"da última vez que mariana olhou para cima..."


da última vez que mariana olhou para cima
havia  o céu
e luz solar
e algumas nuvens pairando iludindo
que o céu movia
quando eram elas que moviam
nas maiores partes do dia mariana olhava para cima e havia teto
e algumas vezes havia Heródoto ou caio mas também eliza
e osíris se anunciando numa cor de pulcra
ou burgandy e o sorriso de mariana virava
outras vezes que olhava para o céu havia apenas a ilusão e a vontade de que o tempo corra
em outras chuva
em algumas nuvens o novo sorriso de juliana reconquistado
e quando mariana coçava o umbigo e gemia
havia um feixe da internacional
ou talvez uma prismática acumulação de agua condensada
espraiando em arco a bandeira da diversidade sexual
muitas vezes olhava para o céu
mas o teto bloqueava
e muitas vezes o teto era o céu
ou uma redoma
teto branco transparente ou parreiras de uva
ou guirlandas sob as quais era bom os lábios
de alguém nos lábios e a mão na nuca
e outras eram pontas de figueiras
que os olhos de mariana viam
com luz azulada desfocada do próprio céu
própria atmosfera em que se é
quando olhava para cima e havia alguém
como Heródoto
sim era sempre Heródoto
que queria
pois havia o suor e o gemido
e a alegria
e a pequena morte

Imagens Roubadas: texto de apresentação do autor

Spontaneous Combustion de Tobe Hooper

Spontaneous Combustion de Tobe Hooper

                                                              THE BIG SLEEP

1.  A propósito do culto dos mortos, fala-se muito da intenção dos vivos de se apropriarem  deles, de os conservarem – e se, por esse mórbido cerimonial, se tratasse sobretudo da vontade dos mortos de encontar um caminho, via, para o seu regresso?

2.   É conhecida a resistência da Igreja em aceitar a incineração dos corpos, uma relutância que parece ter a ver com a necessidade física do corpo para a ressurreição final.
     Contudo, para Tertuliano (Da alma) – para quem, bem platonicamente, Deus “tudo criou pelas imagens” -, a “alma”, pelo “son(h)o” – altura em que ela, descontente com essa impressão da finitude, se liberta, solta do corpo -, poderia ter a experiência de um simulacro da morte” capaz de a preparar para essa “ausência” a vir, futura. “De facto, a alma suporta o sono de tal forma que parece movimentar-se noutro lugar, preparando-se para a sua ausência futura por meio de um fingimento da sua presença”, escreve.
      Deste modo, ao acordar, o indivíduo, reencontrando o seu corpo, conheceria uma “confirmação da resssurreição dos mortos”. 
     Tudo se passaria, afinal, como num son(h)o. Entre diferentes regimes de “imagens”.

3.  Tal como no cinema – David Lynch sugeriu-o em Mulholand Drive – que pode ser encarado como o son(h)o (alucinação) de um morto.
      A necessidade da preservação dos corpos, com efeito, é uma questão que não se coloca no cinema que não deixa atrás de si cadáveres e a tudo permite uma 2ª vinda por meio de corpos de luz (e sombra) que transportam consigo o seu próprio (ir)real.
      Em boa verdade, no cinema, o sonho (que não precisa necessariamente de imagens)  nunca se interrompe e acordamos, já reconfiguados e refeitos, em pleno paraíso. Como diz Mallarmé da literatura (ou poesia), também o cinema nos dá não a “flor” mas a ausente (a melhor, mais perfeita) do “ramo” (bouquet).
      O cinema portanto entendido como uma câmera de incineração.
       De transmutação em imagens – tudo matéria leve e aérea, construções (amálgama) e precipitações de fluxos (ondas de energia) em torno de átomos=esporos de matéria animada (vida) que circulam e pulsam no espaço.
       Forma profana e pagã, no cinema os corpos ardem, autorizando-nos a experiência  concreto-abstracta e abstracto-concreta de uma epifania do mundo.

