jacinta na lavanderia

lavar a estátua do menino
lavar a sexualidade nula e a nula pressão em congregar-se à pedra
assim
como lavam os sonâmbulos
como o ar levanta voo  
nulo  
mas menino nulo
lavar o queixo com o paninho e o sabão
a mornura que não se dissolve
entre os testículos
se molhassem-se os buracos do narizinho
ordenhando fungos
a saudade dos telhados
da vez em que irá nascer o cogumelo serpenteado  
átrio
ventrículo
escápula
é de anjo o menino nulo
é de asas
umas orelhas de deus
inda o sexo se redesenha partindo dum bico de pássaro hiato
imensas palavras douradas são para todo o sempre quase nada
e alguns movimentos de panos atestam
forte flexibilidade entre
ser menino o sexo nulo
entre
existência e a outra coisa que não há de ser
o banho que lavra
uma tristeza ou outra
tua arca de cinzas e o caibro entre os dentinhos imundos
a esponja que passa
o pano
a esponja e o pano quantas vezes tiver de ser de passear
há essa sujeira em formato de ramo atrás da orelha de tudo sujado de anjo
de quem vê onde ouve onde anjo
faz intervalo o vento de ouvir
e o anjo e o anjo e
estará a mordida   
a música
não a trombeta nula
mas o anjo
sua órbita
sua oleosidade em asas
sua obediência como patinho obediente
sua obediência em asas
amanteigadas: quem lava o anjo lava o porco flechado

flechado  
lavar o peixe
banhar o bicho
sujar as mãos da coisa onde vivia a junta das articulações infamadas
outra a tarefa a negar-se pelas sombras das outras
tarefas que são
eu digo
da indústria das folhas-de-flandres
alcançar aos cicios
orações
uma pequena misericórdia rasgada nos recifes que sobram à licença
como eu queria banhar o cavalo
mas o peixe
o peixe aberto
o peixe desabitado e cão
o peixe dado a passarinho moído
de intensões passarinhas
moídas
infamadas
e lavar
banhar
ter
a faca ao lado
a faca outra pousada no vestido
uma dúzia de moscas com perguntas nas molas dianteiras
é ágil cada pergunta e ágil cada resposta
é peixe não é peixe
é banho é olho e é outro olho de peixe
lavar o peixe tanger o bicho
boas escamas dariam boa casquete na cabeça da baianinha que chora o peixe
Bartolomeu ferrado
diz
Bartolomeu ferrado
de quantas linhas se ferra até se foder
passa a carriola com mais dos meus e a menina se sacode
facinho verificar
amontoado de Bartolomeu
harmonia e fedor tudo igual na harmonia
de novo
se fodeu Bartolomeu
queria lavar um cavalo
banhar a crina o rabo a gengiva
mas é que nada me tira da lavoura infamada
nem a baianinha
conhece juntar vontade pra dar de dar certo
queria porque queria banhar o rinoceronte atolado

atolado
banhar o acordeom
arquear e
banhar o monstro de dentro do acordeom
o monstro que olha e que vê e que namora a mentira
banha-o
que respira quente
tão quente o monstro
sem confiança
com algum mérito
que a demência comendo pelos cantos das mãos
em transvariação
o céu e a esponja
é como é 
exatamente como banhar o acordeom
que a ordem é fixa
e quem banha é quem lava
e quem lava é quem mora na fuligem do ato
junto às bolhas
quando inarredáveis
afagos
dos de leve
bolhas
quando dispersas desesperadas
afagos
dos de bruto
fica flexível o arrepio e o fuso entre os sentidos
ai
tange
tudo de vielas na cara de quem lava
tudo o tanto de vielas na cara das mentiras lavadeiras
tudo de prostitutas nas pernas de quem
as luvas já não prestarão
serão como ferro serão como feno serão
o monstro estará vivente e parco
mais sujado que coisa sujada
desabotoando o vestido da mandrágora entre os filetes de gentes

de gentes
nada suaviza o encargo da boneca japonesa
nem a familiaridade com o sabão
banhar em água de saco de vime
de saco de papel e de saco
aponta o farol e lava
no seguimento de escamas não haverá de erros
há a luta e há a luta que flutua antes da boneca
seus bracinhos junto ao dorso
o dorso ao monte
onde o sabão não vai
nada vai
nada suaviza
nada como dizer de rochas cruas
sexo reto e pronto na caixa de vidro
detrás da seda pintada de línguas persuasivas
feiuras no meio e em torno
nada suaviza
assim burlesca
a boneca
assim burlesco o gesto
largar os dedos e sofrer com o cabelo
ter o nome que se diz em boca miúda
porém dura
fastidiosa
lavar os pés da boneca
lavar o branco escarnecido
nada suaviza
banhada e desaguada
a sonolência redonda-quadrada
vermelha-amarela
secreto amado vibrante
na caixa de vidro
de onde nada suaviza a caricatura correnteza

a caricatura correnteza
eu vejo caixas de vidro em aguaceiros
coçam-me os teus pés no molho
paixão

