wastelands

quero dos teus olhos
esse naufrágio azul
sobre as pálpebras
o bom dia, senhora
no sotaque indefinido
de manhã 
quero a inutilidade
do candeeiro
quando a luz invade
as portadas
e se te deixas inteiro
na condescendência
da nudez, é a tua
boca que procuro
ainda cega, perdoa
se a sede é permanente,
levo aos dedos o teu sémen
por imaginar belos
os filhos dos teus filhos,
então invade sobe
trepa o meu ventre
(seremos sempre
animais de baldios) 
e perdoa de novo
se tudo o que tenho  
é esta absurda solidão; 
aceita a minha inabilidade
para traduções complexas, 
é em português que te ofereço a língua
e todas as minhas
petit-morts. e quando cair babel
estarei aqui plantada,
gerando raízes nesta terra
de ninguém, 
entregando-te a coragem
de já não saber da pátria
e as estrias os dentes
as costas vendadas
prontas para te receber
ao pequeno-almoço, e sim, 
esta sou eu e não
a ausente de mim, 
submissa ao relento de
um dia
não estares mais. 
é assim que recebo
a catástrofe, 
os restos das tuas sardas
sobre o meu corpo, ou: 
mais uma manhã 
abraçando
teu naufrágio.


Ao poeta que me envia árias avulsas

andas muito lírico, amor.
não compreendo
a tua necessidade
de ouvir ópera sem parar, isso
não existe essa grandeza dos afectos
essa adolescência momentânea
os corpos rosáceos
sob um tecto de estrelas
isso não existe, meu amor.
agarra-te ao trabalho no supermercado
abraça a dormência da rotina
esquece os romances
deixa de escrever e sobretudo
não ouças mais ópera que isso
não existe, amor, e se existir
não é perto de nós.
paga a renda, come chocolates,
consolida, filho, consolida,
que o inverno vai ser longo e esses cravos
na parede e essa força
e esse amor universal não existem
nada disso existe
por isso agarra bem os talões de desconto,
serão a maior carta de amor no teu correio,
ajuda as velhas a atravessar a rua
bebe até cair
mas só a partir das oito da noite
que não te deixam sair antes do trabalho,
larga a literatura
deixa os clássicos para reciclagem
mas se for poesia
queima-a:
o verso livre é perigoso.
larga os amores, as flores e os cravos
agarra-te ao boletim de voto e às revisões
constitucionais mas só se te deixarem
sair do trabalho para as urnas.
a última vez que fodeste a sério
eras adolescente e já nem sabes
se foi assim tão bom mas
não te preocupes com mais,
o prozac não esquece a alegria,
acaba o cigarro, abotoa o colarinho
toma a certeza de que só essa cadeira
é o teu lugar no mundo:
volta para dentro sorriso
amarelo ombros
encolhidos cabeça
baixa, barba feita que
não deixam que cresça porque
fica mal, fica-te tão mal
esse pensar divergente
mas sobretudo
larga a ópera, que
andas muito lírico.

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«trago sempre comigo»

1. 

trago sempre comigo  
umas feridas a arranhar
no bolso do casaco. 
hoje pus o batom vermelho
que deixa as mãos ensanguentadas, 
enquanto isso
a minha gata encosta-se
cada vez mais silenciosa
aos móveis da casa
sabendo que os tumores a comem
por dentro e eu por fora
tão bonita numa segunda-feira
logo de manhã, a fingir
que não vi o sangue dela
na almofada, que o inverno já passou: 
e tudo o que queria
seria poder morrer
ainda mais nova que a ana cristina césar
para que só as fotos belas ficassem
e nenhuma
das minhas feridas
curasse a tempo
de te rever. 

2. 

primeiro: o coração. 
se calhar dois (um
para quando se morre
outro para a espera do
milagre) 
e o teu sorriso icónico
já perto de desaparecer: 
há coisas que só depois  
percebemos que devíamos  
ter roubado –  
e mais tarde o que me  
fica nas mãos, 
demasiado íntimo
para carregar comigo
enquanto faço as rotinas
na loja do costume e
perguntam
como vai? e sei por
dentro que o teu sexo me ficou
no cheiro, 
por isso sorrio e
genuinamente
respondo que
muito bem, cá se vai
andando
e sorrio de novo
no meu corpo o teu rasto
o arrepio de só há pouco  
teres saído: 
volta, estou tão perto. 
(se todas as noites me
visitasses seria tão fácil  
morrer), 
enquanto por dentro
falo
calada
a dizer tanto
e o corpo, o corpo e o sorriso
que não voltei a ver, 
o sexo
a namorada que guardas na gaveta
lá de casa quando apareço: mas primeiro sorrio
primeiro faço as compras da loja
do costume sorrio de novo
os morangos estão fora de época
o teu sexo numa estufa
as laranjas enormes,  
com uma cor de encher
os olhos, mas primeiro, 
o coração.  
primeiro: o coração. 

 

3.  

“sending my condolences to fear” 


caro benjamin, 
como disseste
que não é preciso ter medo
aqui estou eu
podre de coragem
a amarelecer como os juncos
num pântano de asco, 
a lavar o vestido à mão
porque é essa a forma
antiga de recordar os homens
esquecendo-os, olhando assim
muito tempo
para as manchas de sémen, 
olhando tempo suficiente
para que se aprenda a gostar
delas como retratos despretensiosos
do mundo, assim
muito tempo
até que se tornem
possivelmente resultado
de outro tipo de acidentes
como iogurte ou creme nívea, benjamin
estou tão sem medo
que não sei se existo
ainda. 

 

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