A porta aberta da Ilha

 Quero-te enquanto corrente de vida ininterrompida, corrente de vida contínua, o olhar líquido que abraça, o abraço mais quente, essas pegadas que deixaste ao sair da ilha, ao fechar a porta. Quero-te enquanto porta aberta que tem o mesmo nome que o meu pai, as mesmas pegadas de saída, ali onde poderia ser areia, mesmo que só para escrever no cimento uma pegada fresca, um nome desenhado com uma chave, um coração, sempre um coração entre dois nomes e qualquer data de qualquer século só para nos tornar mais palpáveis - o número da turma, o nome da escola - dizer os amigos imortais seria um pleonasmo desnecessário. Quero-te livre embora ainda queira estar contigo. Imaginei hoje uma voz que me enchesse o coração e quero essa voz sempre contigo. Quero-te enquanto porta aberta, é nosso dever deixá-la sempre aberta e hoje diria como Safo ao sair de uma das suas melhores noites Quem é belo é belo de ver, e basta; mas quem é bom subitamente será belo.

Ele hoje está cheio, bate ainda mais cheio e é impossível apagar: riscar, parcelar ou interromper uma vida. Nem o caminho é a lápis, nem a vida é uma corda ou fio – nada disto se parte a meio - Amo em em ti esses braços que sobem a paisagem, amo nesta luz os teus dentes, boca, olhos: variantes da mesma luz que aceleram o chão, aqui onde caminham os que aquecem, entre Gaia e Porto, as cinco pontes das voltas que demos a uma cidade que se tornou nossa. Quero-te como sopro de vida que ninguém vai fechar e só te posso dar o que ainda não tenho. Imaginei hoje uma voz que me enchesse o coração e quero essa luz sempre contigo: acelera.

Nuno Brito, Porto, 23 de Fevereiro de 2015.

A Dormideira

 Há uma mulher vestida de noiva à minha espera, quando eu morrer não chores não, ouve a minha voz a rimar no Rio Trancão.

Allen Halloween  

 

Se o lápis do narrador a adormeceu, só esse mesmo lápis a pode a acordar... Abriu a sebenta azul, as páginas numeradas, as 3 histórias do Capitão Soninho, e por cada ponta que se corta nasce uma estrela nova, depois a página 31 numa caligrafia quente, letras muito redondas e cheias, que podiam ser vistas como desenhos, sem serem lidas, ali o leitor podia adivinhar o seu gesto calmo, a respiração pausada: a letra gorda que anestesia os olhos, antes do lápis ficar mais nervoso, adivinha-se nas páginas seguintes o fio de um raciocínio mais rápido, o arfar a passar para a escrita, o lápis acompanhando a história da Dormideira.

Um corvo tinha deixado cair uma semente gorda de papoila. Com a chuva ela inchou e rebentou a terra quente … Na estação seguinte a Dormideira ganhou vida – o seu caule seguro, tomado ao mesmo tempo pela dose certa de apatia controlada, a castração do desejo que a inibia de se erguer. A Dormideira espreguiçava-se por dentro em jeito de oração. Podia não ter sido um corvo – Podia ter sido um homem. O narrador tem um lápis, mas ele é imaterial, desenha só o fundo das personagens, o seu perfil e núcleo, a sua essência, de resto os géneros mentem, as espécies mentem, não as há – Apenas uma vida cuja razão era dormir - tirar a dor, anestesiar. A Dormideira que crescia, com os ramos que se entrecruzavam, imitados na Arte Nova, em candeeiros, varandas, entradas de metro, o ferro trabalhado como braços de sono, torcidos, entrelaçados - vida correndo para as pontas: se alguém lhe cortar uma ponta ela crescerá com mais força - Irrompe no céu muito escuro.  Ela ganha novas inclinações, como uma estação de Metro, o túnel do ferro de saída para a rua. Depois da estação das chuvas, a papoila fechava-se durante a noite, cinco minutos de um lento virar para dentro para dormir - dormir verdadeiramente como nunca nenhuma pessoa conseguiu. Este momento era captado por um realizador de Cinema Mudo, a câmara na sua visão parcial apontava em campo/ contra-campo o crescimento do verdadeiro sono. O realizador escrevia legendas em fundo negro, o dia-a-dia da Dormideira, aforismos que retirava da sebenta azul. Procurava filmar naquele instante a origem da Anestesia; o ponto de viragem (algo parecido com a música e daí muito parecido com o cinema Mudo, as estátuas da Morte e as danças da Ilha de Páscoa). Neste abrir-se o realizador procurava o segundo em que a dormideira começava a ser uma poderosa fonte de alívio da dor.

 

Amava para dentro,
 A sua função era dormir…  

                                                           *** 

O narrador tem uma borracha, pode apagar o sono, decidir acordar a personagem. Continuar a história com toda a pressa e na sua vontade de dizer tudo despertá-la. O traço torna-se rápido, nervoso, o bico do lápis parte-se. A Dormideira Fica interrompida. A sua razão é dormir.