O modo de dizer o tempo

                                                                                                                        

                                                                                                À Capitolina, também pelo livro

 

 

A poesia inscreve(-se) e afirma(-se); é a demarcação cuja capacidade de desdobramento rejeita lógicas de identificação e, por isso, persiste nos intervalos que encerram em si margens de indeterminabilidade. É o “rapto” de que fala Herberto Helder, ou seja, o exercício resistente de captura de intensidades que descodificam: o interrogativo que segrega o que se presume, ou seja, a poesia terá de ser experimentação.

No poema Introdução ao Tempo, de Luiza Neto Jorge, também esse poder evocativo nos aparece com especial incandescência logo no primeiro verso: “Façamos greve de tempo”. Da ordem do apelo/manifesto, e não do ideológico que se confinará, mais cedo ou mais tarde, ao programado, a relação com o temporalizado, neste caso, não se faz necessariamente através da imobilização. E também não se enceta com a representatividade que imita, na medida em que neste poema o tempo nunca se dá a ver enquanto significado.

Através de instâncias concretas – e não lineares – como sejam “pulmões”, “olhos”, “mar”, “papoilas”, entre outras, o poema de Luiza Neto Jorge dissemina esses mesmos elementos em cruzamentos de modo a poderem encontrar-se; contudo, esse encontro evidencia incontáveis tons. Quando lemos “Porque ficou oceânico/ o escasso momento de nós?”, a composição faz-se por antinomia e não tanto graças a qualquer disjunção: ao tentar medir-se o incomensurável, o tempo torna-se compacto e por isso infecundo, daí o empenho em primeira linha no esforço de suspensão através da tal greve de tempo. “Fechemos os olhos dentro”, i.e., não que nos tornemos cegos mas que se estabeleçam condições para a inflexão, para a conexão entre múltiplos modos de existência temporal no mundo. É que não parece tratar-se de um vamos parar o tempo (negação ingénua do mesmo), mas antes daquela abertura iniciada e susceptível de admitir o acentuar do acontecimento: “Quando as papoilas tiverem searas (…) Quando nós formos outrora”. Passado-presente-futuro, não diluídos no unívoco, mas prolongados singularmente na desestabilização de uma relação com a vida, se feita através da estruturação.

Ao tratar-se de uma “Introdução”, cremos que constituiria uma leitura superficial e enganadora encarar este poema enquanto regulamentação de um estar no mundo, consequentemente, calculado. Pelo contrário, o poema circula des-apropriando: “no ar um tempo frustre/a sequência dos sons/perdidos nos degraus”. O inesgotável da escrita da poesia apresenta-se a-sistemático, já  que aí a linguagem desagrega o ruído, precipita a retoma e promove o novo: a linguagem (poética) cria porque se põe em frente à realidade, faz parte integrante dela. Nos últimos versos deparamo-nos com a inconclusividade da poesia, que nem à metáfora pode estar agrilhoada: “Simples é a dor/e nós, nascidos”.

 Corpo sem organismo, este Introdução ao Tempo acrescenta a sensação que propaga e, por isso, contesta o positivismo da significação, sem, todavia, cair na ignorância (ausência de relação) com o que de mais repetidamente interage com o humano, a saber, a experiência e o conhecimento temporais e, em certa medida, temporalizados. É por isso que o poema de Luiza Neto Jorge diz o tempo com a precisão do devir: “quando o sonho for granito.”

 


Introdução ao Tempo

I

Façamos greve de tempo

De pulmões castos não respiremos
As folhas trágicas veias
podem cair
Fechemos os olhos dentro

II

quando o sonho for granito
quando o mar em cinza desvendar
as plumas inúteis das gaivotas
quando a espuma depuser velas
longínquas sobre a areia
e das pontes cair o derradeiro homem

quando as papoilas tiverem searas
as janelas absortas mortalhas de luz
quando nós formos outrora
quando o luto marcar as ancas verdadeiras

III

Porque ficou oceânico
o escasso momento de nós?

