ouvir uma canção pela última vez
/Jovem tocando Cítara, DETALHE de um Vaso de Terracota, CA. 490 a.C. atribuído ao chamado Pintor de Berlim
(Vaso Oriundo da Ática, Hoje No METROPOLITAN MUSeum of art, Nova IorquE)
...ἔνθά τε Μοῦσαι
ἀντόμεναι Θάμυριν τὸν Θρήϊκα παῦσαν ἀοιδῆς
Οἰχαλίηθεν ἰόντα παρ᾽ Εὐρύτου Οἰχαλιῆος:
στεῦτο γὰρ εὐχόμενος νικησέμεν εἴ περ ἂν αὐταὶ
Μοῦσαι ἀείδοιεν κοῦραι Διὸς αἰγιόχοιο:
αἳ δὲ χολωσάμεναι πηρὸν θέσαν, αὐτὰρ ἀοιδὴν
θεσπεσίην ἀφέλοντο καὶ ἐκλέλαθον κιθαριστύν...
...lá onde as Musas
encontraram Tâmiris, o Trácio, e o canto lhe calaram,
vindo da Ecália, de casa de Êurito, o Ecálio —
pois ufanara-se ele de as vencer, se contra ele cantassem
as Musas, filhas de Zeus detentor da égide;
mas elas na sua cólera o estropiaram e lhe tiraram
o canto sortílego, fazendo-o esquecer a arte da lira...
Ilíada 2.595-600 (tradução de Frederico Lourenço)
para o RTM
estou a ouvir esta canção pela última vez
estou a ouvi-la não na ecália
onde as musas castigaram o poeta tâmiris
fazendo-o esquecer-se de como compor
uma canção interminável
como a ilíada ou a odisseia
porque ele se vangloriou
de ser capaz de cantar
melhor do que elas
mas na cave de um pub
em st michael’s street, oxford
esse mesmo
com as três cabras
no escudo à entrada
ao lado da farmácia
e do lado oposto
à loja de burritos
na mesma rua onde muito antes
de se tornarem pais de três filhos
havia um bar por baixo de uma loja de bicicletas
a que o aris vinha com a maria para ele a ouvir
passar a música que ele tinha trazido
com ele de alexandria num velho computador
que quando avariou foi para nós
a morte de todas as canções da cidade velha
da promessa da memória de todos os cafés
onde ainda as poderia ter escutado kavafis
é a última vez que estou
a ouvir esta canção
e não a posso cantar
porque tenho a garganta arranhada
as luzes estão todas apagadas
e mais do que escutá-la
o meu ouvido persegue o pulso
da sua melodia
que está a bater
dentro do meu peito
sei mal a letra
e no escuro outras vozes
seguem a minha
cantam com um sentimento tão belo
que não há palavras para o descrever
sinto esta falta de palavras
com a mesma falta de vergonha
com que o rapsodo íon diz a sócrates
que um poeta
é inútil
não sabe de verdade
nada de medicina (a sua ciência não curaria ninguém)
ou de carpintaria
(seria incapaz de construir uma mesa
ou de reparar uma cadeira)
ao certo sei que me espanta intuir
que estas palavras foram tão amadas
neste planeta
que atravessaram uma longa corrente
até serem a energia que juntou
as pessoas que estão
nesta sala mais do que para a ouvir
para não a deixar morrer
porque o trabalho de uma canção
talvez seja perturbar
o equilíbrio entre a luz e o escuro
que se pode encontrar nela
ou talvez nem seja trabalho nenhum
apenas o nosso cuidado
o nosso prazer desinteressado nela
no que ela faz a um corpo num instante
e assim as pessoas que se juntaram
para a escutar
mais do que dançarem ao seu som
decifram-na com o corpo
expressam-na em movimentos
feitos de tanto amor e loucura
que a canção
se torna em quem
a está a dançar
agora que a estou a escutar pela última vez
sei que preciso de me esquecer dela
como às vezes os amantes têm de se esquecer
de uma paixão proibida
ou os poetas receber o seu castigo
mas claro é escusado dizer
que não sou eu que a apago
é ela que me apaga a mim
e me reescreve para mais tarde
mudando-me com o seu desaparecimento
afinal nunca estive
certa de como é que isto se faz
e agora que hei-de
chegar ao silêncio
que a estou mesmo a ouvir pela última vez
alegra-me entender
que a história que esta canção conta
é a de uma pessoa que compareceu
no sítio errado
arriscando qualquer coisa de importante
por razões indecifráveis
para as quais não há explicação nenhuma
Oxford, 11 e 12 de Março de 2023