Édipo revisitado

Rei Édipo em Convent Garden, Encenação de Max Reinhardt, 1912

Este ano o Festival de Atenas e Epidauro encerrou com uma representação do Rei Édipo de Sófocles, levada a cena pelo actor e dramaturgo grego Simos Kakalas. Talvez poucos sítios sejam tão propícios para encenar esta tragédia como Epidauro e não apenas porque para se chegar de Atenas a Epidauro se passa pelo lugar onde no mito Édipo cresce, Corinto. Há qualquer coisa de muito comovente em saber que o complexo arqueológico de que o teatro de Epidauro faz parte era na antiguidade um santuário dedicado ao deus Asclépio e que assistir a representações teatrais era parte da terapia. Talvez em nenhum sítio arqueológico como ali pareça tão visível que os gregos intuíram a existência do subconsciente e a sua força (sobre isto vale a pena revisitar o livro de E.R. Dodds, The Greeks and the Irrational). Numa das inscrições deixadas no santuário por um dos pacientes ele agradece a Asclépio ter-lhe enviado o sonho que o curou. 

Em Epidauro, então, o anfiteatro está rodeado pelo parque arqueológico, que não sendo visitado de noite, não possui iluminação visível. Um dos aspectos mais marcantes de ver uma peça neste espaço é o de que, à medida que a noite cai (as peças tendem a ser representadas a partir das 21.00), o horizonte fica imerso no escuro, o único ponto de luz que se avista da plateia é o palco. De todos os dramas gregos aquele que é definitivamente sobre escuridão é o Rei Édipo de Sófocles. É isso que ver esta peça no mais bem preservado dos teatros do mundo antigo lembra. Na verdade, é um texto sobre diferentes camadas de escuridão: a que vem do passado, do desconhecimento da própria história, e finalmente a que advém de um conhecimento absoluto de uma verdade que, literalmente, faz com que Édipo se cegue no desenlace. É, em certa medida, uma peça sobre a violência implacável do mais ambivalente dos deuses gregos, Apolo, responsável pela peste que assola Tebas e que não a deixa desaparecer até que o assassino de Laio seja descoberto. Nenhum deus dos gregos é capaz de tanta harmonia e tanta crueldade como Apolo. Em 1983 Bernard M. W. Knox publicou a sua leitura existencialista do teatro de Sófocles, The Heroic Temper: Studies in Sophoclean Tragedy, que é também um estudo do desenvolvimento da ideia de protagonista no teatro antigo. Knox nota a dada altura que em nenhum dos tragediógrafos os deuses são tão cruéis como em Sófocles. Penso que isto é muito verdade.

Oliver Taplin escreveu, na introdução à sua tradução do texto (publicada pela Oxford World Classics em 2015, Oedipus the King and Other Tragedies), que a peça é um castelo de cartas. É uma boa imagem. Rei Édipo é uma tragédia, em parte, sobre a instabilidade da sorte, sobre a vertigem do seu lado ascendente e da descida. Quando, primeiro em A Interpretação dos Sonhos e, em menor escala, em Totem e Tabu, Freud teoriza sobre Édipo, é sobre a profundidade do desejo humano, do seu papel na formação de uma personalidade, e também sobre a violência do subconsciente que ele está a falar. Na verdade, não acredito que haja uma audiência contemporânea que consiga ver Rei Édipo completamente fora da sombra da leitura de Freud. E a figura continua a ser relevante para lá desse momento na história da sua interpetração. Depois de Freud e Lacan, Deleuze e Guattari revisitariam Édipo (em o Anti-Édipo) à luz de um sistema capitalista, observando o quanto ele é problemático se visto, ao mesmo tempo, enquanto figura estrutural e imaginária.

A leitura que Freud faz de Sófocles foi bastante atacada por classicistas. Destas leituras talvez a mais influente seja a de Jean-Pierre Vernant (em “Édipo sem complexo,” um texto publicado em 1972 no livro Mythe et Tragédie em Grèce Ancienne), que ataca a argumentação de Freud a partir da ideia de que ela não é correcta do ponto de vista da psicologia histórica, mas sabemos hoje que Freud compreendia mais da cultura teatral ateniense do que aquilo que outrora se pensou. Vale a pena lembrar que o excerto de grego antigo que Freud traduz no exame de admissão à universidade é um excerto do Édipo de Sófocles.

De outro modo, aspectos biográficos não são irrelevantes para pensar o que Édipo significava para Sófocles e o que ele significava para Freud. Alguns classicistas que estudaram esta peça e que especulam que ela data da década de 30 do séc. V a.C. acreditam que, além da peste ser uma alusão à epidemia que dizima uma parte da população de Atenas nessa década, o quanto o texto está obcecado com a relação entre hereditariedade e o estatuto de Édipo enquanto rei de Tebas (o termo normalmente traduzido por rei é uma má tradução da palavra por que ele é nomeado no grego, tyrannos, que, ao contrário do outro termo para rei, basileus, pressupõe que ele não tinha herdado o trono por via hereditária, mas tyrannos não possuía para os gregos a ressonância negativa que tem hoje) reflecte um problema político da própria Atenas, o facto de que Péricles, o principal estadista ateniense da época clássica, perdera o único filho legítimo para a peste e adopta, na sequência, o filho ilegítimo que tinha com Aspásia, a sua amante estrangeira, para que ele se pudesse tornar cidadão da polis. Estudiosos de Freud, por outro lado, especulam que ele talvez nunca tivesse pensado no Édipo como um dos mitos arquetípicos do desejo e da perversão humanas se não tivesse um meio-irmão (filho de outra mãe) com uma idade extremamente próxima, como seria o caso de Édipo com Jocasta, da sua própria mãe.