Escorríamos pelas mãos
insatisfeitas e límpidas
nascentes
no ar um tempo frustre
a sequência dos sons
perdidos nos degraus

Simples é a dor
e nós, nascidos

As Aventuras do Senhor Lourenço (§14 aventuras amorosas)

(cont.)

Manuela atirou-se-lhe ao pescoço e proferiu em tom de máxima: – Estou perdidamente apaixonada por ti, meu amor.

– És totalmente incapaz disso. – Respondeu Lourenço, numa altivez, quase desdém, que ninguém lhe conhecia. Tanto que Manuela começou a chorar copiosamente.

– Não chores, meu amor, não chores. Digo a verdade, tu estás acima do amor, tu foste feita para ser amada, não para amar. São os outros que têm de rastejar atrás de ti – é isso que faz o amor, põe-nos de rastos –, não tu atrás deles. Tu sabes que eu não te mereço, sou tão vulgar, quando este circo passar vais sentir nojo de mim, tenho a certeza.

– Qual quê, não percebes nada, eu amo-te de verdade!

– É uma encenação, Manuela, encenas o amor como se faz nas telenovelas...

– Estás parvo?!

– ... Talvez, desculpa, mas não acredito que estejas assim tão apaixonada por mim, eu não sou homem de provocar isso nas mulheres. Olha bem para mim e terás a certeza.

– Mas eu amo-te, sinto-o, o que queres que faça, que deixe de te amar porque tu desconfias disso?

– Ok, está bem... abraça-me.

E foi assim, sem tirar nem pôr. Lourenço a elaborar um discurso sobre o amor (quem sabe se influenciado pelos Fragmentos de um Discurso Amoroso de Roland Barthes), Manuela com o desejo incontrolável de se fundir nele, Tristan und Isolde sem Wagner, de se atirar a ele como alguém se atira da janela porque quer esmagar-se no alcatrão.

Para justificar o seu estilo relacional, Lourenço usava uma frase de O Homem Sem Qualidades: “tudo o que pensamos se resume a simpatia ou antipatia.” Assim, sendo ele essencialmente o mesmo, uma cascata de simpatia tinha alterado radicalmente a maneira como era considerado na escola e no mundo. Estava em ponto-de-rebuçado, podia ter comido todas, ou quase todas, as colegas, não fossem elas em geral pouco apetitosas; colocado todos os colegas debaixo da sua perspectiva. Talvez mesmo pervertido as mais fervorosamente crentes na Transcendência, de Deus, do PCP ou de um cacique de sala-de-professores; tinha agora a força de anular, com um gesto apenas, qualquer grande narrativa de verdade e felicidade, concentrava em si todo o campo épico, trata-se da velha identificação hipnótica entre o chefe ou herói e as massas. A sua paixão pela Manuela exigia, aliás, que multiplicasse as aventuras amorosas. “Trai a tua paixão se não queres que ela te desbarate.”, costumava dizer-me. Mas ficou quieto, ou quase, numa noite de jantar comemorativo, organizado pela escola em sua honra, foi levado para o carro pela Directora, mulher que no século passado era bela e que tinha recomeçado a ir ao ginásio.

– Deixa-me chupar-te, por favor, quero engolir a tua seiva. – Disse ela de rompante, como se todas as convenções do namoro tivessem desaparecido sob a vertigem alcoólica. 

[Nunca bebam álcool se quiserem evitar um engate piroso. Troquem a poesia pela lógica, o whisky pela água, uma feijoada por um prato com arroz. Usem terminologia biológica ou psicanalítica, jamais as metáforas histriónicas da literatura ou a vulgaridade anarrativa dos filmes pornográficos. O álcool armadilha os fragmentos do discurso amoroso]

Anabela, era assim que se chamava a Directora, abriu-lhe as calças e pôs o sexo murcho de Lourenço na boca. As banhas laterais empurravam com força o volante e o seio direito pousou na perna do Lourenço, enquanto a sua mão, também direita, pegava na base do pénis e boca e língua tentavam reanimar o pequeno verme.

Cerca de vinte minutos depois deu-se a conclusão espasmódica. Foi o seio direito que conseguiu a proeza, mais do que a felação em si mesma ou as frases elegíacas e porcas, à vez, que Anabela enviou a Lourenço, embaraçado. Ela continuava atormentada com a morte do marido, a quem enganou alegremente. Não pela morte em si, ele morrera há muito para ela. Mas porque quando decidiu passar ao inorgânico o fez na cama, junto a ela, dizendo estas palavras: “Tu és uma puta, Anabela, és uma puta sem remissão, como o meu amor por ti.” Não que o marido se importasse com as escapadelas da mulher, foi pura vingança, quis fazê-la sofrer pelo menos tanto como ele sofrera por amá-la acima das suas forças, tanto que teve de morrer.

