Frank 2

para Penny Smith

não percebo nada
destes policiais de que gostas
afinal
porque é que ela o matou?

porque o amava mãe
porque o amava
mas não era recíproco

que ideia tão parva
porque raio
haveria uma mulher
de fazer isso?

já te disse
que ele
teve quatro filhos?

quem mãe
quem é que teve quatro filhos?

casou-se e teve quatro filhos
há quem lhe dê para isso
se queres saber o que acho
quatro é um exagero
mas pronto
agora nada a fazer
ele já morreu

de quem é que estás a falar mãe?

do Frank
ele casou-se
e morreu
mas antes disso
decidiu ter quatro filhos

mas eu achava
que não sabias
quem o Frank era

e não sei

e ambas se riram
e ficaram um pouco mais
a ver televisão

Nota: O poema “Frank” pode ser encontrado aqui e foi incluído no livro Por favor não dê de comer aos unicórnios

when doves cry - as piores canções sobre lembranças





numa diagonal do corpo

ligando o coração

ao ombro está a fronteira entre

uma baça lembrança do seu rosto e

a certeza de que estava garoando

em algum lugar do mundo


=//=


nada a não ser a força

de um instante acelerado

que atravessa os anos da minha vida

desamarra meus cadarços e me

faz encontrar lembranças no chão


=//=



uma lembrança mal alojada

jogada de qualquer jeito no destino

dolorosa ao sorriso como varicose

nas bochechas


=//=


você caminha por uma

lembrança ruim e seus braços

vão se descolando do corpo que lembra

é de tanta areia o caminho tanta

tanta areia você se aproxima de um 

coqueiro o único no caminho sem os

braços você se balança imitando o coqueiro

e já nem se lembra de como era estar 

agarrado à lembrança

é de tanta areia, querido

tanta tanta areia


=//=


recolhe gravetos

prepara uma arapuca na

memória sem se lembrar:

70% do corpo das lembranças

é água


4 ou 5 poemas

Karate Kid

 

Levei porrada, sem a merecer, fui muitas vezes

O aluno novo, a escola é escola para tudo,

Nunca tive melhor lugar onde aprender crueldade,

Onde melhor se aprendeu a levar, quando a família

Um lugar de conforto, nem em casa se podia estar

Em paz, porque o senhorio uma besta incansável,

A minha paz um poço choco, tive ali o meu inferno,

No ensino obrigatório, ano após ano, novas vítimas,

Também eu fui uma besta quando me tornei demasiado

Familiar num lugar, isto depois de ter levado muito

Nas bentas, só hoje me apercebi da importância

Do Karate Kid, quando garotos engolimos

E nem imaginamos mais tarde de onde vêm certos amores,

Como a certas culturas, mas nunca tive um Mr. Miyagi,

Chovia e arrastavam-me paralelos fora, até as calças

Uma ruína, chovia e queriam lançar-me a uma fossa,

E o máximo que sabia de artes marciais era gritar

Como o Bruce Lee, os joelhos sangravam, mas tudo bem,

A água barrenta diluía o sangue, Okinawa um sonho,

Onde as tempestades tornavam o mundo justo para todos,

Agora bebo uma de Chianti, sangiovese puro e penso

No Daniel Larusso que fui no Minho, uma escola por ano,

Sem um sensei, levar e andar, crescer, mas agora,

Quase chegado aos quarenta, aqueles paralelos,

À chuva, continuam a abrir-me os joelhos.

