A vida e as opiniões do barnabé guilherme gontijo flores, servidor do estado  

O tédio é a pior forma de tristeza.
(rodrigo madeira)

 

1. Begin the beguine

    Não fui criado para o filho certo
nem para o único
e mesmo assim em algo o sou
ainda que isso nada diga
de mim de outro estulto qualquer
eu não me congratulo
pois cada meu fracasso
não fora antes planejado
porém não disse nada inusitado
e em cada passo armado
o risco de cair
se deu como a delícia
por  descumprir a sina ignorada
    O tédio não foi bom
nem mau nem meu nem médio
e confesso que nunca
pensei pular do prédio
para espetáculo da turba
que ajuntada na pressa
logo estaria estupefatamente
desinteressada
    Eu pensei no passado
aquela velha igreja por exemplo
eu muito mais me a adentro
do que alguma vez
pisei no seu mistério
e cada templo em que passei
mais parecia a casa
envelhecida dentro de um museu
como aquela matriushka que nunca tive
porque estava em outra parte
falseando outra história
    Eu não sorvi do sangue das vitórias
eu nem mesmo as contei
em nada fui desapontado
e creio não desapontei
na tarefa tão árdua de um abraço
eu recuava ao tempo da família
dos quadros apagados
dos nomes sem memória
e de um brasão talvez
perdido nas gavetas inventadas
de algum antepassado
que hoje sumiu sem deixar traço
e sem abrir no espaço
uma ferida falsa
à qual eu me apegasse 

Toda história é cansaço

 

2.  Quanto à canção de amor

A tua ausência me dói
seria mais uma frase
de merda para qualquer
parte do poema qualquer
que nem penso em escrever
e ainda assim eu escrevo
aqui agora e inútil
justificá-la por frase
feita com sinceridade
do meu estoque mental
falacioso e mais fácil
do que a dor sim verdadeira
de pensar não te pensar
por saber que a tua ausência
todos bem sabem sequer
existe logo não me
nada e por isso eu prefiro
tua lembrança me dói
tanto que canto pra ver
se soa menos banal
cantar um outro estribilho
tua presença me dói
tanto quando entra pelos
sete buracos da minha
cabeça igualzinha a este
sabonete que hoje entrou
por apenas um buraco
tão ínfimo da cabeça
(no desatento do banho)
do meu pau e assim presente
quanto inútil é que se fez
dentro de mim como eu mesmo
que só resta rejeitá-lo
e falsamente voltar
a mijá-lo talvez por
gozar talvez dessa dor
que por sair é que dói
nesta cena tão dolor
osamente repetida 

 

3.  

Disseram que ontem mesmo
ela morreu
matou-se me disseram
um pássaro sem penas
(ó metáfora pungente)
estilhaçado no concreto ao meio dia
e embasbacada
ei-la eu diria
a minha cara normalmente de pastel
cumprindo o seu dever de horror cotidiano
enquanto pensa
na discrição atrás dos olhos
(a pupila sequer se move
a sobrancelha não tremula)
e se concentra por lembrar
qual era o nome dela? 

Será que viram
o nome do meu tédio?
a carapuça não serve
ela morreu disseram
pensando seriamente sobre o assunto
eu não lembro seu rosto
então como era jovem
vou lamentando
enquanto hesito
ela era jovem?
era ela bela?
será que loira e sensual
atormentada porque bela
e mal reconhecida em seu talento
ofuscada coitada
pelos peitos descomunais
ou pelas ancas
(que palavra impensada
ou só pensada
ninguém ouviu) 

No olho da mente
eu foco em suas ancas
assumo eu não me lembro
do nome eu não me lembro
do rosto eu não me lembro
de nada
mas como não pensar nas ancas
ainda que inventadas?
que triste história
alguém repete
eu bem consinto
não me restou
mais do que ela

 

4. Do fabulário geral 

A cena é de um tapir em transe
por causa de tamanhos tédios
travado no trânsito urbano 

mas que apoiado no volante
te encara com cara cansada
e relata seu suburbano 

affair com uma sarigueia
de família desconhecida
embora em lato sensu bela 

com isso ele consegue apenas
comunicar naquele instante
o tédio que o corrói nas veias 

por causa desse trafficjam
você no entanto nem concebe
o que seria um sariguê 

e que diabos é tapir?
você tenta falar franzido
para então devorá-lo ali 

no centro do engarrafamento
enquanto pensa que não deve
ser crime ambiental comê-lo 

se todos sabem que esse ato
não passa da antropofagia
realizada nas cidades 

o sangue ainda assim te delicia

 

5.

Este meu corpo
tal como tudo quanto é meu
é só pronome
não tanto pelo corpo
mas pelo meu
este meu corpo que designa o homem
que hoje sou
e que é tão meu
quanto o outro corpo de uma foto antiga
que insiste sendo meu
e nem existe
e não se encontra em parte alguma
tão menos meu do que meus livros
que meus sapatos
que meus cabelos
que vão caindo a cada ano
e ainda meus a despedir-se pelo ralo 

É dele quanto falo
e nele falo
como se fosse meu e não eu mesmo
aquele corpo
como se fosse meu o corpo nesta foto
com seu sorriso
(sorriso meu? seria o mesmo)
forçado como todo riso
que aparece nas fotos

seja ele meu ou não 

E nele fica a culpa
de tudo quanto eu erro
maldita mão
não obedece
esta coluna já não presta
língua que não se cala
língua de pedra e pó
penso o que não queria
a minha mente
faz o que bem quiser
a culpa não é minha
é meu estresse
talvez meu tédio
o meu cansaço 

Este corpo que chamo meu
esta mente estes olhos
tijolo por tijolo
eu os queria na palma da mão

 

6.  Finale glorioso 

Só falamos ou quase
de mim você ficou
na sombra como os pais
da égua inominada
do clint eastwood naquele
banguebangue que você
gostava e agora já não lembra
qual era o nome mesmo?
então façamos só você e eu
mais um experimento
para encerrar o expediente
seria assim apenas
pro teu contentamento
de leitor pró-ativo
com nome jubiloso
algo como poética
do reconforto sim?
pois pegue um bom copo portátil
(de alumínio cria um
melhor efeito ao texto)
retire a tampa e monte
até ficar perfeito
encha seu copo até a boca
e meta a boca nele
tome uns 2 ou 3 goles
daquela mesma água
(pouco importa o sabor
eu prefiro pensar
que seja água da talha)
já chegamos ao ponto
desfaça o copo de uma vez
e veja como a água que
se espalha no carpete
(imagine um carpete)
seja agora a melhor
metáfora da tua vida
você sorriu? você
voltou a pensar se
cortaria os teus pulsos?
você não acha mesmo que a tua
vida não serve de metáfora?