 

Nuno Brito, Cidade do México, 2 de Julho de 2012. 

A rua mais estreita

Numa das ruas mais estreitas da cidade há velozes migrações humanas que aos pássaros parecerão demasiado rápidas, manchas confusas num movimento estranho, observadas de cima para baixo entre as duas filas de telhados que quase se tocam, ali onde um gato pode facilmente saltar para o outro lado da rua; é uma das ruas mais estreitas da cidade, a mãe que agora amamenta a filha no último andar raramente vem à janela, há também pouco sol para secar a roupa. Ali onde há pouco um se gabava de que com aquela gaja tinha sido como foder com duas focas ao mesmo tempo, onde tudo é deixado como a uma casa de penhores colossal, há poucos minutos um homem tirou do dedo o anel de casamento e deixou-o ali ficar, na rua, para sempre, em troca de outras migrações (variantes da fome), que essa velhinha que pode ter só 37 anos procura no chão, a pedra mais pequena, mais branca da rua. Parece-se ao fantasma de uma gaivota - paralítica, sem asas e impossibilitada de olhar para cima, deverá haver um qualquer mito grego para ela, um castigo dos deuses por alta traição, a falsa previsão sobre o futuro de uma cidade que logo é queimada pelos inimigos do rei. Estar sempre na mais estreita linha que separa os homens e os animais, presa àquela rua como os fios de secar a roupa por baixo das janelas que ali são quase inúteis. Às vezes uma pequena linha de luz atravessa a janela e ri-se ao encher o quarto onde a mãe amamente a filha, uma corrente de vida que se expande e ilimita quando pensa em migrar para fora da rua, e a luz dá em cheio nas duas, no sorriso das duas, no quarto todo, corrente de luz que se ilimita e acende, mesmo depois do sol se esconder por trás das casas. Pouco tempo de exposição que não apaga nem quebra uma corrente, uma vontade, um laço - Há uma filha entre os braços - a migração dos pássaros que no fim do Verão partem para África para voltarem no ano seguinte - Em busca de calor e comida, eles não poderiam perceber as velozes migrações destas ruas, destes grupos que se formam e dissolvem à velocidade de certos sons, que se rodeiam rápido e desfazem ainda mais rápido, em círculos ou filas que se tornam manchas e desaparecem a correr - que aparecem rápido demais e caem rápido demais - que sobem e baixam rápido as escadas seguindo outras manchas que abrem as suas portas, que se aninham e encostam aos muros como dormideiras. Fiéis a esta linha entre a vida e a morte como as gaivotas às cidades marítimas. Numa das ruas mais estreitas da cidade há migrações que os pássaros não entendem – só nisso, talvez, são mais livres que os homens.

19 de Janeiro de 2015.

A última fábrica de fósforos

Um retrato é sempre parcial, a sua força é ser incompleto, capta quanto muito o instante-luz de uma vida, recriada por outra. O outro sob a luz de Eros, aguarelas que nunca serão as mesmas, corrente de uma vida que por uns segundos é observada no seu movimento e por isso nunca o retrato está parado. Nem sequer entre dois instantes ele é fixo. Este pode ser feito por quem está no quinto andar (traseiras), ali onde ele fuma um cigarro, uma ponta acesa que se vê ao longe, de cima para baixo, ali onde cai a cinza: a ilha – que também ele não sabe por onde se entra, quem vive nas suas traseiras, entre o som dos galos que ocupam, como os homens, algumas pequenas hortas abandonadas, entre casitas e casitas, zinco, telhas, construções para trás, tubos de exaustão de restaurante, mosaicos azuis de casas centenárias onde pousam as gaivotas, o som de uma festa brasileira, gatos malhados e negros, hortas com um triciclo, ao lado, uma criança que brinca sempre sozinha. Ali onde cai a cinza, onde a roupa seca e escorre, onde algumas marquises e varandas fechadas foram tapadas com móveis, tábuas de passar a ferro, mecanismos velhos, caixas de diferentes cores, a máquina de lavar, coisas amontoadas por gerações que forram agora, num mosaico aleatório os vidros traseiros. Porque para ali já há muito que se desistiu de olhar, para onde pinga a roupa de muitos andares, a cinza da festa brasileira, do (homem ou mulher do quinto) Ali a parte de trás, da nossa cidade, o lado B do nosso país: a ilha. Parcelada quando a cinza cai e o velho dos gatos que sai da ilha entre outras coisas para recolher picas do chão - vê no quinto andar traseiras o brilho do cigarro, sem ver quem o fuma, ao longe, de baixo para cima, o cigarro parece um farol – intermitente, ao longe, em Gaia, para quem está quase em Espinho, perto da antiga fábrica de fósforos. E, entre os dedos, esse pequeno farol ilumina-se às vezes com uma vida maior, acelerado, no instante em que o fumo é puxado rápido para os pulmões e parece uma estrela prestes a explodir para apagar-se para sempre, fumada até ao fim, apagada. Pode não ser um homem, pode ser uma mulher, a brasileira, o romeno, a travesti negra, nisso a falta de luz nivela, só faróis a tremer ao fundo, no fim dos braços, na pedra, nas varandas, sem luz não se percebe onde acabam as traseiras e começa a ilha, onde acaba a terra e começa o mar, onde é céu ou onde é água. Onde é cidade e onde é a parte de trás. Nisto, o passado confunde-se - O velho dos gatos, acumula anos de trabalho num armazém de pirotecnia, outros tantos na extinta fábrica de fósforos de Espinho, e ele veio entre tantos ocupar, entre outros, a ilha onde cai a cinza e os pingos gordos da roupa, uma ou outra rodilha que cai no zinco, um ou outro pacote vermelho de comida chinesa.