Bolsos Cheios de Seixos e Merda

 

Também é verdade que fui uma besta, engoli a hóstia

Quando convinha e tinha a alma limpa do Tide,

Batia punhetas atrás da antena da televisão que tinham instalado

Na escola primária, hoje em dia é uma moradia,

Cortaram as mimosas, não há ilusões de ascensão,

A estas horas todos tiveram que baptizar inocentes

Por causa de um pecado que ninguém cometeu,

Muitos foram os outros, tive gosto em tantos,

Aqueles em que entrava, me despedaçava todo,

Depois apanhavam um autocarro, diziam-se apaixonadas,

Eu fingia que os tomates vazios eram tudo,

Não eram, bem me lembro das rãs na primavera,

Da proximidade da ponte romana, aquele granito

Sempre me pareceu quente, mesmo tocando-o

Com dedos ébrios em Dezembro, ou de madrugada,

Antes do Sol ser a promessa de mais um aborrecimento,

Esta vida é uma confusão tamanha, meu amigo,

Ainda cá andamos perdidos, todos, mais aqueles

Que cheios de certezas e bolsos cheios de seixos e merda.

Coito Interrompido

 

A que me sabe agora o desespero daquele amor de adolescente,

Aos dezasseis anos, amaldiçoando o tecto de madeira,

Naquele quarto escuro, que era o mais ou menos quente da casa,

Pelo menos sentia-se o cheiro da lareira, que arrefecia,

Menos a humidade negra nas paredes brancas,

Chorava e erguia os punhos ao mesmo tecto inocente,

Os punhos frios, as lágrimas arrefecendo pela carne imaculada

Abaixo, nas orelhas bem apertados os fones e as músicas

Que se tornaram em mim, um beijo teria custado a vida,

Mas teria custado tanto, como o ódio aos dióspiros,

A vida uma tentativa ridícula em criar sentido num infinito

De variáveis incontroláveis, um cálculo impossível,

A certeza de uma dor maior que o colapso de uma estrela,

Num quarto pequeno, húmido, escuro e triste,

Num planeta abusado por seres pequenos e tristes,

Este desespero de amor adolescente, sabe-me agora

Ao vazio de todas as garrafas, a todas as vaginas

De onde removi o meu orgasmo, segundos antes

Para me verter num prazer de agonia e derrota.

Velas que Consomem Vazios

 

A vela consome-se na garrafa vazia, aos poucos, o copo,

Enfrentando a objectiva, torna-se mais útil para a próxima sede,

A árvore de natal obsoleta como as memórias de outros tempos,

Ridícula como a própria juventude de um velho que se agarra

Ao vazio das memórias e dos sonhos cujos ecos ainda persistem,

Foram muitos os verões, poucos os que valeram a pena,

E agora quê, como criar alguma beleza com um conjunto limitado

De palavras, a flexibilidade de um carrasco num dia de tempestade,

A memória que é o que cada um é, uma garrafa que persiste no copo,

Ainda, como se tudo fosse um nada e é, a chuva acaba, o sol regressa

E tudo parece tão ridículo, não fosse o punho de terra ainda na mão

E a cova aberta que espera, um último gesto que não fecha nada,

E a patética vela persiste, iluminando uma noite escura que ninguém

Quer relembrar, solitária, com garrafas vazias, copos já secos,

Sonhos esquecidos, amores amputados, só os pulmões mantêm

O automatismo que nos mantem vivos, para quê, a garrafa

Onde a vela se consome há muito que está vazia.

O Poeta Pouco Finge

 

Eu não vivo na diáspora, eu sou a diáspora,

Eu apago-me para que não sejam tão difíceis

As vozes dentro do vazio deste apartamento,

Para que os olhos fechados não doam tanto,

Para que os sonhos não me tragam tanta ruína,

Eu não vivo na diáspora, eu sou o frio que cristaliza

As lágrimas e traz a neve aos dias escuros,

Eu sou o medo das geadas longínquas

Que obrigam às vindimas antes das uvas passas,

Eu sou aquele amigo que partiu, mas continua vivo,

Aquele que morreu e ainda respira,

Aquele idiota que ainda se julga poeta,

Anos depois do professor de português se ter reformado.