Édipo é então uma peça sobre diferentes camadas de escuridão e por isso também sobre o que do passado regressa dessa escuridão, exige ser interrogado e resolvido porque, como nota o coro no início da tragédia, uma epidemia assola a cidade, enviada por Apolo por causa do homicídio do rei anterior, e é preciso encontrar o criminoso que sobre ela trouxe a maldição do deus. Certeza e auto-confiança, desorientação, paranoia, e finalmente o terror da catástrofe são o espectro de emoções que Édipo percorre à medida que a tragédia avança. De todas as personagens trágicas nenhuma demonstra tão perfeitamente como Édipo, no corpo e no caminho que o vimos percorrer, um fragmento de um outro verso de uma tragédia perdida de Ésquilo, aquele em que Aquiles diz que se sente como a águia que vê que a seta que o trespassa tem por adorno uma pena da própria asa.  É este, no fundo, o resumo mais eficaz do enredo da peça.

Aristóteles devia amar esta tragédia e considerava-a o exemplo mais perfeito de uma tragédia grega e isso talvez seja porque a sua progressão é tão lógica quanto um silogismo. O mesmo talvez não possa ser dito do sentimento que os atenienses contemporâneos de Sófocles experimentaram ao vê-la. Qualquer coisa nela os deve ter inquietado, e talvez irritado, profundamente. Sabemos que de todas as peças de Sófocles esta é a única que não vence o primeiro prémio no festival das Dionísias. O mito de Édipo estava, de outro modo, bem estabelecido no imaginário ateniense e helénico. Em 467 a.C. Ésquilo levara a cena uma trilogia cujo tema é o mito de Édipo (as tragédias que compunham essa trilogia eram Laio, Édipo e a única peça que se conservou, Sete contra Tebas, o epílogo era um drama satírico intitulado Esfinge) e antes disso havia um poema épico, Edipódia, dedicado a Édipo.

No imaginário moderno a peça é tabu durante bastantes séculos. Datará do Renascimento a ideia, talvez mal concebida, de que ela é sobre hamartia, um erro trágico, o que tende a enfatizar a responsabilidade moral e a hybris de Édipo, mas o que ele tenta fazer ao sair de Corinto é evitar aquilo que conhece do seu destino, com o conhecimento do futuro que lhe é dado por Apolo, o que leva Jean-Pierre Vernant a dizer, contra Freud, e talvez não inteiramente em erro, que Édipo não sofre do complexo de Édipo. Rei Édipo, nesse sentido, é uma peça em grande parte sobre a impossibilidade de controlar o destino, sobre o papel da sorte na possibilidade de viver uma vida bem-vivida. Talvez Aristóteles esteja de facto certo sobre a peça ser sobre catarse, sobre a passagem através do fogo de uma destruição irreparável para a sua terrível aceitação, e também sobre aquilo que o amigo que foi comigo ver a peça, o classicista (e ao contrário de mim de facto especialista em teatro antigo) Roberto Morales Salazar, descreveu como a necessidade de ir ao teatro para chorar.

É só nas duas últimas décadas do século XIX que a peça se torna popular, ao ser repetidamente representada em Paris pelo brilhante actor Jean Mounet-Sully, recordado por Stravinsky pela sua atenção maníaca a pormenores historicizantes. É decisivamente alicerçada no imaginário do modernismo inglês por volta de 1912, quando Max Reinhardt a encena em Convent Garden em Londres a partir de uma tradução do lendário classicista australiano Gilbert Murray, professor de grego em Oxford. É, no entanto, outra encenação de Édipo feita por Reinhardt, um pouco mais cedo em Berlim, a partir de uma versão de Hugo von Hoffmannstahl, em 1910 (na versão que sabemos que Freud viu, embora especulemos que terá também visto a de Sully), com cenário e coro monumentais, que mudam a história do teatro no Modernismo, e também a história da relação deste período com a tragédia grega. A escolha de actor principal, talvez demasiado jovem para representar o papel à data, Alexander Moissi, parece ter criado uma inesperada intensidade dramática. A figura de Édipo foi mais tarde revisitada por T.S. Eliot, Cocteau e André Gide, entre outros.

O desconforto que o Édipo de Sófocles nos causa é inversamente proporcional ao conforto causado pela progressão perfeita do seu edifício lógico: vemos com toda a ironia a catástrofe desenrolar-se à nossa frente, mas enquanto audiência estamos confortáveis porque está a fazer todo o sentido. Isto é muito grego. Mas ver Édipo é observar um cenário teatral a ser lentamente desmontado diante dos nossos olhos, o teatro da vida de um homem: Édipo, alguém capaz de uma violência sem limite, de matar um rei por uma ofensa numa encruzilhada, mas também o mesmo homem que fugira de casa em Corinto para evitar a profecia escutada em Delfos, que dizia que ele mataria o pai e se casaria com a mãe. A peça começa com o que está à superfície, com um rei preocupado diante dos seus cidadãos, com uma história anterior de investigador bem sucedido (é afinal Édipo quem decifra o enigma da esfinge) e que agora tem de descobrir quem é o assassino do rei anterior, e camada sob camada vemos Édipo afundar-se até se converter noutra pessoa, vemo-lo mudar e mudar de novo com a presença de Jocasta e de Creonte, até chegarmos àquela cena em que ele sugere que o único escravo que testemunhou o homicídio de Laio seja torturado (a maior parte dos estudiosos da peça notam o quanto isto é aberrante, em toda a tragédia grega, tanto quanto me lembro, há apenas outra cena em que um escravo quase é torturado, no Orestes de Eurípides, pelo imaturo e desesperado Orestes).

