O nome que no peito escrito tinhas

Dançavas com ele. A tua face tombada no ombro dele. Esfregavas-te nele ou ele em ti. Aquela manápula peluda descia-te pelas costas. Outro whisky. Mais um copázio para suportar a visão. Encha até cima. Sem pedras de gelo, volte a encher. Isto não é para meninas. Por falar em meninas, podia chorar. Pregado ao balcão, via-te gingar feliz da vida com outro homem. Aperaltara-me a conselho de uma amiga tua, comprara camisa azul bebé, último berro da moda macho alfa, despachara aquela cárie que me deformava o sorriso e espetara brilhantina na guedelha, para quê?, para te pedir uma oportunidade. Quimeras. Está tão escuro, não vejo, não. Dançavas com outro e eu não dançava com ninguém, eu sem parceira que te fizesse frente, sem parceira nenhuma, condenado até à eternidade a não ter outra parceira, esparramado no balcão, enchendo-me de bebida na esperança de ganhar balanço para te roubar com um soco ao orangotango. Como me esqueceste? Foi ontem que me chamaste porco e mentiroso. Parece que foi ontem. Esqueceste-me tão depressa. Foi ontem que me ligaste dizendo que me desejavas como se nunca me tivesses tido. Que me tinhas ofendido a quente e que o universo nos juntava. Fiz triste figura na discoteca: acendi um cigarro que me abananou, levei um merecido par de tabefes do porteiro por fumar em lugar proibido e ainda me ajoelhei chorando e cuspindo sangue à beira de uma sanita a transbordar de fezes. Não viste nada disto. Dançavas com outro. A noite inteira agarrada a outro. Num táxi com outro pela noite fora. Retesei-me à vossa passagem e entornei uma gargalhada para cima do barrigana sentado a meu lado, um impulso levou-me a fingir que estava feliz e que era indiferente à tua existência. Nem devem ter reparado na minha presença, tão cinzento que ando, que sou. Saíram de braço dado e desinchei, o ar saiu-me todo, fiquei balão vazio, raquítico. Devem ter tomado banho e dormido juntos e trocado juras de amor. Dancei o resto da noite de garrafa colada ao peito, arrotando em honra do teu novo namorado e da minha interminável infelicidade. Escrevo-te uma carta. Que sejas. Que tenhas uma boa vida. Risco. Que encontres aquilo que querias. Risco e rasgo o papel. Desisto da carta, a água está fria, o rio arrefece à noite, constipo-me, ninguém quer saber das minhas constipações. A dona da pensão, deveria ter mais consideração por esta senhora, é a minha única família. Duzentos euros por mês e torradas todas as manhãs. Reverberar. Li num jornal. Bela palavra para incluir numa carta. A lua reverbera uma luz tão linda que só faltas aqui tu para que. Para que nada. Amo-te, não te disse, não te cheguei a dizer que te amava e agora é tarde, tens outro, danças, dormes com outro, partilhas o teu chuveiro com outro. Fazes-lhe aqueles olhos de chinesa? E aquelas covinhas nos cantos da boca, também lhas mostras?

Leve


Ela passa aqui todos os dias ao final da tarde com a mochila às costas. Quando vem feliz, corre desaforida, não olha ninguém, corre, corre e não me vê. Quando vem triste ou cansada ou acompanhada, passa devagar, com uma respiração tranquila, um sorriso simpático e cumprimenta toda a gente com quem se cruza. Não sei se sabe quem sou, não se deve lembrar, era muito nova, muito mais nova. Não se lembra, não se pode lembrar. Não sei ao certo que idade tem.

É muito pequena, muito branca, muito magra e tem o cabelo muito comprido, demasiado comprido, sempre solto, nunca o traz apanhado. Quando passa por mim a correr, o cabelo voa e não me deixa ver a sua cara. Isso irrita- me.

Sento-me no alpendre e espero-a. Pouco depois, oiço-a cantar e vejo-a antes que me veja a mim. Está distraída, vem distraída, não me parece triste, deve estar cansada, deve ser isso. Hoje traz um vestido preto pelos joelhos que deixam perceber uma ferida grande na canela esquerda. 

Quando percebe que a estou a observar, pára e cumprimenta-me envergonhada. Afasta-se, mas chamo-a de volta e digo: 

“Como te chamas?” 
“Cláudia.” 
“Que idade tens, Cláudia?” 
“Onze.” 
“És muito parecida com a minha filha, sabes?” 
“Não a conheço. Como se chama?” 
“Comprei-lhe um vestido para oferecer no seu aniversário.” 
“É bonito?” 
“Eu acho que sim. É azul e branco. Gostas?” 
“Não o vi.” 
“Gostas das cores?” 
“De azul e branco?” 
“Sim.” 
“Gosto muito!” 
“Tenho medo que o vestido não lhe sirva.”  
“Isso seria triste.” 
“Ela é muito parecida contigo.” 
“Já me disse.” 
“Não te importarias de experimentar o vestido?” 
“Como?” 
“Se o vestido te servir, também serve a ela.” 
“Não posso experimentar um vestido que é para ela!” 
“Porquê?” 
“O vestido não é para mim!” 
“É para a minha filha, que é muito parecida contigo.” 
“Ela pode ficar zangada. Eu ficaria zangada se alguém vestisse a minha roupa.” 
“Ela não saberá.” 
“Isso não é certo. Não é certo mentir.” 
“É por uma boa causa, não achas?” 
“Qual causa?” 
“O vestido tem que lhe servir. Imagina como ficaria decepcionada se não 
pudesse usar o vestido.” 
“Oh.” 
“Não me queres ajudar?” 
“Ela mora com quem?” 
“Mora longe.” 

