a encenação de Lignadis parece evocar cumpra uma função interessante. Os Persas é um texto bastante adequado ao nosso corrente contexto, é uma peça que fala de uma mudança abrupta de uma certa realidade política, da destruição de uma multidão de gente, da perda de vidas individuais que são insubstituíveis e vão deixar um trauma duradouro na memória colectiva. É também uma peça sobre um chefe de um vasto território que toma todas as decisões erradas, por ganância, soberba e falta de imaginação (para Xerxes seria inimaginável que a Grécia pudesse resistir a um tão poderoso exército). O tempo em que a peça decorre, centrado na psicologia da espera de Atossa e do coro, é o tempo do medo e da antecipação, aquele ponto em que a calma terminou e em que se espera apenas a confirmação da tempestade. No contraste entre o perfil de Xerxes enquanto governante e o de Dario, cujo fantasma é evocado pelo coro e Atossa (Dario, talvez a personagem com o guarda-roupa que menos me convenceu, faz lembrar o tio-avô que ainda não desistiu de se vestir para o Halloween, mas bem interpretado por Nikos Karathanos), estabelece-se a diferença entre um rei ponderado, cujo resultado fora um reinado próspero e feliz, e a impetuosidade e incompetência, ambas fatais, do jovem Xerxes.

            Mas é talvez por aqui que se pode entender porque parecem estes governantes persas de 2020 um pouco menos dignos da nossa simpatia do que o terão sido para o próprio Ésquilo, que vira de demasiado perto a sua ameaça, o terror e a destruição que eles trouxeram consigo. O aspecto mais desafiador e interessante da encenação de Lignadis é o final. No texto de Ésquilo, na cena final, o coro junta-se ao lamento de Xerxes, na única aparição em cena do jovem rei. Esta é uma cena difícil de encenar e traduções deste passo normalmente têm de ser muito cuidadas (em português de Portugal a tradução que temos inclui a opção absolutamente ridícula por uma versão que inclui um verso onde se lê “geme para me agradar,” que, não sendo infiel à letra, costumava no entanto convidar a risota geral de estudantes de tragédia grega). O corte de Lignadis com Ésquilo aqui é radical. Os membros do coro dos persas mantêm-se em silêncio, sentados atrás do rei, numa posição que lembra mais juízes num tribunal do que um séquito subserviente. A sua posição lembra outro passo magistral de Ésquilo, noutra tragédia, em que ele fala dos deuses ferozmente sentados ao leme. O coro, composto afinal apenas dos velhos que ficaram na Pérsia, muitos deles, infere-se, pais dos jovens mortos na expedição, é capaz da contenção que falta a Xerxes (Argiris Xafis). E é como se nos dissesse: já tivemos que baste de governantes que se enchem de pena de si próprios e que não aceitam a responsabilidade pelas suas péssimas decisões.  

Se eu achei a encenação de Lignadis lendária e perfeita, digna de inspirar uma Orestiaka? Claro que não. Mas esta cena final quase que dá vontade de lhe perdoar até a Acrópole dos pequeninos.

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Tatiana Faia

Oxford, 28 de Julho e 9 de Agosto de 2020