Achei que havia na encenação de Simos Kakalas algumas intuições óptimas e algumas decisões difíceis de explicar. Por exemplo, o facto de que todo o elenco da peça está vestido de negro e de modo sóbrio comunica de um modo inteligente a atmosfera de antecipação assustada e de luto que caracteriza a psicologia do coro. E a entrada do coro em cena talvez tenha sido uma das melhores entradas de um coro trágico em cena que observei em muito tempo. Um a um os actores vestidos de negro foram entrando em palco, segurando cada um a sua máscara. Simples e belo. Por outro lado, as máscaras pareceram-me uma má escolha por mais do que um motivo, a começar pelo motivo prático do enorme desconforto que devem ter causado aos actores num calor de 40 graus. Kakalas comentou esta decisão dizendo que queria que as máscaras fossem todas iguais, e que todos os actores as usassem (incluindo creio que em certos pontos Creonte e Édipo que se juntam ao coro), para dar a noção de que todos no fundo são iguais dentro da hierarquia da peça, isto é, dentro do que ela significa, que nem um rei está a salvo de um golpe particularmente cruel do destino. Esta linha argumentativa a mim parece-me talvez ingénua. Uma grande parte da tensão que sustenta a peça é o facto de que Édipo é um autocrata há um longo tempo no poder e, como se vai ver na atitude que ele adopta perante o coro e sobretudo perante Creonte, o irmão de Jocasta de quem ele desconfia porque o vê como um rival, é o representante de uma sociedade extremamente hierarquizada, e alguém que não é inteiramente imune à paranoia que o desejo de se manter no poder normalmente inspira em quem está habituado a ter o controlo.

Édipo, não é, definitivamente, igual a toda a gente. E o seu infortúnio também não o torna igual aos outros, o segredo que explica a sua origem é um golpe particularmente cruel, poucas tragédias são tão cruéis para com a sua personagem principal quanto o enredo de Rei Édipo o é para Édipo. Não me parece que Édipo seja então uma peça cujo objectivo do seu imaginário moral seja o da humildade para fins de igualdade social perante a catástrofe, não sei de resto o que pode vir dessa ideia que não me pareça mesquinho ou opressor. Esta noção parece-me correr o risco de obscurecer o facto de que apesar de tudo é Édipo quem vê, e escolhe ver, a verdade que o destrói e que há nele a lucidez de tentar chegar a essa verdade, ainda que isto aconteça a partir de um lugar de poder e privilégio, o seu triunfo, a verdade que ele acaba por descobrir, é também a sua destruição. (Sófocles é o grande tragediógrafo das conquistas amargas.) Esta noção parece-me ainda reduzir Édipo de outra forma, a sua identidade não se circunscreve inteiramente ao golpe que o destrói e sabemos que isso é particularmente verdade para Sófocles, que regressaria à figura de Édipo na sua última obra-prima, o estranhíssimo Édipo em Colono, uma peça sobre um Édipo zangado que amaldiçoa Tebas e vem morrer à aldeia (subúrbio) de Atenas de onde o próprio Sófocles era oriundo. A polis ateniense, talvez disfarçada de Tebas para os propósitos de Sófocles, por outro lado era, como em certo sentido o é a sociedade ocidental em que vivemos, um lugar profundamente desigual, em nenhuma parte isso é tão visível nesta peça quanto na angústia do coro. Parece-me uma oportunidade desperdiçada mascarar – literalmente – isso.

As máscaras, que supostamente trariam igualdade porque são todas iguais, por outro lado, como comentava o amigo que viu comigo a peça, desumanizam o coro, que é talvez um dos coros mais humanos de toda a tragédia clássica: é um coro devastado por uma doença que paira sobre a cidade, que carrega consigo uma memória da história anterior de Tebas, que está preocupado com a sobrevivência da comunidade a que pertence e que em muitos sentidos é mais inteligente do que Édipo. É uma comunidade com vários rostos, com múltiplas vozes. O facto de que Kakalas resolveu que os seus autores não iam usar microfone no espaço do anfiteatro sabotou ainda mais o coro, o material das máscaras tornava difícil de ouvi-los e sabemos que não era esse o caso com o material de que eram feitas as máscaras na antiguidade, que ajudavam a amplificar o som. Mas cada encenador tem de resolver o que fazer com o seu coro e os coros da tragédia grega são normalmente difíceis de resolver. Podem ser uma enorme vantagem ou uma enorme desvantagem.

Por outro lado, agradou-me o actor que fazia de Édipo (Yannis Stankoglou), é difícil comunicar e sustentar a tensão entre segurança e poder absolutos e melancolia auto-destrutiva através da qual o tirano de Tebas acaba por entender, na difícil relação entre hereditariedade e identidade, o peso que a história da sua origem e o seu passado têm sobre o seu presente.

Desagradou-me, sem possibilidade de redenção, a escolha da actriz que fazia de Jocasta. Começou no facto de ela ter exactamente a mesma idade do actor que fazia de Édipo (também não me convence a opção mais tradicional de optar por uma actriz conspicuamente muito mais velha do que Édipo, segundo o que sugere a cronologia do mito haveria talvez uns quinze anos de diferença entre ambos), mas uma Jocasta que parece obviamente mais nova do que o filho é um problema que pode facilmente afundar toda uma produção desta tragédia (e teve para mim, sem dúvida, em certas cenas, um efeito cómico). Numa boa encenação de Édipo o centro da força dramática da tragédia repousa sobre Jocasta, a primeira grande onda de choque e terror que atinge a audiência chega através dela. Ela é mais velha e mais inteligente do que Édipo, ela entende muito antes o que ele não pode entender e ao contrário dele é incapaz de sobreviver à verdade que é colocada diante de si.

Tendo dito tudo isto, tinha-me esquecido da beleza de certos momentos do texto do Sófocles. Isto é particularmente verdade dos passos corais que se seguem às últimas saídas de Édipo de cena. Para mim continua a ser sempre um privilégio que não é bem deste mundo poder ver uma tragédia grega em Epidauro.