Uma marca de chocolate, um placebo médico contra o reumatismo, uma editora especializada em livros de auto-ajuda, um produtor de vinho de mesa ou, entre muitos outros, um estofador industrial quiseram contratar Lourenço. Disse-lhe várias vezes que devia arranjar um agente que tratasse disso, enchendo-o de dinheiro. Mas Lourenço era um mole que gostava do imperativo categórico kantiano, um moralista falido e meio banana. Recusou tudo, continuou nas aulas a mandar calar adolescentes ranhosos a quem nem o seu acto heróico impunha respeito. Manteve uma vidinha insuflada provisoriamente de excentricidades. “Os balões cheios esvaziam-se”, dizia-lhe o colega Joaquim, lobo-do-mar da escola, antigo revolucionário capaz de prometer a junção do Céu com a Terra.

– Continua a soprar, Lourenço, não deixes que isso perda gás, olha o que me aconteceu. – Disse Joaquim.

– Está muito cheio, não consigo pôr mais ar dentro, não tenho pulmões para isso. – Respondeu Lourenço.

– Mas continua, vê se continuas, não queiras ficar como eu, um diabético amargurado a quem os miúdos chamam “velho halitose”.

– Não chamam nada, tu és uma referência. – Disse Lourenço, sentindo pena do Joaquim.

– Claro que chamam, vejo pior mas continuo a ouvir bem. E depois, é mesmo assim, Cronos já não come os filhos, são os filhos que o comem a ele. E tu aproveita, come aí as gajas todas, ou então casa com a Manuela, aos 50 ainda será boa, mesmo boa.

[Joaquim era o mais inteligente dos professores, chegava à verdade, seja lá isso o que for, duas vezes mais rapidamente do que os seus colegas. Mas isso sempre o prejudicou mais do que beneficiou. Numa escola, o ecossistema dos professores e funcionários é pequeno, está envelhecido e fixou-se há pelo menos 10 anos, por isso as paixões e os ódios são mais profundos, têm a enorme importância de não se lhe poder escapar]

Lourenço indeciso, a querer voltar à transparência, uma existência de baixa intensidade, contemplativo por preguiça, cansado da vida. 

(cont.)

Una forma de arder, 10

 

Los perros

  

Nadie me ha tocado    nunca. Nadie nunca ha acariciado con la yema de sus dedos un solo pedacito de mi piel       . No conozco el tacto humano la temperatura de un cuerpo humano el calor que dos cuerpos unidos pueden crear

 

Nadie

jamás me ha abrazado            Excepto los perros

 

En este trozo de tierra dicen que hubo una casa eso oí decir. No se atreven a entrar. Creen que me observan pero soy yo la que les observa. No voy a morir nunca    tengo esta peculiar certeza. No sé cuál es mi nombre. Tampoco sé quiénes fueron mis padres     .   Recuerdo haber estado siempre aquí con los perros. Vivimos en este trozo de tierra a la intemperie             .

Nunca intenté salir y no intentaré salir nunca.

Sé que si lo hiciera todo acabaría.  Ellos   los que me miran con miedo y desprecio   no lo saben no lo pueden saber.

 

Los perros cuidan de mí y yo cuido de ellos nadie puede estar en este trozo de tierra excepto nosotros                                          .

Somos los. guardianes.

Nadie me ha explicado nunca nada . Desconozco cómo aprendí a hablar si es que esto es hablar.   Desconozco cómo aprendí a entender lo que ellos dicen   los que creen observarme   quizá no aprendí nada y todo esto está siendo inventado por mí quienquiera que yo. sea. .                 

Con los perros es diferente .. No hablamos..  Tan sólo hacemos la realidad

 

Son nueve. Los perros siempre han sido los mismos.