Entulho

 

Eu queria olhar os teus lábios e não pensar nas tuas palavras ridículas,

Deixar o lago da Sanabria gelar há décadas, continuar inocente

Ao lado dum cavalo qualquer, sentir-me perto de um deus

Que me diminuiu tantos anos, deixar arder tudo o resto,

As bandas desenhadas que me moldaram, não o barro, mas o lodo,

Porque se sou homem, sou feito da lama onde cagaram

As vacas e os burros a caminho dos estábulos, antes da geada imaculada,

Antes do adormecer dos avós ao regressarem da última poda

Aos castanheiros e colapsarem nas mãos sábias e impotentes das netas,

Eu queria olhar os teus lábios cheios de aves exóticas

E chamas que querias que queimassem o teu coração,

Mas não te dediques a voos se o que queres é encontrar entulho para poemas.

 

06/01/2022

 

Turku

José Pedro Moreira, Leituras de 2021

Esta é a lista dos dez livros que mais prazer me deu ler este ano. Não é a lista dos dez livros culturalmente mais significantes ou dos melhores que eu li este ano (o leitor poderá encontrar essas listas noutro lado) – hedonismo é uma boa maneira de uma pessoa se meter em problemas na maioria das situações, leitura é uma das raras actividades em que julgo que esta prática deve ser pelo menos tolerada.

É saudável reconhecer que é praticamente impossível fazer uma lista destas sem cair no ridículo. Tentem escrever um parágrafo a recomendar a leitura do Ana Karenina sem cair em lugares comuns. Eu certamente não consigo e resolverei o problema evitando-o. Estes livros são muito mais inteligentes do que o que quer que tenha a dizer sobre eles, por isso o melhor é não dizer muito. O senhor leitor imagine antes uma vénia silenciosa e veneranda.

 Fiz primeiro uma lista dos vinte livros de que mais gostei de ler este ano. Não foi fácil. Foi mais difícil ainda reduzir a lista a um total de dez. Incluo em baixo os outros dez livros que constavam na lista inicial.

 Incluo também uma lista de alguns livros que saíram em 2021 e que estão no topo da minha pilha de leituras.

 

Os meus dez livros de 2021

 77 Oníricas, John Berryman (trad. de Daniel Jonas)

Concisa, irónica, inventiva, auto-paródica – a poesia de John Berryman é uma das minhas descobertas do ano. E a tradução de Daniel Jonas é soberba: informada, culta, inventiva, uma tradução de poesia por um bom poeta. Cá fica um poema:

 

75

 

Turning it over, considering, like a madman
Henry put forth a book.
No harm resulted from this.
Neither the menstruating        stars (nor man) was moved
at once.
Bare dogs drew closer for a second look

and performed their friendly operations there.
Refreshed, the bark rejoiced.
Seasons went and came.
Leaves fell, but only a few.
Something remarkable about this
unshedding bulky bole-proud blue-green moist

thing made by savage & thoughtful
surviving Henry
began to strike the passers from despair
so that sore on their shoulders old men hoisted
six-foot sons and polished women called
small girls to dream awhile toward the flashing & bursting tree!

 

75

Examinando-o, considerando-o, como um louco
o Henry publicou um livro.
Nenhum mal adveio disso.
Nem as menstruadas   estrelas (nem o homem) se comoveram de súbito.
Cães em pêlo aproximaram-se para ver melhor

e praticarem as suas amigas manobras ali mesmo.
Refrescada, a casca rejubilou.
As estações chegaram e partiram.
As folhas caíram, umas poucas.
Um quê de extraordinário neste
entroncado unido volumoso verdazulado húmido

coiso obra do selvagem & prudente
sobrevivente Henry
começou a espantar os passantes do desespero
tanto que das suas espáduas purulentas os velhos desfraldaram
filhos de metro e oitenta e mulheres polidas chamaram
meninas a um pouco de sonho ante o cintilante & viçoso lenho!