 

Oxford, 8-10 de Setembro de 2023

Rei Édipo, Encenação de Simos Kakalas, Festival de Teatro de Atenas e Epidauro, 2023

 

Os gatos de Atenas

Quando chego a Atenas dou a ouvir a um amigo uma canção que Chico Buarque escreveu em 1976, “As mulheres de Atenas.” Traduzo-lhe a letra às três pancadas, por baixo da voz de Chico, à pressa. Ele escuta fascinado. Comentamos que alguns versos parecem datados, a começar pelos primeiros: “Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas/ Vivem pros seus maridos, orgulho e raça de Atenas,” mas até isso é complicado e discutível. As mulheres de Atenas na canção de Chico são um exemplo de estoicismo, força, paciência, mas os seus homens, à medida que a canção os descreve, são o contraponto, o exacto oposto, bebem em excesso, e ocupam-se da guerra, e deixam-nas à espera enquanto se vão encontrar com outras mulheres, e elas parecem aceitar tudo isso com um orgulho indiferente. O seu orgulho complica ou não a letra? E que mulheres de Atenas são estas? De quando? Provavelmente as clássicas, mas podiam facilmente ser as de hoje, ou as da história da Grécia recente, aquelas mulheres que bordam em longas quarentenas, enquanto os homens desaparecem para ir para a guerra. Contra quem? Não sabemos. Todas as personagens nesta canção são personagens-tipo. De Chico Buarque passo para Elis Regina e para aquela canção em que ela balança vulnerabilidade, dança e desequilíbrio, “Dois p’ra, dois p’ra lá.” Lembro-me enquanto tocamos a canção que o meu amigo tem as portas das varandas do seu apartamento todas abertas, e que todo o bairro estará agora a sofrer esta minha introdução intempestiva e desordenada a alguns cantores brasileiros. Chegamos a Chico Buarque não sei muito bem como, mas a última canção que me lembro de estar a ouvir antes de entrar no avião era “Make you feel my love.” O melhor verso dessa canção, digo eu, é aquele que introduz um desequilíbrio em tudo o que Bob Dylan diz, é o último desta estrofe:

The storms are raging on the rolling sea
And on the highway of regret
The winds of change are blowing wild and free
You ain't seen nothing like me yet 

Estes versos podem ser auto-referenciais (rolling sea faz pensar em “Like a rolling stone,” “on the highway of regret,” lembra “Highway 61 Revisited” and “the winds of change,” talvez atropele “Blowing in the wind” em “The times they are a-changing”), mas não há como escapar, no verso “you ain’t seen nothing like me yet,” ao facto de que é um verso impregnado por uma auto-confiança que é contradita pelos três versos anteriores, mas é também um verso, equilibrado como está numa teia de referências a outras canções de Dylan, sobre auto-emulação, sobre os poderes de reinvenção de um poeta inesgotável. “To make you feel my love” é uma canção de 1997.

            A minha canção de Atenas, dou-me conta disto enquanto escrevo estas linhas, não é música, mas um gato, ou melhor, o ritmo de um gato específico quando nos cruzamos num certo ângulo. Ou as revelações que a presença desse gato por vezes parece conter, em termos da cronologia das metamorfoses da minha relação com a cidade, do ritmo da minha cíclica existência nela. A pergunta que me faço, sempre que me encontro com este gato é: sou ainda uma turista nesta cidade ou não? Quando ao certo se deixa de ser turista numa cidade? Há mais de uma década, nas minhas primeiras viagens a Atenas, o bairro onde eu fico costumava ser para mim as poucas coisas que sabia dele de sobre ele ter lido em guias turísticos, era o bairro do Museu Nacional de Arqueologia e também o bairro onde está o Politécnico, onde, durante a chamada Revolta do Politécnico, a partir de 14 de Novembro de 1973, os estudantes fizeram greve e entraram em protesto contra o Regime dos Coronéis. A revolta foi esmagada pelo regime a 17 de Novembro, e terminou com um total de 24 mortos. Hoje em dia, nas ruas desse bairro, justapõe-se a essa história, a minha história nele, que se desenrola em redor dos apartamentos onde fiquei ao longo dos anos, dos apartamentos onde vivem os meus amigos, onde às vezes fico, de bares, cafés e restaurantes, onde aconteceram para mim tantas coisas que sei hoje que estas ruas não são apenas paisagem. O que é ao certo a pertença a um lugar? Qualquer coisa entre o deslumbramento e a pena? Não sei. Digo, a alegria sem medida do regresso a pessoas que amei. Até àqueles que já não podem ser encontrados aqui.

            O que me leva ao gato, à minha relação com aquele gato de rua que vive já um pouco fora do meu bairro, um pouco mais acima dele, numa esquina do Monte Licabeto, esse lugar que faz pensar em Aristóteles, perto da padaria onde, quando estou em Atenas, costumo ir tomar o pequeno-almoço, um espaço que não é café, mas uma espécie de balcão virado para a rua, onde se vende café, pão, e alguns bolos de pequeno-almoço. Na esquina do prédio onde está essa padaria, há uns três ou quatro anos, alguém que vive no prédio adjacente, adoptou e não adoptou um gato preto de rua, deixando-lhe um cesto no degrau do prédio e água e comida ao lado do degrau, já quase diante da padaria. Ao longo do tempo eu vi-o passar de gato bebé com não muitas hipóteses de sobrevivência a gato adolescente e daí a gato adulto, confortável na vida do bairro, príncipe e pedinte, como só os gatos de rua de Atenas sabem ser. Em nada como na sua relação com os gatos de rua é visível a generosidade e a crueldade dos atenienses, o que há de melhor e pior na cidade emerge no modo como as múltiplas colónias de gatos são tratadas pelas pessoas nos bairros onde os gatos vivem. Os gatos de Atenas, que não existiam na antiguidade clássica, são hoje um símbolo da cidade.