Cuando me despierto me lamen las manos y la cara me traen comida en este trozo de tierra no hay comida hay árboles. .Los perros nunca salen de este trozo de tierra me traencomida cuando despierto abren las fauces con mucho cuidado dejan caer la comida     sobre mis manos así :                                       :

 

Los que creen observarme y los perros son diferentes       No tienen cuerpos parecidos      eso lo sé pero         . No sé a qué me parezco yo puedo andar a cuatro patas si quiero y a dos si quiero creo que si quisiera podría hablar con los que me observan pero nunca

quiero

Con los perros no hablo somos los guardianes de este trozo de tierra . No sé qué guardamos no es cierto lo sé no podemos salir de aquí nadie puede entrar los perros

y yo esperamos y hacemos la realidad     sucede

así: ha

 

sucedido muchas veces los perros y yo nos acurrucamos muy juntos sobre la hierba

y poco a poco nuestra carne

se abre mi carne

abierta   

comelacarne                                     de los perros     

y ellos

a                      lengüetazos

y mordiscoscomen               mi carne

sorben

nuestrasangre entonces

eso

empieza a surgir                                 sentimos

exactamente

nuestro corazón es

una inmensamanta

que envuelve el

mundolatimos                     esoentonces      y eso noduele

empieza

a surgir y a

nosentirse

eso                                                 se detiene

   nosesiente

eso

detenido

respira vuelve a

respirar                                                               respira

respira

esolate

de nuevo

y todo vuelve a

producirse     

poco a poco

empezamos

a sentir

                                                                                                   latimos

nuestra carne

de nuevo

se separa

eso

hacemos

                                                     la realidad

todo empieza para

los perros y para mí volvemos a estar sobre este trozo de tierra

 


Lola Nieto. Barcelona, 1985. Doctora en Filología Hispánica por la Universidad de Barcelona. Trabaja como profesora de lengua y literatura en un instituto de secundaria. Coordina, con Antonio F. Rodríguez y Laia López Manrique, la Revista Kokoro (http://www.revistakokoro.com/). Ha publicado alambres (Kriller71-Púlsar, 2014) y Tuscumbia (Harpo libros, 2016).

Após outra conversa em que Louis McGuire e eu falhamos em adivinhar a senha

 

                     Outra manhã
            tardia, destas manhãs
                  que vêm tarde
                      por nossa recusa
            em permitir que o sol
                  dê fim à noite,
            manhãs tardias de noites
                 temporãs, aguadas a vinho
            em nossos milagres minúsculos
    ao transtornar em vinho a água
            em meio à poeira
                de nossos quartos
               com aluguéis atrasados
  e pós de toda ordem
                  sobre os móveis
   quando na penumbra gratuita
       de nossas cortinas puídas
  chegamos, em nossos colóquios
         de bêbados honestos,
                          não a um cerne
       mas a um consenso
      de verdade, uma crença
                  qualquer nossa,
          debates repetitivos
             no roteiro trivial de novela
      em que as reviravoltas
      dos beijos na testa
                  são
     as facas nas costas,
                  e tentamos fixá-la,
     essa verdade a varejo,
         torná-la uma coisa
   que se pega com as mãos,
            como estes isqueiros,
    estes cinzeiros que transbordam
            enquanto esvaziam-se os cálices,
             se ao menos
      encontrássemos a sequência,
       a sequência certa de palavras,
  artigo que siga substantivo e verbo,
              que é o dizível que nos importa,
            uma sentença feito reza
                      que a torne reiterável
      amanhã e depois de amanhã,
             tão reiterável quanto este sol
     que arde fora das cortinas puídas,
                  a sequência de palavras
       que faça deste consenso
                  de verdade temporária
         uma parte da penumbra
             e a ilumine,
                          enquanto engatamos
             a noite à manhã e a manhã à tarde,
                           intuindo
             que deste acordo
                     talvez
        dependa a inauguração
                  de um calendário novo,
      e bracejamos ao falar
                         um ao outro
         “eu sei o que você
                          quer dizer”
               na barafunda de vocábulos
                     que desperdiçamos
           com a boca nessa busca,
                mesmo sabendo não
                haver sem
                    o dizer o saber,
               nessa emergência
            de compreensão qualquer
               da catástrofe
            individual e coletiva
        que parece iminente,
                    e desejamo-nos ao fim
                sorte
                   ao sentirmos o pó
          acalmar-se no sangue
                 e resta tão-só a poeira
       a irritar as narinas, os pulmões,
              quiçá em vez próxima
        quando engatemos vez outra
             a noite à manhã e à tarde
                e notemos essa verdade pairar
         no ar feito a gripe
            que tão frequente nos acomete
       e nos deitemos na cama
                         com os ácaros
            e busquemos de novo
   feito porcos num abatedouro
                   esta pérola
         inteligente e inteligível
    que sempre nos elide,
          no chão lúcido
                 da manhã que não cessa
      de nos querer moer,
            esta senha que se esgueira
     e escapule, código
              que abra a saída
                   dos fundos
              ou detenha
    estas engrenagens, leitões
                  bêbados, honestos,
        guinchando meias-verdades
               sobre o pó