                                                                                              (Linha de Sombra,

                                                                                           19 de janeiro de 2018)


A história verdadeira por detrás das recentes e violentas colecções de cromos distribuídas gratuitamente nos supermercados

O Supermercado Dois Paus decidiu um dia ter uma reunião alargada. Era uma sexta-feira à noite, e como todos os agentes envolvidos tinham família e filhos, decidiu-se que a reunião deveria manter-se à noite para fomentar os laços entre avós e netos.

O objectivo poderia ser simples, mas cedo se revelou extenso demais para tais mentes ávidas de criatividade: fazer mais dinheiro, isto é, causar uma subida no registo das coisas de dez numa folha oficial sobre o quanto determinada coisa tem, o que, perante a diversidade das coisas, é equivalente a dizer registo “do número de olhos de borboletas no mundo” ou registo “das vezes em que a humanidade foi à casa-de-banho”.

Um senhor, que tinha um fato bonito e era muito jovem e cheio de ideias jovens, muito, muito fora da caixa, teve uma ideia simples:

— Vamos mentir!

Um silêncio incomodado tomou conta da sala; o chefe, de ar não assim tão jovem, embora a camisa justa permitisse adivinhar os músculos definidos e a cintura elegante, e igualmente o nome do ginásio em que passou a manhã, fez-lhe um olhar que só poderia ter uma única interpretação numa reunião de publicitários: “já foi feito”. O jovem foi imediatamente despedido. O pânico instalou-se. Ser despedido era como estar fora de uma coisa em que antes se estava dentro, e isso não é bom, em nenhuma circunstância, embora as coisas por vezes sejam relativas, não todas, o sexo ou o tempo, por exemplo. Ao fim de alguns instantes, mais precisamente três segundos que custaram vinte milhões de coisas de dez (time is money, time is money), alguém arriscou:

— Vamos enganar!

Ninguém parecia acreditar no que estava a ouvir. Uma tal calamidade só acontecera há cerca de uma semana, quando o Silva foi despedido por ter sugerido que se deveria pensar a sério sobre o que é isto da publicidade. O chefe de abdominais definidos e dentes impecáveis nem precisou de dizer nada. O artista levantou-se o mais rapidamente que pôde, e saltou para a morte, lançando-se da janela para o passeio, com a devida consciência de que naquele ramo as ideias já tentadas são ainda piores do que as más ideias. Foi este, aliás, o seu último pensamento.

— Malta, então, novas ideias! Pensem fora da caixa! Pensem fora da caixa!

A sua capacidade de motivação era extraordinária, e logo todos se puseram a pensar em como deviam ser empreendedores e comprar um carro novo na manhã seguinte. Mas naquele dia, aconteceu que uma mulher, que sofria de hemorragias há já algum tempo, depois de ter parido o segundo filho, aproximou-se do chefe, dizendo:

— As crianças! As crianças!

A ideia era tão clara e nova que todos se admiraram. Numa edição conjunta de mentes, um plano simples foi divisado, eficaz e certeiro: uma colecção de cromos! Uma colecção de cromos! Uma colecção de cromos! Todos gritavam o mantra como se de uma epifania se tratasse, saltando todos os estádios necessários ao nirvana. Mas uma colecção de quê?

— De animais!

— De super-heróis!

— De jogadores de futebol!

— De lesmas!

— De batráquios!

— De dinossauros!

— De ardinas!

— De alentejanos!

— De perfumes!

— De coisas!

O nível erótico da sala era tal que logo ali o chefe engravidou uma colaboradora, depois de devidamente assinados os papéis que permitiram juridicamente o sexo entre os intervenientes, uma vez que sempre foi muito difícil fazer amor sozinho, por mais que os homens continuem a tentar.

A ideia que vingou foi a de “coisas”, por ser menos genérica do que “animais” ou “super-heróis”. A todos veio o famoso verso “tão concreta e definida como outra coisa qualquer”, pois a música tinha sido recentemente usada para vender sanitas a pessoas com prisão crónica de ventre, esventrando a palavra “sonho” e substituindo-a por “sanita”.