            Nesta viagem, dei conta, muito embora o cesto estivesse no sítio, que o meu gato não andava perto do cesto. Nos primeiros dois ou três dias isto não me preocupou, mas ao fim desses dias uma nuvem de fumo dos incêndios que assolaram Atenas desceu sobre a cidade e, quando eu estava prestes a ir-me embora por alguns dias, para uma cidade do norte onde tinha um compromisso, o cesto foi removido. Vi o desaparecimento deste cesto como um símbolo do lado violento e cruel de Atenas, do tipo de descuido que banaliza o lado precioso da vida, uma forma de indiferença alicerçada em descuido. Quando voltei, três dias mais tarde, o ar na cidade tinha voltado a ser respirável, mas o cesto continuava desaparecido. Não sei como, por que milagre, no meu último dia havia um novo cesto, e no novo cesto o mesmo gato, com o seu inconfundível focinho manchado de cinzento, fitou-me de dentro dele, como se entre nós nunca se tivesse desenhado o horizonte de angústia e ausência com que o imaginei desaparecido. De que me tinha esquecido eu? O que é que eu não tinha entendido? As mãos destas pessoas, talvez de um prédio inteiro, que resolveram que este gato é parte do seu prédio, e que nos dias de calor irrespirável talvez o tenham recolhido e depois trocaram-lhe o cesto de inverno por um de verão. A solidariedade é uma tecnologia simples e por vezes irracional, teimosa como a improbabilidade da vida. O seu efeito secundário é o mundo tornar-se um lugar menos cruel. “You ain’t seen nothing like me yet” é o que na minha imaginação aquele gato canta a partir do seu cesto.

Canções de verão: duas antologias

OCaso algures no Dodecaneso, 2021

Uma antologia breve pode ser um pequeno catálogo de um momento. Mantenho há algum tempo uma antologia de poemas e versos de poemas que podiam ser sobre o verão, que revisito muitas vezes no inverno, um tempo impaciente para mim, que não tem grande coisa a ver com a minha natureza, muito embora ame o chiaroscuro das ruas da cidade onde vivo nessa estação, um tempo para torres cobertas de neve e noites longas, que começam a meio da tarde, e salas de pubs demasiado aquecidas, interrompidas amiúde por uma corrente de ar de uma porta deixada aberta, que alguém, irritado, constantemente se levanta para fechar. O inverno enquanto porta que se fecha e o verão enquanto uma que se abre. Lentamente, ao longo do inverno, chega a nostalgia do verão (cada um ama aquilo que não tem?). Certa vez, numas férias de verão, o amigo com quem tinha ido até à praia começou a acelerar loucamente no carro, porque um guia turístico que ele tinha lido garantia que o melhor pôr-do-sol podia ser visto numa praia a alguns quilómetros de onde estávamos. O meu amigo de repente teve pressa para ir ver o sol desaparecer, algo que não é suposto, reclamei eu, stressar uma pessoa quando ela está de férias. Mas a verdade é que valeu a pena a corrida. Um pôr-do-sol como uma orquestra, como uma aurora quase e não como um ocaso. Laranja até chegar ao púrpura e púrpura até chegar a um azul ardente, inexplicável sobre o mar. A minha antologia de versos sobre o verão inclui aquele que se pode ler em epígrafe este mês na Enfermaria (mas é discutível que esse verso de Sylvia Plath seja sobre o verão).

Alguma coisa do espírito que vai animando esta minha colecção deve ter animado Elena Medel, editora de La Bella Varsovia, por volta de Julho de 2022, quando esta casa editorial espanhola compilou e disponibilizou gratuitamente no seu site o pdf de La Canción del Verano: Algunos poemas para viajar leyendo. É uma pequena antologia que reúne doze poetas do catálogo da editora, de Andrés Neuman a Amalia Bautista, passando por Luna Miguel, Ismael Ramos e Berta García Faet, para nomear alguns. O subtítulo, que reenvia para Emily Dickinson, é um tema: nos poemas cruzam-se as efémeras viagens do verão, os seus momentos de estase e aceleração, ele é visto do ponto de vista do permanente e do efémero. Os poemas levam-nos de volta ao sal do mar e ao cloro das piscinas, a jardins que rodeiam praias e à letargia de estradas e cidades em dias de calor. Algo neste pequeno panfleto faz pensar, claro, nas canções de verão do título, mas também em filmes sobre o verão, remete para eles visualmente, algures no espectro de Call me by your name (Luna Miguel?) até Aftersun (Andrés Neuman?), ou talvez filmes mais recuados, Le rayon vert, La Piscine, L’Avventura.

La Canción del Verano acaba por ser também uma pequena amostra do catálogo desta editora. Não há nenhuma preocupação com qualquer nexo temático, as vozes são discrepantes, há poemas de uma concisão quase epigramática e outros predominantemente narrativos, a única coisa que os une é uma ideia (muito solta – difusa talvez como um tempo de férias) do verão, um pouco ao contrário de um projecto semelhante, mantido pela Poetry Foundation, a sua colecção Summer Poems, também ela uma amostra dos nomes que foram passando pela revista, mas esta organizada por secções (dias de verão, amores de verão, insectos, etc.).

Oxford, 6 de Agosto de 2023

(debaixo de chuva)

Dois poemas sobre a Antiguidade (Yiorgos Seferis e A.E. Stallings)

Eurípides, o ateniense

 

Yiorgos Seferis

de Hmerologio Katastromatos G’ (Diário de Bordo III), 1953-55

 

Envelheceu entre os fogos de Troia
e as pedreiras da Sicília. 

Gostava de grutas na praia e imagens do mar.
Viu as veias dos homens
como uma rede dos deuses, onde nos prendem como a animais ferozes;
tentou romper através dela.
Era um homem difícil, tinha poucos amigos
Quando chegou o dia, despedaçaram-no os cães.  


Consolação para Tamar

A.  E. Stallings
De Archaic Smile (1999)

na ocasião de ela ter partido um vaso antigo 

Sabes que arqueóloga não sou, Tamar,
E para mim é tudo um pó ou outro.
Ainda assim, tem de contar alguma coisa sobreviver à meteorologia
Das Idades – terramoto, inundação e guerra –  

Só para se estilhaçar nas tuas mãos.
Talvez tenha sido a gravidade, ou estava fadado –
Embora eu me pergunte se não tivesse esperado
Tantos anos em gavetas, eras em terras distantes, 

E na música dos teus dedos, só um bocadinho
Encorajou-se com o teu sangue, e assim se esqueceu
Que não era botão de rosa, mas vaso,
E, tentando abrir-se para ti, fez-se frágil.  


