trilha em curso

Trilha em curso
,banda sonora de freios,
e finalmente
freios.
Eles nunca voltaram
duas vezes à toa
o senso de ridículo
que é apontar
uma câmera
para si
o senso de ridículo
à deixar meias na boca,
você já adquiriu
todos os sotaques
neutros e soltou
os bois – o que
quer dizer:
mude as figuras
de lado – nos cartões
postais.
contra os casais
mais bonitos desta cidade
sai roncando no raio
de um quilômetro;
não chamamos atenção
ao porto, nunca foi tradição
da nossa gente,
nunca serviu de tarraxa ou trampolim de fotos,
as mais das vezes ausente
teu nome ninguém toca
onde pratico balizas
com as minhas
falhas de nervos, que venho
confundindo mais e mais vezes
com a idade da certeza.
Já cantaram teu nome em outro país
e já deixaram de mencionar meus feitos
como atravessar o rio de trem
e enxaguar a boca
depois de repetir teu nome três vezes por dia.
términos de frases da ursa maior
os términos de impérios
da ursa maior

já não há vídeos
à recorrer &
à formar palavras
bem aventurado Johnny Guitar
que demorou anos
& agora beija
sob a cachoeira.
Hidrança que ela apega
como cada geração se apodera
dos verbos.

Como a palavra poema
em inglês parece mais
com a palavra poma
e como isso tem a ver sim com as muralhas
de inços cercando
saboneteiras
em piquenique.

Você lembrara de imperar
Um indicativo
Quando você
Beijou a rosa da jardineira?

Antes de se prestar ao socorro
, ao consolo, e já nem
estava lá quando a liga
deixou rastros de seus astros
pelos madeirites de toda a cidade;
antes eles aos anúncios
à iluminar a autoestrada;
antes que metessem anúncios
de ecologia no lugar de um angico.
De alguma forma durante
as férias, charlatã,
suas bacias se enchem
de charlatanismo à fuga
no mercado público
já reformado
depois de dizer ontem, le quattro volte,
voltarei em breve
viajo amanhã
se esquecendo de que forma
os cartões postais
se afiam em navalhas
sem precisar de
saliva ou de sangue
embora as salivas sirvam sempre
ao estremecimento futuro e o humor sanguíneo
à fuga de bacias
com o sistema nervoso simpático
, simpático à estremecer,
, trilha sonora de freios,
, e finalmente freios.
 

[Perfil de Stefano Calgaro]

Limpar As Unhas Recém Cortadas

Enquanto limpo as unhas recém cortadas encontro o sangue seco dos dias que se me
Tornaram alheios, vejo quem beba o mijo julgando que ouro nos olhos, nádegas
Beijadas à procura do favor de um cu demasiado umbigo, tenho gente nas unhas,
Não há sabão que cure tanto génio, não há espaço suficiente para os sonhos,
Já pouco cabe na possibilidade, dá-se um pouco de ar aos pulmões por caridade,
O resto é olhar fotografias com outra cor e o mesmo olhar, mas com vida,
O que resta é o que certas músicas enterradas despertam na língua e nos cílios
Que nos envergonham as narinas, dizem que o nariz e as orelhas não param de crescer,
Digo que é o que nos afasta de nós mesmos, como a mandíbula alargando o ângulo,
As manhãs frias no recreio ao sol, um ângulo quase impossível, o beijo atrás do carro
Do padeiro, um ângulo impossível, a felicidade, impossível, de vez em quando,
Lá se encontra um sorriso limpo de cores quando se limpa uma unha suja de terra,
Mas os dias são o pó que nos torna a carne bíblica, somos a desilusão dos deuses
Que inventamos, demasiado fracos, demasiado pobres, demasiado mortais,
Com a vontade para o futuro roído pela fome que nos é sempre presente,
Enquanto limpo as unhas, olho-me ao espelho, vejo-nos, cansados, batidos por tudo,
Por todos, todos tão bons e premiados, com amigos de mãos cheias e olhos
Bem abertos, quanto existimos, quanto somos, sangue seco nas unhas desiludidas
E cortadas à noite na esperança de uns espigões que façam sangrar um pouco
O tédio dos dias limpos, das palavras demasiadas, desenterrando o cadáver
Da inocência aos bocados, apodrecido como as línguas que me passaram nos tomates
Um dia, o sangue seco das unhas, vai-se pelo ralo abaixo, de nós pouco fica.