 

 

Anna Karénina, Tolstói

E cá estamos, Anna Karénina. Serei breve. Uma das releituras deste ano. Li-o pela primeira vez quando saiu a tradução de António Pescada (Relógio d’Água), que recomendo. Um dos melhores livros que alguma vez li. E achei-o melhor ainda desta vez. “Li”-o desta vez numa versão audiobook, interpretado por Maggie Gyllenhaal. Ela é excelente. E há uns dias atrás vi o The Lost Daughter (Netflix, 2021), realizado por ela, uma adaptação de um romance de Elena Ferrante. Também muito bom. Mas não tanto quanto o Anna Karénina. E pronto, cá temos o Anna Karénina despachado num parágrafo.

 

A swim in the pond in the rain, George Saunders

Um livro recomendado por um amigo que é professor de Literatura Russa e que sabe o quanto gosto de Dostoiévski, Tólstoi e Tchékhov (Turguéniev não tanto). Este é talvez um dos livros mais difíceis de descrever na lista. O livro inclui um conto de cada um dos mestres russos (Dostoiévski, Tólstoi, Tchékhov e, bem, Turguéniev), cada conto é seguido de um texto ensaístico interpretativo. Aqui é que os problemas começam.

George Saunders é um leitor inteligente e perspicaz que ama estes textos e que os relê há anos, que os conhece de cor, que é capaz de ver coisas que não vemos.

George Saunders é um professor de escrita criativa, que ensina estes textos há anos, que há anos que dialoga com alunos sobre estes textos.

George Saunders é um autor, que há anos que procura soluções práticas para as questões narrativas que enfrenta.

Os ensaios são escritos de todos estes pontos de vista. Mas o leitor atento toma a primazia.

Muitas vezes lemos de maneira apressada. Somos sobranceiros a responder às questões que o texto invoca, por vezes negando a existência da pergunta. George Saunders é o leitor que nos faz voltar atrás e olhar com mais atenção. Que nos interpela com questões como “Que história está a ser contada aqui? Se é esta história que está a ser contada porque é que o escritor fez isto e não aquilo? Não seria muito mais fácil contar esta história de outra maneira? Ou talvez não seja essa a história que esteja a ser contada?”

É sobretudo um exercício de amor partilhado. Do prazer da descoberta de grandes textos e da exegese literária enquanto actividade social. Perdão se isto faz com que o livro pareça um bocado para o académico. É-o apenas no melhor dos sentidos: recordou-me de um seminário de Teoria de Literatura que assisti há mais de uma década atrás. Não interessa o tema, era no fundo um pretexto para um pequeno grupo de estudantes (não éramos mais de meia-dúzia) e a professora lerem grandes textos (Kafka, Goethe, Sófocles, etc.) e depois passar as quatro horas semanais do seminário a falar sobre eles. Esta foi uma das melhores experiências do meu tempo enquanto estudante universitário. Uma aprendizagem alegre, que prosseguia em debates entre cigarros na pausa para café, que fazia a imaginação pulsar rápido, que nos faz pensar em coisas que sempre estiveram presentes mas que não estávamos equipados para ver, ou, se víamos, que não éramos capazes de articular. Senti o mesmo ao ler este livro.

Criminal (série de banda desenhada), Ed Brubaker (argumento), Sean Phillips (ilustração)

O Criminal original (2006-2010) é uma das minhas séries de banda desenhada preferida. Como a descrever? Uma colecção de histórias de submundo do crime que recicla uma série de tropos do género heist. Há o assalto a um banco que corre mal, o carteirista toxicodependente, o rapaz que cresce neste ambiente e que tenta fazer nome, o patriarca violento, etc. Mas a consciência dos códigos do género nunca cai na caricatura, e as histórias que emergem são credíveis e excepcionalmente bem escritas. É consensual que Ed Brubaker se tornou o grande mestre da banda desenhada de crime. A meio do ano consegui comprar todos os números disponíveis da série mais recente (2019-...) com desconto. Aproveitei para reler os volumes originais e outras coisas de Brubaker: Gotham DC (um policial no mundo de Batman), The Fade Out e Fatale. Gotham DC é excelente, os outros dois são bons, mas estão um pouco mais abaixo em termos de qualidade. Criminal é um clássico.