No dia seguinte a campanha foi lançada e foi um imediato sucesso. O Três Pedras e o Cinco Cinco Cinco naturalmente copiaram a ideia, porque quando é fresca uma ideia copiada não é uma ideia copiada, é como se fosse nova.

***

Passados dois dias, na mesma exacta galáxia e no mesmo exacto planeta, um pai zeloso, que com a devida noção do ridículo amava o seu filho de forma bastante lamechas, ansioso por ir para casa com o seu rico menino, depois de um dia de trabalho, tropeça numa birra. Era uma birra feia, não daquelas em que a criança assegura que a sua vontade é superior aos astros e que os pais superam com amor; não, era uma birra que cheirava ao Supermercado Dois Paus, tinha uma cor definida, a cor do plástico, das coisas, cheirava a colecção de cromos de coisas, que alguém enfiara no bolso do filho com a melhor das intenções mas muito a despropósito, quando nem sequer os pais tinham por hábito ir ao Dois Paus, ou ao Cinco Cinco Cinco, ou ainda ao Três Pedras. Era uma birra focada, precisa, determinada: a birra do Dois Paus.

— Mas porque é que não vamos ao Dois Paus?

— Não costumamos ir.

— Mas porquê? Mas porquê?

— Se continuas a gritar, é que nunca mais vamos...

— Mas então podemos ir?...

— Não agora.

— Mas quando?

— Não sei, não sei...

— Hoje?

— Hoje não.

— Porque não hoje?...

— Porque não costumamos ir.

— Mas porquê? Mas porquê? Eu queria as cartas!...

— Não temos dinheiro para isso.

— Mas as cartas não se pagam, eles dão, eles dão as cartas com as coisas...

Esse é um argumento de peso, os filhos da puta pensaram em tudo, o chefe da camisa bem justa sabe muito; atacar as crianças, atacar as crianças, e ele bem sabia: uns pais dizem que não e, depois de muitos gritos, tiram as cartas que ninguém pediu para dar, arrancam-nas perante as lágrimas consumistas e consumidas dos filhos, dizem disparates incompreensíveis para uma criança: “eles conseguiram, estás a fazer o que eles querem que tu faças, não vás nisso”, e põem os miúdos de castigo por terem levantado a voz para os pais; ah, mas outros, talvez a maior parte, ah, vira à esquerda e em vez de ir ao Leva Dois Paga Três opta pelo Dois Paus. Afinal, tinha de ir às compras, não era? No banco detrás, a criança sorri, consciente do seu poder sobre as coisas, confiante na sua colecção de coisas. Cinicamente, no ginásio, o chefe observa no espelho a definição quase exemplar dos seus músculos. É um homem, de facto, muito bem sucedido.

Com os melhores cumprimentos,

Pedro Braga Falcão

Da admiração

Brigitte Bardot no atelier de Picasso em 1958.png

A admiração habita no mundo da ética, sendo simultaneamente um valor e um modo de nos relacionarmos com outrem (não apenas humanos). Hoje, parece fora de moda, a hipertrofia da autoestima orientou a admiração para dentro, acomodando-a nas diversas modalidades do narcisismo. No máximo, quando se trata de pessoas, o outro é um espelho onde nos podemos admirar.