14.04.2015

Turku

[Perfil de João Bosco da Silva]

Michael Symmons Roberts, «Mapear o Genoma»

Tradução de Hugo Pinto Santos

O geneticista no lugar do condutor desce o gene, 
código introduzido, digamos, um descapotável, 
e fica-se à espera de curvas, 

verdadeiros testes aos pneus em apertadas 
passagens de montanha, mas em vez disso 
sempre em frente, na auto-estrada, como na pista, 

espiral desensarilhada como uma paisagem,  
um ponto de fuga. Mantém em baixo 
o pé. É um deserto finito. 

Vais depressa de mais para o ler, 
a ordem dos rochedos, os cactos, 
ervas na berma, uma névoa para ti.  

A cada hora passas pela barraca 
que passa por motel aqui:  
aprumados quartos difusos onde a televisão se liga 

para fazer companhia, o dono mede às passadas 
o parque de estacionamento deserto. E depois 
de cada motel esbarra-se numa tempestade de areia 

espessa como o nevoeiro, mas agonia. 
Restam algures despojos 
da noss evolução, genes da forma 

de voar rumo ao sul, pressentir a tormenta, 
caçar pela noite, como couraçar 
a pele numa pelagem rija, em escamas. 

São milhas de um código morto. 
Todo o deserto o tem. 
A tua missão é descobrir 

porque ainda se detém o coração humano 
quando os mergulhadores fendem as águas, 
porque nadam ainda sereias nos nossos sonhos.

Michael Symmons Roberts, Corpus, Jonathan Cape, 2004

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Grécia e Europa: Variações sobre Teseu e o Minotauro

Teseu e o Minotauro, Vaso Grego, ca. séc. VII-V a.C.

Teseu e o Minotauro, Vaso Grego, ca. séc. VII-V a.C.

 

K. está sentado à sua secretária e acima da cabeça dele, pregado na parede, repousa um gigantesco mapa, em azul e dourado, da ilha de Creta, com as grandes descobertas arqueológicas de Sir Arthur Evans estrategicamente assinaladas. Por um reflexo involuntário, os olhos correm a focar-se no Palácio de Knossos, na nossa imaginação brilha a ideia dos frescos de Knossos, as tabuinhas de Linear A e Linear B descobertas nos palácios de Creta, onde se encontra registado um dos alfabetos mais antigos do mundo, a loucura de Heinrich Schliemann, todo o esplendor da civilização minoica. A ilha de Creta é o lugar do mito que é também a metáfora arquetípica da inteligência ocidental, Teseu e o Minotauro. Talvez seja ingénuo e demagógico recordar isto neste momento, mas a grande moeda comum da Europa, isto é, a própria ideia de Europa como algo assente nas fundações de um fundo cultural comum, é um produto da incrível aventura intelectual que se prolonga desde a Grécia arcaica, da qual a Grécia da civilização minoica é um testemunho, até ao fim da época helenística e estendendo-se talvez um pouco mais, com a cultura que nos é legada por Bizâncio e pela imposição política do cristianismo sobre a Europa.

As coisas que nos dão genuíno prazer em estar vivos, as coisas por que vale a pena viver, foram quase todas imaginadas ou aperfeiçoadas, trazidas até ao estatuto de artes a cultivar e proteger, pelos Gregos: música, política, filosofia, história, democracia, os géneros literários em que ainda hoje nos expressamos, o teatro, os nossos cânones de beleza, que são um capítulo que não poderia ter sido escrito sem os cânones de beleza escultórica da Grécia da Antiguidade, os conceitos de biblioteca e de escola, a ideia de cosmopolitismo, o próprio conceito de indivíduo. O que quer que ser Europeu possa significar hoje, especialmente hoje, o sentido disso é grego. A dívida que temos para com a Grécia, nunca a iremos pagar completamente.