Ευριπίδης, Αθηναίος

 

Γέρασε ανάμεσα στη φωτιά της Τροίας
και στα λατομεία της Σικελίας. 

Του άρεσαν οι σπηλιές στην αμμουδιά κι οι ζωγραφιές της θάλασσας.
Είδε τις φλέβες των ανθρώπων
σαν ένα δίχτυ των θεών, όπου μας πιάνουν σαν τ’ αγρίμια·
προσπάθησε να το τρυπήσει.
Ήταν στρυφνός, οι φίλοι του ήταν λίγοι·
ήρθε ο καιρός και τον σπαράξαν τα σκυλιά. 


 Consolation for Tamar

 

on the occasion of her breaking an ancient pot

 

You know I am no archaeologist, Tamar,
And that to me it is all one dust or another.
Still, it must mean something to survive the weather
Of the Ages—earthquake, flood, and war— 

Only to shatter in your very hands.
Perhaps it was gravity, or maybe fated—
Although I wonder if it had not waited
Those years in drawers, aeons in distant lands, 

And in your fingers' music, just a little
Was emboldened by your blood, and so forgot
That it was not a rosebud, but a pot,
And, trying to unfold for you, was brittle

Como chegar a Ítaca

Vaso Katraki, Família de Pescadores (1963)

Sabe-se que não é fácil chegar a Ítaca. Definitivamente não se chega a Ítaca nem lendo o final da Odisseia de Homero nem o de Odisseia: uma sequela moderna de Kazantzakis, nem sequer indo à procura de Ulisses no Canto 26 do Inferno de Dante. Isso também não resolve nada, embora esse possa bem ser o Ulisses mais certeiro de todos, aquele que é até mais homérico do que o Ulisses de Homero.

Tenho alguns problemas com Ulisses. O maior deles começou naquelas páginas de As Núpcias de Cadmo e Harmonia em que Roberto Calasso narra a vingança deste sobre Palamedes. Talvez não muita gente se lembre deste aspecto do mito quando se fala do Ulisses homérico, mas esse Ulisses que se vislumbra nos Cipria, um dos livros que colige outras histórias do mundo de Homero, é o das vinganças hábeis e ardilosas, longamente planeadas, o mesmo que no final da Odisseia é capaz de chacinar todos os pretendentes e todos os que ajudaram os pretendentes. Apolodoro e Higino, autores mais tardios, haveriam de contar a história da vingança sobre esse tal de Palamedes que, diz Calasso se não me falha a memória, era o único no mundo arcaico que tinha exactamente a mesma inteligência que ele.

Ulisses não se parece em quase nada com os reis que vão para Troia. Para começar, é um rei pobre. Confirmam-no o catálogo das naus no Canto 2 da Ilíada (o livro mais chato do poema), que diz que Agamémnon era comandante de cem navios e que Ulisses era o comandante de um contingente de guerreiros cefalónios e de apenas doze navios de proa vermelha. Talvez a pobreza de Ulisses também se vislumbre na sua preocupação, ao longo da Odisseia, com a economia, que é uma palavra que vem de oikos, grego para casa, de não perder os seus despojos de guerra e de angariar mais pelo caminho. 

Os mitos contam que quando os gregos vieram em busca de Ulisses a Ítaca, ele se fingiu de louco para que não o arrastassem para uma guerra em que ele não queria combater porque não era a dele. Há qualquer coisa, parece-me, de dionisíaco na figura de Ulisses. Vê-se isso nesta recusa inicial, inaudita entre os outros capitães dos gregos. Percebe-se aqui como ele ama viver e sobreviver através de todos os desaforos. Há qualquer coisa de absurdamente desmedido (desmedido também no sentido de fora dos limites sociais) no seu amor a uma arte de perdurar e de ser. Isso assoma no seu desespero melodramático, nas muitas lágrimas derramadas pelo caminho, durante a longa viagem de regresso, mas essa coisa desmedida talvez apareça sobretudo naqueles versos no Canto 13 da Odisseia em que ele pede a Atena que ela o ame mais quando ele regressar a casa e tiver de enfrentar os pretendentes do que em qualquer momento anterior de qualquer uma das suas aventuras. Ou quando ele recusa a imortalidade que Circe lhe oferece para, em vez disso, voltar a casa. Como é belo ser um mortal e poder ir morrer junto de quem nos amou, regressando através de quase tudo, com uma clareza que ultrapassa o próprio medo de morrer. E que sorte extraordinária conseguir encontrar isso no decurso de uma vida, que às vezes é tão curta e tão cega que não dá para quase nada.

É Palamedes quem interrompe o curso doméstico em que Ulisses estava, a mulher e o filho e a pequena prosperidade de Ítaca, e muda o seu caminho para sempre, porque é Palamedes quem, enquanto Ulisses se faz de louco diante dos dignatários dos gregos, fingindo-se de boi e lavrando com um arado um campo, sugere que se coloque no seu caminho o filho de Ulisses, o bebé Telémaco. Ulisses então não tem como continuar a fingir e tem de parar com o teatro. Mas ele não se esquece de Palamedes e não só causa a sua morte em Troia como lhe dá uma morte infame.