Sabrina (graphic novel), Nick Drnaso

Comprei o Sabrina há um par de anos atrás. Na altura tinha sido o primeiro graphic novel a ser nomeada para o Booker Prize, e foi recebido por um entusiasmo crítico invulgar para um livro de banda desenhada e o autor foi exaltado como um prodígio (tinha 29 anos quando o livro saiu). Li finalmente o livro no início de 2021. Nick Drnaso é um prodígio. Se tivesse de reduzir esta lista a três livros este seria um deles.

Uma jovem está em casa dos pais, a tomar conta do gato. A irmã, Sandra, vem a casa, as duas irmãs conversam, partilham histórias de adolescência, falam sobre passarem férias juntas. Sandra deixa a casa. É a última vez que vê a irmã. Na cena seguinte Calvin, um soldado da Força Aérea, vai esperar o seu amigo Tommy, um jovem introvertido, ao aeroporto. A namorada de Tommy desapareceu há um mês, e Calvin, recentemente divorciado, convida-o para vir para a sua casa. A namorada de Tommy é Sabrina, a irmã de Sandra. Pouco depois descobrimos que Sabrina foi raptada e sofreu um fim violento. E, no entanto, esta não é uma história sobre um crime, mas um estudo sobre como um crime afecta os que são próximos da vítima, como lidam com a culpa de sobreviver à morte de alguém próximo. Torna-se igualmente uma história sobre a experiência de perda no mundo hiper-mediatizado de hoje, quando a notícia da morte se torna viral, e tema de uma série de teorias da conspiração.

Slaughter House-Five (graphic novel), Ryan North e Albert Monteys (a partir do romance de Kurt Vonnegut)

Mais do que “adaptação”, uma reescrita de Slaughter House-Five. Imensamente divertido e trágico. So it goes. Conhecia o trabalho de Ryan North da série da Marvel The Unbeatable Squirrel Girl, que ganhou uma série de prémios há uns anos atrás. Na altura li o primeiro volume e não me disse grande coisa. Mas Slaughter House-Five é tão bom que tenciono dar outra oportunidade a The Unbeatable Squirrel Girl em 2022. 

String Theory , David Foster Wallace

Os ensaios de Foster Wallace sobre ténis. Voltar a jogar ténis foi das melhores coisas que me aconteceu em 2021. Voltei a apaixonar-me pelo jogo, tornei-me membro de um clube local, comecei a jogar pela equipa do clube, e dei por mim a ler bastante sobre ténis. O livro de David Foster Wallace é o melhor livro sobre ténis que já li. É um dos raros casos de um livro sobre ténis que ama o jogo tanto quanto a linguagem, que invoca erudição filosófica e cultura pop para devidamente louvar a minúcia da excelência atlética. O ensaio sobre Federer é lendário (pode ser lido aqui). O meu preferido é o ensaio sobre Michael Joyce, um jogador que nunca entrou no top 50 do circuito ATP, mas que Foster Wallace admira e que acompanhou durante algumas semanas.

O primeiro ensaio do livro é sobre a experiência formativa de Foster Wallace enquanto jogador de ténis. Nas suas palavras, Foster Wallace foi “a near great junior tennis player”. Quando faleceu, os ex-colegas da equipa de liceu juntaram-se e dedicaram os courts onde costumavam treinar em sua memória. Isto nunca falha em me comover.

The Dream of Enlightment: The Rise of Modern Philosophy, Anthony Gottlieb

O segundo volume de uma empresa começada com The Dream of Reason, a criação de uma história da Filosofia Ocidental acessível a um público não especializado. O The Dream of Reason, que cobria o pensamento filosófico desde a Grécia Antiga até ao Renascimento, estava na minha lista dos livros do ano em 2017; The Dream of Enlightment, que começa em Descartes e vai até à Revoliução Francesa, não decepcionou. Resumir as ideias de Descartes, Hobbes, Rousseau, Locke, Espinoza e Hume em narrativas coerentes, elegantes e acessíveis é um feito acessível apenas a uma inteligência excepcionalmente organizada, fazê-lo com sentido de humor é quase um milagre. Aguardo impacientemente a publicação do terceiro volume.