            Na declaração de Alexis Tsipras que antecede as negociações que se prolongaram até segunda-feira de manhã pode ouvir-se: "I am here ready for a honest compromise, we owe that to the peoples of Europe, who want Europe united and not divided. We can reach an agreement tonight, if all parties want it."

            Convém também recordar as palavras de Angela Merkel: “Temos em conta a situação da Grécia e como esta se deteriorou ao longo dos últimos meses, mas a moeda mais importante, a moeda da confiança perdeu-se, e também a da responsabilidade. Isto significa que as negociações hoje vão ser duras, e que um acordo não será alcançado a qualquer preço.”

            Na quarta-feira passada, e depois de uma hora a discutir o que é que numa série de papiros e objectos de arte recuperados em escavações em Alexandria pode ser útil para o meu próximo projecto, K. tira o cigarro electrónico do bolso da camisa e recusa as bolachinhas que eu lhe ofereço (K. anda a tentar perder peso e deixar de fumar). O meu amigo K. é um grego de Tessalónica e um historiador da época helenística, que acaba de, entre mil outras coisas, escrever um livro sobre Kavafis e Alexandria. K. estudou primeiro em Sarajevo, durante os anos da guerra, e foi aí que conheceu a mulher dele, uma grega de Atenas, que ao fim de tanto tempo o continua a provocar com a piada que os atenienses guardam para a gente de Tessalónica, que os de Tessalónica são mais lentos. K. é aquele tipo de homem tranquilo, que fala baixo, com uma convicção na fronteira da autoridade, que vem dos anos que passou a dar aulas. E é uma das pessoas mais generosas que conheci em Oxford. Sempre overworked, K. arranja sempre tempo para discutir comigo as ligações alexandrinas do meu projecto.

Há quase duas décadas que K. não vive na Grécia, de Sarajevo, K. mudou-se para Leiden, onde fez o doutoramento e M., a mulher dele, voltou à Grécia. Pouco depois ela juntou-se a ele. No fim do doutoramento, K. mudou-se para Alexandria e com os tumultos mais recentes no Egipto, K. acabou por mudar-se para Oxford. De alguma forma, o percurso de K. é uma epítome das vantagens que a União Europeia conferiu aos cidadãos dos estados membros, livre circulação de pessoas, um sistema universitário com um sistema de equivalências comum, que promove a livre circulação de ideias. 

Quando perguntei a K. o que é que ele achava que ia suceder à Grécia na fatídica reunião daquele fim-de-semana, ele riu-se e disse-me que não era com ele a fumar um cigarro electrónico que podíamos ter aquela conversa. Fora do edifício, debaixo da chuva miudinha que garante que o verão inglês se mantém eternamente verde, a primeira coisa que K. me diz é que esta é uma união europeia de cobardes, que espera que se dê o Grexit e que teme que o cenário que se há-de seguir a isso não seja muito diferente do que ele viu em Sarajevo por volta de ’95.

            Aquilo a que assistimos na noite de domingo para segunda-feira, ansiosamente agarrados aos monitores dos nossos computadores, acordando a intervalos para verificar no site do The Guardian os últimos desenvolvimentos, é bem pior do que o pior cenário que eu tinha antecipado, o Grexit. Mas se o Grexit podia ditar o fim da união monetária dos países da zona euro, sem dúvida havia muito mais margem de esperança para a Grécia do que com um acordo como este, que o FMI implicitamente tinha declarado inviável tanto antes como depois (há semanas, e de novo nos últimos dias, este organismo reconhece que é impossível a Grécia cumprir seja que plano de recuperação for sem um perdão de parte da dívida).