Já em Troia, Ulisses forja uma carta do rei Príamo, na qual promete a Palamedes uma determinada soma em ouro se este traísse os planos dos gregos. Ele esconde depois essa mesma soma na tenda de Palamedes. Palamedes é denunciado a Agamémnon, o ouro é encontrado na sua tenda e os gregos apedrejam-no até à morte. De todos os meus problemas com Ulisses, o primeiro é esta história. É precursora, em termos de cronologia mitológica, da chacina dos pretendentes, mas sobretudo da chacina, desnecessária e excessivamente cruel, das escravas que trabalhavam em sua casa. É um daqueles gestos que expõe a raiz profunda da crueldade humana enquanto paixão demasiado arcaica. Não é rara em Ulisses. É um traço da sua natureza. Surge, por exemplo, no modo como ele espanca violentamente Tersites no Canto 2 da Ilíada. Há na figura de Tersites qualquer coisa da alma de um sátiro, o que está também provavelmente inextricavelmente ligado ao facto de que ele vem de uma classe social mais baixa do que as outras personagens que intervêm no episódio da briga entre Aquiles e Agamémnon, mas Ulisses silencia Tersites à pancada, batendo-lhe violentamente com o ceptro nas costas.

Há, ainda na Ilíada, o modo como ele trata Dólon, o espião troiano cujo nome partilha a etimologia com a palavra dolo. Como ele e Diomedes no Canto 10 do poema, um canto que se chama “Canção de Dólon,” que tende a ser visto como uma anomalia no poema porque é um livro que estamos quase certos de que é apócrifo, existindo sobretudo para que reparemos em Ulisses. O livro conta como os dois gregos capturam Dólon, de como ele lhes implora que o poupem, oferecendo-se para pagar o seu próprio resgate. Ulisses diz-lhe para ele não se preocupar com a morte, fá-lo contar-lhe todos os segredos dos troianos e deixa que Diomedes o degole no fim, quando Dólon está de joelhos, prestes a fazer o gesto ritual dos suplicantes: tocar os joelhos e a barba daquele a quem se suplica. A descrição mais precisa de Dólon não vem na Ilíada mas em Memorial de Alice Oswald, um livro que colige e expande os epitáfios das muitas personagens menores que surgem no poema:

What was that shrill sound
Five sisters at the grave
Calling the ghost of DOLON
They remember an ugly man but quick
In a crack of light in the sweet smelling glimmer before dawn
He was caught creeping to the ships
He wore a weasel cap he was soft
Dishonest scared stooped they remember
How under a spear’s eye he offered everything
All his father’s money all his own
Every Trojan weakness every hope of their allies
Even the exact position of the Thracians
And the colour and size and price of the horses of Rhesus
They keep asking him why why
He gave away groaning every secret in his body
And was still pleading for his head
When his head rolled onto the mud 

Acho às vezes que a história da carta de Palamedes corre o risco de ser apócrifa porque se menciona a tecnologia da escrita e esta parece ser, no mundo homérico, rara e insipiente. A única vez em que é mencionada, no Canto 6 da Ilíada, é também na história de traição e vingança. O herói Beleforonte transporta com ele a carta que ordena a sua própria morte às mãos de um aliado do rei Proteu, porque Anteia, a mulher deste, acusara falsamente Belerofonte de a tentar violar. A melhor discussão deste episódio é, claro, a de Anne Carson em Eros, the bittersweet.

Há um mito das origens obscuras que atribui ao próprio Palamedes, em conjunto com Cadmo, a invenção de algumas das letras do alfabeto. Também se lhe atribui a invenção do jogo dos pessoi, espécie de precursor dos jogos das damas e dos dados, para que os soldados gregos matassem o tempo em Troia. Palamedes terá sido então responsável, antes de Ulisses o matar, pela inauguração da longa, e frutífera, relação entre o vício, o desejo, a esperança e a inteligência.

Não sei, e talvez não haja maneira de saber, se Cesare Pavese terá pensado nesta tradição quando faz Circe dizer, no diálogo “Le streghe” de Dialoghi com Leucò:

Quello che mai prevedo è appunto di aver preveduto, di sapere ogni volta quel che farò e quel che dirò – e quello che faccio e che dico diventa così sempre nuovo, sorprendente, come un gioco, come quel gioco degli scacchi che Odisseo m’insegnò, tutto regole e norme ma così bello e imprevisto, coi suoi pezzi d’avorio. Lui mi diceva sempre che quel gioco è la vita. Mi diceva che è un modo di vincere il tempo.

Às vezes, relendo esse livro de Pavese, acho, como muitos críticos de Cesare Pavese acharam, que Ulisses é a figura central e tutelar deste que talvez seja o seu melhor livro. Pavese dizia sobre os Dialoghi que eles coligiam as personagens e as situações do mundo clássico que tinham capturado a sua imaginação enquanto aluno de liceu. Ulisses aparece, de resto, num diálogo anterior, “L’isola,” onde conversa com Calipso, no momento em que, em Ogígia, ela lhe oferece a imortalidade e insiste para que ele a aceite. A ler Pavese repara-se, nas linhas finais do desse diálogo, que Ulisses é o herói, na ordem do mundo, para todos os pós-guerra (os diálogos foram escritos entre 1945 e 1947):

ODISSEO Saprò almeno che devo fermarmi.
CALIPSO Non vale la pena, Odisseo. Chi non si ferma adesso, subito, non si ferma mai più. Quello che fai, lo farai sempre. Devi rompere una volta il destino, devi uscire di strada, e lasciarti affondare nel tempo…
ODISSEO Non sono immortale.
CALIPSO Lo sarai, se mi ascolti. Che cos’è vita eterna se non questo accettare l’istante che viene e l’istante che va? L’ebbrezza, il piacere, la morte non hanno altro scopo. Cos’è stato finora il tuo errare inquieto?
ODISSEO Se lo sapessi avrei già smesso. Ma tu dimentichi qualcosa.
CALIPSO Dimmi.
ODISSEO Quello che cerco l’ho nel cuore, come te.

Há qualquer coisa de espantoso nesta última linha. Ulisses define, com este lirismo intenso e oracular que é o tom característico dos Dialoghi, a coisa em que mortais e imortais se igualam. E talvez esteja aqui a dizer que não há maneira de abandonar Ítaca, porque ela nunca o abandona.