Quando entramos em casa, Cláudia senta-se no sofá. Nervosa, olha a sala e demora-se em cada canto, em cada pormenor. Pousa as mãos sobre as pernas, umas pernas finas, tão bonitas, tão delicadas. Joga o cabelo para trás das costas, puxa as meias brancas com força, tenta esconder a ferida. Ajoelho-me em frente dela, puxo a meia para baixo e pergunto-lhe como se magoou. Conta-me uma história de corrida desenfreada, uma brincadeira parva e uma pancada forte num ferro. Toco com o dedo e pergunto-lhe se dói. Diz-me que sim. Beijo a ferida e prometo-lhe que vai passar, que sarará rapidamente. Ela sorri e pergunta-me se pode usar a casa-de-banho.

Levo-a até lá, depois subo ao sótão, procuro as canetas de feltro, as velhas canetas de feltro. Desço, volto à sala, desvio a sapateira, olho a parede branca e oiço Cláudia:  

“O que está a fazer?” 
“Trata-me por tu, somos amigos.” 
“O que estás a fazer?” 
“Gostas de desenhar?” 
“Gosto muito. Porquê?” 
“O que gostas mais de desenhar?” 
“Animais, gosto muito de animais. Leões e girafas.” 
“Eu gosto de desenhar árvores e casas. Vamos desenhar nesta parede?” 
“Na parede?” 
“Não faz mal. Desenharemos em conjunto; o que me dizes? Tu desenhas os 
animais e eu as árvores.” 
“E uma casa.” 
“Uma casa junto dos animais selvagens?” 
“É a casa do caçador que os vai matar.” 

Começo a desenhar a cabana. Cláudia pega numa caneta cor-de-laranja, coloca-se de joelhos a meu lado e começa a desenhar uma girafa. Distraio-me e fico a olhá-la. Está muito concentrada, desenha tão bem, com muito cuidado para não falhar, com desejo de perfeição, a perfeição dela. Volto à cabana e tento concentrar-me, mas não consigo. 

“Gostas da tua mãe?” 
“Claro que gosto. Ela é linda.” 
“É tão bonita quanto tu?” 
“Muito mais bonita, muito mais.” 
“Devias cortar o cabelo, não gosto dele assim.” 
“Eu gosto e a minha mãe também.” 
“Ela também tem o cabelo comprido?” 
“Sim, mais comprido que o meu.” 

Levanto-me e levanto-a. É tão leve, tão fácil de pegar, de imobilizar, de dominar. Ela abre muito os olhos, está assustada. Pouso-a e aponto para os joelhos que estão muito vermelhos. Pergunto-lhe se não lhe dói e ela diz-me que não. Coloco as palmas de minhas mãos nos seus joelhos e fecho a mão com força até que ouvi-la gritar que estou a magoá-la. Rio-me e peço-lhe desculpa, digo que estou a brincar, que estou só a brincar. Cláudia quer sair, quer ir embora, corre para a porta, mas eu agarro-a pelo braço, tenta morder-me mas não consegue. Trago-a para junto da parede. A meu lado ela é tão pequena, tão frágil, tão vulnerável. Pego numa almofada e coloco à sua frente. 

“Vamos terminar o desenho.” 

Ana

para Ana Garcia 

 
Como podendo estar parados num teatro dirias 
uma coisa, depois outra. 
 
Uma manhã em Lisboa em que Ana 
Tivesse camélias na janela, como antes o fizera Dumas, 
enquanto admitia um choro ou uma hipótese de ser 
Mais do que uma personagem dizendo uma coisa, 
depois outra coisa. 
 
Pequeno-almoço na Confeitaria Nacional, pequena degustação dos jesuítas. 
Abordas uma nota do trágico. Expulsões. 
Lisboa interdita para sempre, isso sim era dramático. 
 
Escondes-te por esta rua donde se 
não veem camélias à janela. Um livro que diga a 
cidade, que a explique como um pai explicando a um filho, que 
não pudera ver, mas sente 
no chão o tremor quando eles passam. 
 
Chegas agora ao Tejo, paras como num teatro. 
o palácio do rei de Portugal cheira a cravinho 
E canela. Mas aqui 
Nada cheira assim, foi acolá que mataram el-rey. 
 
Deixei que crescessem camélias à minha 
Janela não porque lesse um livro, mas porque era 
Um tempo em que Ana amava um 
Homem chamado Lisboa.