            O que eu vejo na aceitação deste acordo por parte do governo de Alexis Tsipras é que a Grécia apanhou uma bala por todos nós, uma bala por uma ideia de Europa que é cancelada pelas condições humilhantes, e que têm sido de outro modo, adequadamente a meu ver, descritas pelo termo "neocolonialistas", impostas por este acordo, que encaixam perfeitamente na descrição feita por K. de uma União Europeia doente, uma união de cobardes, algo, a outro nível, amplamente atestado nas declarações tanto de Pedro Passos Coelho como de António Costa, na busca vergonhosa de um crédito medíocre por um dos momentos mais negros e mais tristes na história da União Europeia. E sobre o que essa ideia de Europa representou até este ponto, pelo menos até aqui, podia citar-se o grande historiador da Grécia Antiga, Tucídides, na oração fúnebre de Péricles aos Atenienses, proferida em honra dos mortos no fim do primeiro ano da guerra do Peloponeso:

 

It is true that we are called a democracy, for the administration is in the hands of the many and not of the few. But while there exists equal justice to all and alike in their private disputes, the claim of excellence is also recognized; and when a citizen is in any way distinguished, he is preferred to the public service, not as a matter of privilege, but as the reward of merit. Neither is poverty an obstacle, but a man may benefit his country whatever the obscurity of his condition. There is no exclusiveness in our public life, and in our private business we are not suspicious of one another, nor angry with our neighbor if he does what he likes; we do not put on sour looks at him which, though harmless, are not pleasant. While we are thus unconstrained in our private business, a spirit of reverence pervades our public acts; we are prevented from doing wrong by respect for the authorities and for the laws, having a particular regard to those which are ordained for the protection of the injured as well as those unwritten laws which bring upon the transgressor of them the reprobation of the general sentiment.

(tradução do grego de Richard Hooker, 1996)

            Nada podia ser mais afastado do imaginário político evocado pelo discurso de Péricles, do espírito de solidariedade que é supostamente o testamento político que deu origem a um dos mais prolongados períodos de paz na história da Europa, de que a União Europeia se tornou o símbolo máximo, do que este acordo podre que nada tem que ver com salvar um pequeno estado democrático e pacífico da falência, para quem cinco anos de austeridade resultaram num milhão de desempregados e num endividamento que em breve irá atingir os 200% do PIB. Trata-se de uma humilhação cheia do espírito preventivo dos cobardes, dissuadir qualquer país na Europa a desafiar a indisputável hegemonia política do marco alemão que neste momento se encontra travestido de moeda comum. Se é preciso reconhecer que cada um dos representantes dos países europeus tem de ter em mente a pressão do eleitorado que democraticamente os elegeu, podia aqui repetir-se Tucídides citado acima, que a mais estável das uniões políticas alguma vez forjadas neste continente devia idealmente ter criado cidadãos que são impedidos de praticar o mal por respeito pela “autoridade das leis, com uma reverência especial pelo conjunto de leis estabelecidas para proteger aqueles que estão numa posição enfraquecida, tal como por essas leis que não estão escritas e que trazem sobre o agressor a reprovação do sentimento de todos.”

Repito: não podíamos estar mais longe do ideal democrático de Péricles – nem sequer tendo em conta as limitações que anacronisticamente é preciso reconhecer à democracia ateniense, a escravatura e a limitação exclusiva do direito de voto a cidadãos atenienses do sexo masculino. Numa Europa onde o acordo imposto à Grécia é obtido em parte decisiva pela pressão de um partido que é um dos principais inimigos de uma ideia de Europa, que neste momento tem poder de decisão sobre o rumo político desta, estou a referir-me aos nacionalistas finlandeses, nada podia de facto estar mais longe do ideal democrático que herdámos dos gregos. E como bem notou Varoufakis, internamente isto só beneficiará o Avgi Chrisi, o sinistro partido de extrema direita que como qualquer predador em tempo de crise tem ganhado poder na Grécia. É difícil elencar quantos tiros nos pés da estabilidade interna e externa das supostas democracias europeias este acordo representa (fica esclarecido, se esclarecimento fosse preciso, que se trata não de democracia, mas afinal de um grande regime oligárquico, outro sistema político que herdámos da Grécia Antiga). Podia mencionar-se aqui, a título de exemplo, a postura politicamente servil imediatamente assumida por parte do Podemos em Espanha (a metáfora do bom aluno, de pendor vagamente salazarista no contexto português e particularmente cara ao ideólogo Passos Coelho é bem pertinente - o Podemos já está a dar sinal de estar a aprender, recuando na ideia de pedido de reestruturação da dívida pública). 