Kavafis sabia isso sobre Alexandria enquanto Ítaca. Naquele que é talvez o seu poema mais famoso e mais citado, escrito originalmente em 1910, lemos que é preciso abandonar Ítaca, amar a longa viagem, para no regresso entender o que significam as Ítacas. Este plural em Kavafis, Ιθάκες, de resto, sempre me divertiu. É de uma ambiguidade que expande o mundo e consegue, ao mesmo tempo, ser intimamente kavafiana. O plural aqui tem, claro, a força retórica do universal, mas acidentalmente deixa implícito que existem várias Ítacas possíveis, desarruma Ítaca um pouco da sua sentimentalidade absoluta de lugar único. No último verso desse poema até Ítaca de alguma maneira viaja, ήδη θα το κατάλαβες η Ιθάκες τι σημαίνουν. Quando o mais natural na ordem do verso seria que Ítacas fosse a última palavra, em vez disso é a expressão “que significam.” O verso significa, à letra, “então terás entendido as Ítacas o que significam.”

Nunca estive em Ítaca. Ainda não consegui lá chegar. O mais perto que me senti de Ítaca, não geograficamente falando, foi na ilha de Corfu, cujos habitantes reclamam ter sido a ilha dos Feaces. É uma das ilhas da Grécia com uma das capitais mais belas que conheço, mas é hoje incrivelmente pouco hospitaleira, pouco real, completamente monopolizada pelo turismo. Nem os fantasmas de Lawrence Durrell e Henry Miller se entreveem quando passamos pelos lugares por onde eles andaram, nem mesmo sequer quando nos sentamos nos bares dos terraços dos hotéis onde eles se sentaram, onde não teriam, hoje, dinheiro suficiente para se embriagarem tão completa e confortavelmente como o fizeram no tempo em que por lá andaram.

Acho que um dos momentos mais extraordinários da Odisseia tem qualquer coisa a ver com embriaguez. É o encontro do filho de Ulisses com Helena, transformada em farmacologista, drogando os soldados para que eles se esqueçam da dor que trouxeram de Troia.

Helena sobrevive à guerra, reinventa-se ao lado de Menelau. Mas e Penélope? O que dizer dela quando pede a Ulisses que não se zangue, quando lhe faz o teste final para tentar entender se ele é mesmo ele – percebemos então que há pelo menos mais uma personagem, além de Palamedes, cuja inteligência é como a de Ulisses –, pedindo a uma serva que mude de lugar a cama de ambos, imóvel para sempre porque esculpida num carvalho ainda no centro da casa, e ele com angústia se zanga, porque que homem podia ter mudado de lugar uma cama que ele mesmo construíra? E ela pede-lhe para que ele não se zangue, que se os deuses já não os tinham deixado em paz para passarem a juventude juntos, que ao menos ficassem juntos durante a velhice. Existe uma outra odisseia nesses versos de Penélope, entendemos o que é que foi perdido, porque é que Ulisses queria ir enganar os gregos e não queria partir. Porque é que ele nunca é exactamente como eles, nem na Ilíada nem na Odisseia.

Foi no pequeno museu municipal de Kerkyra, ao mesmo tempo o nome grego de Corfu e o nome da capital da ilha, às moscas para lá do jardim com as estátuas de Gerald e Lawrence Durrell, que vi pela primeira vez as mulheres dos mitos antigos e as mulheres contemporâneas da pintora Vasso Katraki (1914-1988), a sua Antígona sepultando o irmão e as camponesas anónimas e as mulheres grávidas, corajosas e sozinhas, ou mulheres com os filhos, ou retratos esquemáticos de famílias, com qualquer coisa de neorealista, que fazem pensar em migrações sasonais, casas e regressos, que ela desenhou entre o período da Guerra Civil e da Ditadura dos Coronéis.

Quando estive no pequeno porto de Fiskardo, em Cefalónia, onde se pode apanhar o barco para o também minúsculo porto de Frikes em Ítaca, essas imagens de Vasso Krataki ainda não estavam comigo, eu ainda não as tinha visto. Não cheguei a apanhar esse barco para Ítaca. Mas nadei nas correntes ao longo dessa extensão de costa, onde a água é de um azul transparente, e a nossa sombra é reflectida no fundo do mar. Tatiana Salem Levi tem uma descrição muito precisa, em Vista Chinesa, desse tipo de mar, ela diz que ele “não se parece com o pórtico de um reino profundo e misterioso.” Mas as correntes nessa costa de Fiskardo enganam bem: afastarmo-nos um pouco basta para sentimos a força obliterante do mar e o receio de não conseguir voltar à praia. É fácil então pensar nos muitos naufrágios de Ulisses. Tenho tido a intuição, em certos momentos de viagens, em horas letárgicas, passadas em barcos e aviões, de que estamos aí tão isolados, tão inacessíveis, que não fazemos exactamente parte do mundo dos vivos. É só à chegada ou no regresso que tornamos a existir. Este é, claro, em parte, o drama de Ulisses.

Por causa da geografia de Ítaca descrita na Odisseia, muitos arqueólogos suspeitam que Ítaca e Cefalónia estavam ligadas na antiguidade, e que a Ítaca homérica ficava, na verdade, em Cefalónia, uma ilha hoje quase sem passado, com apenas duas aldeias antigas, porque é muito propícia a terramotos. O maior dos mais recentes, na década de 1950, destruiu a ilha quase por completo.

Nunca vi, então, Vathi, a bela cidade que é hoje a capital de Ítaca. Concluí, no entanto, por cálculos não muito complicados, que a maneira mais fácil de lá chegar, a partir de Atenas, é apanhando o comboio para Patras, que faz a sua travessia por uma paisagem que não vejo há quase tanto tempo quanto Ulisses não viu Ítaca: através do golfo de Corinto, com os seus ecos dos mitos em torno de Édipo e com os laranjais do Peloponeso do outro lado. Chegando a Patras é depois fácil apanhar o barco para o porto de Aetos. Há pelo menos um barco por dia.

 

Oxford, 16 e 18 de Junho de 2023