K. está sentado à sua secretária e acima da cabeça dele, pregado na parede, repousa um gigantesco mapa, em azul e dourado, da ilha de Creta, com as grandes descobertas arqueológicas de Sir Arthur Evans estrategicamente assinaladas. Por um reflexo involuntário, os olhos correm a focar-se no Palácio de Knossos, na nossa imaginação brilha a ideia dos frescos de Knossos, as tabuinhas de Linear A e Linear B descobertas nos palácios de Creta, onde se encontra registado um dos alfabetos mais antigos do mundo, a loucura de Heinrich Schliemann, todo o esplendor da civilização minoica. A ilha de Creta é o lugar do mito que é também a metáfora arquetípica da inteligência ocidental, Teseu e o Minotauro. Talvez seja ingénuo e demagógico recordar isto neste momento, mas a grande moeda comum da Europa, isto é, a própria ideia de Europa como algo assente nas fundações de um fundo cultural comum, é um produto da incrível aventura intelectual que se prolonga desde a Grécia arcaica, da qual a Grécia da civilização minoica é um testemunho, até ao fim da época helenística e estendendo-se talvez um pouco mais, com a cultura que nos é legada por Bizâncio e pela imposição política do cristianismo sobre a Europa.
As coisas que nos dão genuíno prazer em estar vivos, as coisas por que vale a pena viver, foram quase todas imaginadas ou aperfeiçoadas, trazidas até ao estatuto de artes a cultivar e proteger, pelos Gregos: música, política, filosofia, história, democracia, os géneros literários em que ainda hoje nos expressamos, o teatro, os nossos cânones de beleza, que são um capítulo que não poderia ter sido escrito sem os cânones de beleza escultórica da Grécia da Antiguidade, os conceitos de biblioteca e de escola, a ideia de cosmopolitismo, o próprio conceito de indivíduo. O que quer que ser Europeu possa significar hoje, especialmente hoje, o sentido disso é grego. A dívida que temos para com a Grécia, nunca a iremos pagar completamente.
Na declaração de Alexis Tsipras que antecede as negociações que se prolongaram até segunda-feira de manhã pode ouvir-se: "I am here ready for a honest compromise, we owe that to the peoples of Europe, who want Europe united and not divided. We can reach an agreement tonight, if all parties want it."
Convém também recordar as palavras de Angela Merkel: “Temos em conta a situação da Grécia e como esta se deteriorou ao longo dos últimos meses, mas a moeda mais importante, a moeda da confiança perdeu-se, e também a da responsabilidade. Isto significa que as negociações hoje vão ser duras, e que um acordo não será alcançado a qualquer preço.”
Na quarta-feira passada, e depois de uma hora a discutir o que é que numa série de papiros e objectos de arte recuperados em escavações em Alexandria pode ser útil para o meu próximo projecto, K. tira o cigarro electrónico do bolso da camisa e recusa as bolachinhas que eu lhe ofereço (K. anda a tentar perder peso e deixar de fumar). O meu amigo K. é um grego de Tessalónica e um historiador da época helenística, que acaba de, entre mil outras coisas, escrever um livro sobre Kavafis e Alexandria. K. estudou primeiro em Sarajevo, durante os anos da guerra, e foi aí que conheceu a mulher dele, uma grega de Atenas, que ao fim de tanto tempo o continua a provocar com a piada que os atenienses guardam para a gente de Tessalónica, que os de Tessalónica são mais lentos. K. é aquele tipo de homem tranquilo, que fala baixo, com uma convicção na fronteira da autoridade, que vem dos anos que passou a dar aulas. E é uma das pessoas mais generosas que conheci em Oxford. Sempre overworked, K. arranja sempre tempo para discutir comigo as ligações alexandrinas do meu projecto.
Há quase duas décadas que K. não vive na Grécia, de Sarajevo, K. mudou-se para Leiden, onde fez o doutoramento e M., a mulher dele, voltou à Grécia. Pouco depois ela juntou-se a ele. No fim do doutoramento, K. mudou-se para Alexandria e com os tumultos mais recentes no Egipto, K. acabou por mudar-se para Oxford. De alguma forma, o percurso de K. é uma epítome das vantagens que a União Europeia conferiu aos cidadãos dos estados membros, livre circulação de pessoas, um sistema universitário com um sistema de equivalências comum, que promove a livre circulação de ideias.
Quando perguntei a K. o que é que ele achava que ia suceder à Grécia na fatídica reunião daquele fim-de-semana, ele riu-se e disse-me que não era com ele a fumar um cigarro electrónico que podíamos ter aquela conversa. Fora do edifício, debaixo da chuva miudinha que garante que o verão inglês se mantém eternamente verde, a primeira coisa que K. me diz é que esta é uma união europeia de cobardes, que espera que se dê o Grexit e que teme que o cenário que se há-de seguir a isso não seja muito diferente do que ele viu em Sarajevo por volta de ’95.
Aquilo a que assistimos na noite de domingo para segunda-feira, ansiosamente agarrados aos monitores dos nossos computadores, acordando a intervalos para verificar no site do The Guardian os últimos desenvolvimentos, é bem pior do que o pior cenário que eu tinha antecipado, o Grexit. Mas se o Grexit podia ditar o fim da união monetária dos países da zona euro, sem dúvida havia muito mais margem de esperança para a Grécia do que com um acordo como este, que o FMI implicitamente tinha declarado inviável tanto antes como depois (há semanas, e de novo nos últimos dias, este organismo reconhece que é impossível a Grécia cumprir seja que plano de recuperação for sem um perdão de parte da dívida).
O que eu vejo na aceitação deste acordo por parte do governo de Alexis Tsipras é que a Grécia apanhou uma bala por todos nós, uma bala por uma ideia de Europa que é cancelada pelas condições humilhantes, e que têm sido de outro modo, adequadamente a meu ver, descritas pelo termo "neocolonialistas", impostas por este acordo, que encaixam perfeitamente na descrição feita por K. de uma União Europeia doente, uma união de cobardes, algo, a outro nível, amplamente atestado nas declarações tanto de Pedro Passos Coelho como de António Costa, na busca vergonhosa de um crédito medíocre por um dos momentos mais negros e mais tristes na história da União Europeia. E sobre o que essa ideia de Europa representou até este ponto, pelo menos até aqui, podia citar-se o grande historiador da Grécia Antiga, Tucídides, na oração fúnebre de Péricles aos Atenienses, proferida em honra dos mortos no fim do primeiro ano da guerra do Peloponeso: