Uma Estrada Para Khabarovsk

Quem terá construído aquela estrada para Khabarovsk, nevada,
Longa e deserta, quem a percorre e que sonhos leva, em direcção
A que pesadelos caminha, terá uma fogueira à espera, algum sorriso,
Uma língua familiar que lhe traga o lar a casa, tudo tão longe
E sempre do mesmo tamanho humano, do mesmo comprimento
Serpenteado até ao mar do esquecimento, que triste será o último
A lembrar, levará com ele todas as mortes para a morte absoluta,
Ainda há muito para andar, muito nome para dar, um longo inverno
Para trazer o próximo verão no coração, entretanto, engulo mais um gole
De café quente e regresso à distância real dos olhos próximos
E procuro nas nuvens uma mensagem que dê sentido a todos os caminhos.

 

Khabarovsk (sobre)

11/11/201

Entrevista a um jovem autor de panfletos dissentores

O autor usa óculos de massa e uma camisa vermelha ao xadrez, calças de ganga e All Stars pretos rasgados. Combinámos o nosso encontro à entrada de uma livraria independente. O autor tem na mão a carteira, uma caneta e um bloco de notas. Informa-nos de que o seu romance acaba de ser recusado por mais uma portentosa micro-editora, após ter sido aceite. Diz-nos ainda que não pretende ser identificado, de modo a estar preparado para a remota eventualidade de o seu manuscrito ser aceite outra vez por qualquer outra badalada editora. Confessamos que esperávamos que este estranho caso de um manuscrito aceite primeiro e recusado depois nos permitisse uma digressão até ao mundo dos livros proibidos, muito censurados antes de publicação e recebidos com escândalo. A postura curvada do nosso Flaubert, o trejeito nervoso com que ele puxava os óculos para cima com o indicador quando estes lhe escorregavam pelo nariz, não prometiam nada de menos sensacional. 

Pode contar-nos qual o conteúdo do seu manuscrito que acaba de ser recusado?

Tratava-se de uma odisseia soft porn, ao género de Fifty Shades of Grey. Alguns dos capítulos tinham sido anteriormente publicados em fascículos nas revistas para jovens autores deste país, o que me pareceu um início promissor. A minha ambição era que as pessoas entendessem que esta não era apenas uma obra de soft porn mas uma metáfora para a falta de espaço e massa crítica que abunda no meio literário português e para a estagnação cultural que os anos da crise instauraram entre nós. Uma pedrada no charco. Uma espécie de Christian Grey encontra Anna Karenina, algo de verdadeiramente eclético e radical. Eu não tenho críticos, menina, tenho detratores. Numa das primeiras recensões aos meus contos, um vate popular no subterrâneo que ganha a vida a fazer recensões negativas a autores da craveira de um José Luís Peixoto e a manuais de informática (com um tal sentimento poético que por vezes estes dois tipos de obras se confundem na minha imaginação), acusou-me de ter juntado assuntos muito díspares, tendo criado um Frankenstein de um romance, uma coisa de verdadeira alta voltagem. A que mais pode um jovem romancista aspirar? Paguei-lhe duas cervejas no Bairro Alto e ele prometeu que me voltava a ligar. Mas agora que o romance não vai ser publicado, como é que voltaremos a ter assunto de conversa? Acha que lhe posso ligar e pedir uma recensão sobre a não publicação da minha fábula febril, da minha poética de uma cultura pop para a Lisboa destes tempos?   

Sinceramente, acho melhor não. Tentou propor o seu livro a outras editoras?

A menina está a brincar comigo? (O autor gesticula, faz um gesto em que une os dedos das duas mãos em redor do polegar, como se isto fosse uma pizzaria em Roma ou se estivéssemos numa coffee shop em Nova Jérsia.) Eu lambi selos e paguei portes para versões impressas do meu manuscrito que viajaram até à Relógio d’Água, Assírio, Cotovia, Quetzal, tudo o que foi morada de editora que apanhei nas listas telefónicas, tal como as fui encontrando por ordem alfabética, pimba, sacava logo do manuscrito, selo, portes de envio, cartas de recomendação a acompanhar o romance. Eu não sou tímido. Toda a gente já sabia que o meu romance estava por aí. Esperei editores quinquagenários em estações de comboio desertas com o manuscrito metido na gabardina, mandei mensagens sugestivas (às duas da manhã) a críticos piolhosos que pudessem assinar seis linhas sobre as minhas colaborações em revistas, sentei-me em longas conferências onde dormitei em salas sobreaquecidas só para apertar as mãos a críticos e perguntar-lhes quando é que uma recensão a qualquer dos meus textos ia sair. Um desespero muito trabalhoso. Até que um dia recebo um email a dizer que o meu manuscrito tinha sido aceite. Só era preciso aceitar as alterações do editor. Concordei com tudo. Beijei-lhe as mãos. O cachucho no dedo mindinho. Aturei os comentários ignorantes daquele energúmeno incapaz de alinhar três adjectivos de modo coerente e que nunca poderia entender a pujança da minha prosa. Agora resta deslocar-me com uma catana dentro da mochila. Ainda haveremos de tornar a falar. Só pararei de me fazer acompanhar da catana quando o manuscrito for aceite para publicação. Andará para aí um visionário com quem ainda não me cruzei. Ele só precisará de ler três páginas da minha obra.  

O seu editor evocou alguma razão em particular para optar pela não publicação do livro após ter aceite o manuscrito?

Não. Fui apenas informado de que se tratava de uma decisão superior do editor. Não querendo caluniar ninguém, devo dizer que tenho boas razões para suspeitar que a isto não terá sido alheio uma recensão menos positiva a que vários dos meus panfletos foram alvo por um crítico que mantém boas relações com o meu editor. Perdão, ex-editor. Os meus panfletos visavam o abuso de citações de autores neo-realistas italianos por parte de um crítico que está, como qualquer génio num país com cada vez menos espaço, condenado a exercer o seu espírito de dissidência num dos jornais mais burgueses de Portugal. Sobre a obra deste crítico, tenho apenas a acrescentar que ele gosta de raparigas mais novas. Acho que isto diz tudo sobre o livro que ele escreveu sobre a relação entre o cinema de Bergman e a filosofia de Kiekergaard. No fundo não se devem juntar assuntos tão díspares. E é preciso ter opiniões de tal modo que nunca venhamos a desagradar aos nossos amigos, e sobretudo não aos amigos dos nossos amigos. Reconheço agora que o meu livro, que se lixe, que toda a minha postura intelectual é demasiado ambiciosa para este país.  

O jovem autor afasta-se de cabeça baixa. Pára a meio, retira da mochila um exemplar de um dos volumes da poesia de Jorge de Sena. Tenta ler enquanto anda. Uma chuva miudinha começa a cair. Ele tropeça na calçada e bate com o queixo no chão. O livro rodopia e aterra numa poça. Mais um génio sufocado. Podíamos ajudá-lo a levantar-se, dar-lhe um beijo na testa, ajudá-lo a apanhar os fragmentos dos óculos, mas ele podia pensar em enviar-nos o manuscrito e não convém incomodar os editores que sempre gostaram de nós.

una forma de arder, 6

Santoral I. Santa Águeda.

He visto la Catania subterránea como un gigantesco hormiguero cuyas galerías son vidrieras llenas de imágenes de amputación, martirio y canibalismo. He visto coros de vírgenes con espinas en las trenzas desfilando cada cinco de Febrero hasta las fauces de la madre Etna y arrojando sus pezones dentro, borrachas de péptidos opioides, cantarinas, modificando sus cuerpos sobre pedregales, alcanzando la virtud con técnicas de herrería básica.

