Kpinga: A idade do ferro

por aqui os negros da terra não conheciam o ferro. só mais acima uns seus primos fundiam um outro metal, muito mais amarelo. diversas culturas só de bronze os seus gumes tiveram. do ferro e do aço, jamais a glória e o flagelo. faraós e Ulisses reinaram sob o cobre dessa liga – boa mas nunca tão rígida como o ferro dos hititas, capaz de repelir inclusive as bigas egípcias.

 

a forja refaz do minério de ferro a lava em sua gana de fogo para logo refazê-la, quando sólida de novo, ainda mais forte que o marfim e o osso. ferro: substância e forma do sabre vitorioso. dele e de outras ferramentas nascidas do forno: o facão que decepa, a pua que espeta, a tesoura que corta e o machado que ao derrubar a relva produz a madeira que o prego penetra. ferro: mais que ouro na guerra.

 

kpinga: na África, um privilégio do clã Avongara. a férrea arma de arremesso do povo Zande. um misto de adaga, foice e lança, um falcão capaz de atingir cinco homens. e até de contornar seus escudos. espécie de bumerangue muito mais cruel e astuto. cavalos e guerreiros sentiram o terror desse voo recurvo, aprendido quiçá com os núbios. jalis e bruxos disseram não ser desse mundo. um pacto de reis baniu das guerras seu uso. Ogum e Xangô selaram o acordo, mantendo-a distante de seu povo.

Enquanto

enquanto
procuramos
dinheiro
e trabalhamos
por comida
              é possível ouvir
              o impassível
              pulsar do útero

e de nós está tão próximo
que um arfar contínuo –
antes tão esquecido –
novamente traz à mente
a ideia sempre renovada
de um gestar.  

e o murmúrio
de uma árvore
que brota do chão
fica guardado no ar
esperando que nós,
criadores de línguas
aqui permaneçamos –
quando não, cheguemos! –
apenas para ouvi-lo. 

é o rumor renovado
que nos ideia a esperança
de sermos cegos
ao menos um dia –
que em vigília, em vida,
a vida em nós haja

*

–  mas assim passamos
enquanto
procuramos
dinheiro
e trabalhamos
por comida: 

um zunido sem estrondo
nos chama do dentro
pedindo inquietar-nos,
e nos põe em movimento
onde antes éramos somente: 

um dia sucede ao outro
e mais um e mais um,
e neste rupestre escrevinhar
de traços na parede
divagamos o lento gastar dos dias,
o nosso romper em vagas
contra as rochas do cais,
                           devagar. 

com a mão de margaridas
arrancamos, pétala a pétala,
a esperança de um vaticínio: 

bem-me-quer, mal-me-quer
débito ou crédito,
açúcar ou adoçante,
câncer, coração ou dormindo? 

e se quiseram de verdade que
realmente fôssemos felizes,
ao final ficaremos com as mãos cheias
dos magros galhos de margaridas:
e ali sim estará a predição:
e aí sim entenderemos.

INVERNO

Por aqui, em dias de inverno,
o frio é tão escasso que até se parece
uma destas mínimas canções de amor
que habitam o vento e desaparecem
quando ainda são transparência.

Após muito, ontem choveu.
Eu me preparava para a cama
e escutei o sussurro de passos
sobre o gramado do jardim.

Talvez, afinal, tenha sido mais
névoa do que garoa – a relva
amanheceu queimada de orvalho
e a tarde é de uma fria umidade
que se condensa no céu macio
de nuvens tão cinzas e baixas.

Os carros, regressando ao estacionamento,
lançam uma luz que atravessa a folhagem
das árvores compradas em lojas de departamento –
até então, pareciam-me palmeiras domesticadas
mas olhe, disse Ana, erguendo
uma pétala branca desfeita entre os seus dedos.

ESTUDOS PARA O FOGO

outra chama, não perceptível, e tão mais devastadora
Carlos Drummond de Andrade 

p/ waltencir oliveira

 

1.

nada à água se consome
tanto só ao fogo
como faminto filho 

que ao envolver macera
em trabalho dessimétrico
o ventre da mãe 

e de turva face parido
ascende em invulgar gesto ambíguo                              

 

2. 

como desejo e morte                                                 
animais de sua fisionomia                                       
seu ágil corpo é                                                             
de violência vestido                                                     

sendo impossível divisar                                          
aquilo que engendra                                                   
do que em si aniquila                                                  

qual terço se reza                                                         
mensagens de pele                                                      
que de sua própria                                                       
ao invocar-se se livra                                                  

 

3.

mas ao corpo do fogo
aceso e abcesso só
seus contrários aderem 

e as iguarias que ingere
no duro intestino são
seus abismos suas falhas 

porque de inconciliáveis feita
é sua sede convulsiva
de findando desfindar 

e é de sede convulsiva
sua atração núbil do fim
seu numinoso querer 

de sede brutal faiscante
que dilata a necessidade
de tal desfecho perseguido 

4. 

ígnea fábrica de espelhos
que gera no engenho de si
sempre em si o seu inverso 

igual que como às estátuas
que de plateias em pressa
carregam todos seus gestos 

igual que como o infinito
que corrói com rachaduras
a didática dos números 

igual também que como à
imagem que a outro fogo
irmão é lançada e a outros 

fogos espelhos contrários
que por mais cruzada vai
sendo de si refratada 

daquela imagem primária
de ruína inacessível
perdendo-se o fio da meada 

que o fogo é como a navalha
de extrema ambiguidade a
conciliar na vida a morte

*

Ernesto von Artixzffski é o pseudónimo de Sergio Maciel. 

A vida e as opiniões do barnabé guilherme gontijo flores, servidor do estado  

O tédio é a pior forma de tristeza.
(rodrigo madeira)

 

1. Begin the beguine

    Não fui criado para o filho certo
nem para o único
e mesmo assim em algo o sou
ainda que isso nada diga
de mim de outro estulto qualquer
eu não me congratulo
pois cada meu fracasso
não fora antes planejado
porém não disse nada inusitado
e em cada passo armado
o risco de cair 
se deu como a delícia
por  descumprir a sina ignorada
    O tédio não foi bom
nem mau nem meu nem médio
e confesso que nunca
pensei pular do prédio
para espetáculo da turba
que ajuntada na pressa 
logo estaria estupefatamente
desinteressada
    Eu pensei no passado
aquela velha igreja por exemplo
eu muito mais me a adentro
do que alguma vez 
pisei no seu mistério
e cada templo em que passei
mais parecia a casa
envelhecida dentro de um museu
como aquela matriushka que nunca tive
porque estava em outra parte
falseando outra história
    Eu não sorvi do sangue das vitórias
eu nem mesmo as contei
em nada fui desapontado
e creio não desapontei
na tarefa tão árdua de um abraço
eu recuava ao tempo da família
dos quadros apagados
dos nomes sem memória
e de um brasão talvez
perdido nas gavetas inventadas
de algum antepassado
que hoje sumiu sem deixar traço
e sem abrir no espaço 
uma ferida falsa
à qual eu me apegasse 

Toda história é cansaço

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