É visto todos os dias, fora da ilha, nas ruas visíveis da cidade. No grande contentor do lixo ao lado da frutaria podemos vê-lo apanhar, entre tangerinas podres e outras que se aproveitam menos mal, grandes ananases que dará para aproveitar mais de metade, feios de mais para estarem nas caixas, fruta que já vem pisada e que os fornecedores não aceitam como devolução – Dará para a sobrinha. Os mesmos contentores onde ao lado recolheu todo o seu mobiliário, três cadeiras onde amontoa alguns casacos que também o lixo e a caridade lhe ofereceram, e uma fotografia da mulher, que enquanto viva, fazia bolacha americana para venderem nas praias de Espinho e depois de Leça. A sua sobrinha ainda sabe a receita e os dois não abandonariam o ofício, não fosse terem de se esconder por causa da fiscalização alimentar, um crime público de que têm de fugir só por ter sido a Europa a cometê-lo, a sobrinha que vai entrar agora nas aulas de empreendedorismo obrigatório – para suster o núcleo com dignidade, dois, será difícil não dizer, quando alguém ao lado do contentor se demora a despejar garrafas no vidrão e o observa, que a fruta não é para ele, que é para os animais. E em que animais pensará? De cima para baixo ou de baixo para cima, como um farol trémulo entre os dedos, o retrato será sempre parcial - o mais parcial. Capta quanto muito um movimento orgânico. Nem sequer entre dois instantes ele é fixo.

Um marinheiro = Dois marinheiros

Mãe, amiguei-me de um marinheiro 
e agora vou com ele para terra, 
Peço-te que enquanto isso te mantenhas à superfície 
ou que venhas a ela sempre que possas 
 
Trouxe-me um girassol - 
O caule e o pulso seguro 
pareciam um só 
 
é um marinheiro terra-tenente 
que me diz que o mar parece um deserto, 
 e agora fui comprar linha dourada 
e faço um lenço bordado para lhe dar – 
Mãe, ele vai para terra firme, para o meio da terra firme, 
Uma cidade perigosa, os vícios humanos, drogas, tentações, 
passo o dia a costurar a renda no lenço: 
os três pastorinhos, uma aparição mariana, os doze passos da vida de Zapata, 
todas as figurinhas que me ensinaste a bordar, 
Não faltará uma pomba com as duas patas partidas 
- Símbolo de quê? - Vai perguntar o meu marinheiro, 
sou um Coala mãe e ele é uma árvore, e então abraço-me a ele,  
e o tempo passa e passa até que um cartógrafo venha fazer um mapa do tempo que 
será a nossa toalha, na nossa mesa da cozinha, 
a casa humilde mas aportuguesada onde todos serão bem-vindos e 
onde haverá pão para todos, 
um pão para 5 ou um pão para 50, mas sempre um pão, 
  
Sei que também agora sou um marinheiro porque Um Marinheiro = Dois Marinheiros, 
espera uma carta minha, nela vou-te contar tudo 
o que se passa nesse mar onde agora caminhamos, 
esse estranho mar cheio de pó, pode ser o Arizona, Oaxaca ou o vale de Arouca, 
mãe, um dia, eu e o marinheiro 
que também sou eu vamos nadar até ao meio dessa água, 
enquanto isso peço-te: não te deixes ir ao fundo, 
vamos levar um pequeno coala 
com sangue de pirata e seiva de pirata (árvore e girassol) 
Também dentro dele a música vai bombear o sangue para todo o corpo, 
Vais-lhe segurar os dedos finos, as tuas memórias já lhe estão ancoradas no peito, 
dentro dele memórias que nadam como cavalos marinhos no sangue azul da nossa 
família sem nome ou história, 
vais ver nos olhos dele os olhos da tua mãe e nas palavras dele um eco que dança. 
Peço-te Mãe, enquanto estiver em terra firme, não te deixes ir ao fundo… 
Vai-te trazer uma caixa, lá dentro um girassol, uma granada e duas asas, enquanto isso, 
anda à superfície muitas vezes: 
 
Que te puxe uma memória do Futuro, 
Que te puxem uns olhos que também são teus.