Ruega por ellas, hermana mayor, Santa Águeda bendita, desciende chorreante de entre las nubes y ejecuta la danza de las brasas, todos los eriales deben arder, todas las mujeres deben bailar, la expiación glandular y la oración nefasta que adorna los bordados de las santas estolas inspirará templos futuros. El secreto de la fe reside en el dolor soportado y en la originalidad del castigo autoinflingido. Sonríen los rostros de ojos arrancados y agitan sus manos caóticas como recibiendo algún tipo de bautismo esquizofrénico. Sonríen los desdentados y sus infecciones son apariciones en cavernas blandas. Sonríen los leprosos y los endemoniados, las lapidadas y los que profanan altares.

Santa Águeda bendita (ora pro nobis) transforma el cielo sobre el volcán en un decorado de Hermann Warm y repite para nosotras el número de la mastectomía, alimenta nuestra enfermedad y acaricia nuestras llagas con las uñas. Y que caiga después el sulfuro sobre los campos e inunde las cloacas con sus vapores verdes. Y llegue todo ese dolor hasta el Mar Jónico y se extienda como un carcinoma óseo por todo puerto milenario. Y púdrase la civilización. Y reines para siempre en tu trono cenobita. Y quede eternamente sepultada la idea de la abundancia.

Alex Portero


Álex Portero (Madrid, 1978). Compagina actividad literaria y artes escénicas. Ha escrito la novela Música Silenciosa, y los  poemarios: Fantasmas, Irredento y La próxima tormenta. Participó con un relato en la antología El Descrédito: viajes narrativos en torno a Louis-Ferdinad Céline y escribió el epílogo de La revuelta del pueblo cucaracha, novela autobiográfica del activista chicano Oscar Zeta Acosta. Sus artículos han aparecido medios como Kokoro, Ángulo Muerto, o El Estado Mental, en cuya radio co-presenta el programa de humor Pompa y Circunstancia.

Forma parte de la compañía teatral STRIGA, donde realiza funciones de dirección escénica, dramaturgia e interpretación. Mantiene el blog Jugando entre las ruinas (www.alexportero.com).

una forma de arder é uma selecção de poetas e autores espanhóis, ao cuidado de María Mercromina. Alex Portero é o sexto autor da série. 

Αντωνία Ευγενία Βάρνταλος que significa

Αντωνία Ευγενία Βάρνταλος
  que significa

Plumas Ao Invés de Sovaco




não deixe o gato dormir!
fale baixo

eu adorava
pelo teu dedo
tocar o muro
sentir as cifras contar as brotoejas de cimento
os palácios em pingos concretos
o nariz de Andonía Evguenía Várdalos
agora sou nojo e nojo
sou o tipo de nojo encrustado no olhar
das mulheres com o nojo do sexo com legumes

não deixe o gato dormir!

adorava tocar gaita mesmo sem saber
adorava
sem saber os buracos
minha saliva ácida
fazer barulho com tudo isso
pelo teu dedo tocar
sou um nojo agora
sem saber
adorava

não deixe o gato dormir!

adorava
por todas as plumas
um bicho de plumas perto do teu hálito

fale baixo perto de mim sopre saliva nas plumas
na boca da raposa com bicho de plumas dentro
fale baixo perto de mim sopre saliva eu sou um nojo

adorava ver as plumas do nariz de Nia no quadril da garçonete
uh
traga aqui esse quadril com o meu pratinho de pastel quente
o corpo quente desse take é meu só meu só meu

soprar plumas pelo nariz do pastel
pelo teu dedo soprar


era uma cidade pequena gelada e nossa
minha e tua
da Nia
o muro uma ruína você gritava não
tudo é ruína
não deixe o gato dormir!

agora eu sou um nojo
brotoejas de cimento
os palácios em pingos concretos
o trovão
não o queixo por sob
o nariz de
Andonía Evguenía Várdalos
agora não

agora sou nojo e nojo
sou o tipo de nojo encrustado no legume que lambe o quadril do meu take quente

venha aqui
aqui aqui pardalzinho besta

não deixe o gato dormir
não deixe a cidade te arranhar na saída
marinheirinha feia

não deixe nunca esse uniforme que diz plumas e mia mornuras
no muro
uma ruína
pelo teu dedo
uma ruína