 Tutti Frutti, Marco Mendes

O livro reúne as bandas desenhadas de Marques Mendes publicadas diariamente no Jornal de Notícias, entre os dias 3 de junho e 23 de dezembro de 2018, e ainda as bandas desenhadas rejeitadas. Peças humorísticas, autobiográficas, políticas, de uma enorme beleza.

Wolf Hall, Hillary Mantel

Este livro é fácil de enquadrar: o primeiro livro da trilogia sobre Thomas Cromwell, Wolf Hall segue a carreira de Cromwell durante a queda do seu patrono, o Cardeal Wolsey, e a sua ascensão a figura central na corte de Henrique VIII durante o processo que culminaria com o coroamento de Ana Bolena. Romances históricos que se comprazem com intriga palaciana e detalhe salaz abundam, mas a excelência da prosa de Mantel transcende o que é circunstancial. A maior surpresa do ano. O livro ganhou uma série de prémios e há anos que amigos me andam a recomendá-lo, ainda assim não esperava que fosse tão bom. Nem tão engraçado. Contém alguns dos melhores diálogos que li nos últimos anos. E comecei 2022 a ler o segundo volume da trilogia, Bring up the Bodies.

Os meus outros dez livros de 2021

Livros de 2021 no topo da minha lista de leituras para 2022

(a física da meta)

Os pulmões estão como
sempre dentro do corpo
e de olhos fechados tento
virar para fora o que é de fora
e ser em imagem a espessura exacta
até aos pulmões
não pela via natural, a da
comunicação vital, a que respira
mas por uma imagem infrapossível que
corte as camadas e a amnésia
sem as ferir
meio cheios
indolores
ignorantes e funcionais
com tudo para viver, estes pulmões
ignoram os dedos na testa e
a dor dos nós nos dedos
fazendo-se impressos

não tenho palavras, chegaram ao fim

o manto das alergias cobre-me a cabeça
empurra-me o peso para baixo
com a boca aberta
estou inchada e o nariz entupido
o que entra e sai
segue uma lógica para a qual
estou adormecida
com as leis ao longe
à distância demandam e acenam
e eu encruzilhada
espero que os pólens assentem, que o
acaso se faça, que a
acção me escolha
espero que o tempo passe
sustenho a respiração que ignora
quem passa por quem
eu por ele ou ele
por mim

páro o tempo nos sacos espalhados na sala
dedico-o à voracidade das palavras engolidas
observo a arena contida em que se enlaçam descompassadas a
vocação contemplativa e a
fome desmesurada de concretudes
indago o necessário para morder
e o modo de ser comida
pela realidade
pelo destrinçamento de um nó
por uma filosofia mais física
construo pelo abandono uma
memória e pasmo de
tocar, cheia de minúcias preenchedoras e
abstracções com que romper a
casa contraditória
saio, deixo os líquenes a
crescer nos sofás
o quarto a reflorestar-se sem mim

a casa é o tempo que não me inclui

não saí, supus-me saída e
com surpresa dói-me a nuca contra
o esqueleto pobre do sofá, contra
o braço em madeira encostado ao
canto, o sobrevivente
tolhida estalo para um lado e para o outro o
lembrete articulado de onde estou
sobre o pescoço e depois os pés
o que rodeia os ossos está mole
o que rodeia a mole está passado
e impassível
apodrecimento, fim, cultura, início
um ciclo da vida
acontece nos pratos e cantos 
o ar que medita mundano entra e sai
a força que engendra trágica
depende da vontade
talvez minha
ou de quem lê