Pelo contrário, a verdadeira admiração é uma forma de buscar o grande, o belo, o bom..., e desta forma ela é inspiradora, torna-nos melhores. Por isso, Victor Hugo queria tanto admirar como ser admirado. Este discurso, um pouco lamechas, eu sei, pode ser irradiado com uma nota de 1880 de Friedrich Nietzsche: “Para o inferno com todos os imitadores e seguidores e bajuladores e admiradores e devotos!” Mas esta incandescência retórica, de alguém que foi tão pouco admirado em vida, não resiste à força da definição que nos deixou René Descartes nas Paixões da Alma: “A admiração é uma súbita surpresa da alma que a leva a considerar com atenção objectos que lhe parecem raros e extraordinários.” (II, 70; cf. ainda 53 e 71). Objectos ou pessoas, claro. Reconhecimento feliz, pois, do extraordinário, que permite a constatação venturosa da superioridade do outro. Mais, a dinamite nietzschiana cede à sua própria disposição apolínea, no mesmo ano da nota anterior refere que “Se não soubermos ler um livro pelo amor do outro, como será pobre! Devemos senti-lo como o autor.” (Isto levanta interessantes questões hermenêuticas, que não cabem aqui).

Mas é nesta valorização do exterior, do que está fora de nós que as coisas se toldam, em 1968 Gilles Deleuze dizia que “A doença das pessoas de hoje é que elas já não sabem admirar nada”. (O medo da superioridade do outro conduz ou ao desdém ou à inveja). No seu comentário a Nietzsche (Nietzsche et la philosophie, 1962), mostrava como os tempos estavam propícios a odiar tudo o que era amável ou admirável, diminuir tudo através de facécias e interpretações vulgares, ver em todas as coisas uma armadilha, sobrevalorizando a prudência. Contra isto, disse mais tarde que ao trabalhar sobre um autor procurava “nada escrever que o possa afectar de tristeza, ou, se está morto, o faça chorar na sua campa.” (Conversações). E isto, é bom que se diga, não o impediu, como não impedirá ninguém, de ser lúcido ou crítico. A admiração, para quem não é minúsculo, eleva, mesmo quando não alimenta a emulação. Ao contrário da mesquinhez, que amplifica, ou inventa, a penúria e o defeito, a admiração destaca o extraordinário, como escreveu Descartes. E é esse “extraordinário” que encontro na natureza ainda relativamente natural, nos animais e em certos humanos (sobretudo aqueles que conseguiram tornar-se heterogeneamente eles mesmos). Com alguns, para imensa felicidade minha, costumo conviver. Uma felicidade espontânea, por estar junto deles, ouvi-los e vê-los. Uma felicidade diferida porque me inspiram, me permitem pensar e ser melhor, mesmo quando não lhes rendo inteira justiça. No final, espero que a minha admiração lhes dê algum retorno, que não seja eu o único favorecido.

Etnografia do Algarve

Êxtase costuma ser da cor do lazúli
O algarve é uma região
Onde existem povos com o jumento domesticado
E outros que não chegaram a tempo
Da escolaridade obrigatória
Nas ruas vêm-se estrangeiros de muito dinheiro
E outros com não muito dinheiro
Por vezes irlandeses gordos e embriagados
E franceses sem capacidade financeira para o sul
Do seu próprio país

O algarve começa neste século
A sua mais frondosa crise de identidade

Pendentes de um bezerro dourado
Ou de um jogo de sombras estrangeiras
O algarve morre aos poucos
Como um areal infinito e atemporal
Que teima em encerrar-se no vácuo
De uma ampulheta dourada

Êxtase costuma ser uma palavra
  Da cor do lazúli
E o que salva o algarve são
Pescadores escondidos em impermeáveis
Verdes, roxos e violetas   de 1986
Encostados às suas bicicletas
Encostadas às suas vontades
Juntos numa esquina sem nada para dizer
O que salva o algarve são senhoras com os dentes necessários
E um lenço a cobrir-lhes o cabelo
Vendem fruta da horta no mercado
Sem cálice nem corola  
O que salva o algarve
É a ria deserta no inverno
E não o deserto de filas de carros
Como se de um conto do Cortázar se tratasse
Sob um sol ardente
Nas manhãs de verão
O que salva o algarve não são as palmeiras que nunca antes estiveram
À la venice beach, chico
São as alfarrobeiras tristes
E as oliveiras mudas
É o canavial que acompanha os riachos
Da serra-mãe
Talvez a revolução seja isso e eu não a veja
Êxtase é da cor do lazúli