            E para aqueles que com tanta falta de imaginação política se entretiveram a escrever sobre o desrespeito de Tsipras pelo resultado do referendo, estou a referir-me a este comentário, a vários níveis inenarravelmente imbecil, de Eduardo Pitta (a que não é alheio o tom de crónica de boudoir, característico do estilo de Pitta, e de que este artigo do jornalista grego Alex Andreou é o contraponto), este argumento só é válido se ignorarmos que Tsipras governa um país onde maioritariamente a opinião pública se sente completamente aterrorizada pela possibilidade de abandonar o Euro, o Grexit nas condições de domingo tornaria a Grécia responsável pela dissolução da zona euro, que neste sentido o referendo serviu sobretudo como uma manobra política pensada para consolidar a posição do governo do Siriza, que com a Grécia na iminência da falência o poder negocial de Tsipras se encontra extremamente enfraquecido, e que o desrespeito pelo resultado desse referendo é afinal sintomático do total desrespeito pela soberania grega por parte desta União Europeia, que se esqueceu do que é que afinal estava em causa nestas negociações, e aqui pode terminar-se não com Tucídides, mas com Yannis Varoufakis, pronunciando-se sobre a decisão que o parlamento grego terá de tomar hoje, e concluindo que Angela Merkel tem razão, que um acordo não devia ter sido atingido a qualquer preço:

Much energy is expended by the media on whether the Terms of Surrender will pass through Greek Parliament, and in particular on whether MPs like myself will toe the line and vote in favour of the relevant legislation. I do not think this is the most interesting of questions. The crucial question is: Does the Greek economy stand any chance of recovery under these terms? 

Fotografia de Zacharias Stellas (Ilha de Paros, 1965-1975). Acervo do Museu Benaki, Atenas.

Fotografia de Zacharias Stellas (Ilha de Paros, 1965-1975). Acervo do Museu Benaki, Atenas.

Não sei lidar com a rejeição

Não sei lidar com a rejeição. Por mais textos que leia sobre escritores que tiveram extrema dificuldade em publicar livros hoje considerados geniais, custa enviar um manuscrito a uma editora e não receber resposta ou levar um não. Sou traumatizado, qualquer palavra me fere de morte. Sou uma flor de estufa. Não ando atrás de editoras, nem de revistas, nem desejo conhecer novas pessoas, e tendo a desiludir-me com tudo, literalmente com tudo. 

A editora é demasiado mainstream para ti, só publica best-sellers. Podemos inventar mil frases para aliviar o peso do fracasso. Os editores da coisa não captaram a essência da tua escrita ou nem te leram o manuscrito. Talvez seja verdade. Admitamos que a escrita é extraordinária, que o editor não captou a alma do documento ou que nem lhe pôs os olhos. A sensação de fracasso não desaparece. Culpar os outros é, para quem cresceu martirizado, uma forma de nos culparmos ainda mais. Quanto mais culpamos terceiros, mais forte se torna a convicção de que estamos a fugir à responsabilidade. Somos responsáveis pela nossa mediocridade. Abundam os textos dedicados a temas como "the art of not giving a fuck". Ler esses textos consola durante o momento em que os lemos, depois regressa a sensação de não valer um tostão furado. A vontade de desistir, de não querer publicar, escrever, comer ou sair da cama, volta à superfície mal nos encontramos disponíveis para ouvir a vozinha que nos acompanha desde tenra idade. A americana Roxane Gay escreveu algures que grande parte da vida de um escritor passa pela rejeição, que ser rejeitado é o quotidiano de quem escreve. Se não convives bem com a rejeição, não és escritor, assevera Gay, se calhar com razão a mais. Quero ser amado. Aceite. Não me atirem um não, será o último não. 

Quando me pergunto se existem editoras ou revistas para as quais possa enviar manuscritos ou artigos, a resposta é invariavelmente negativa. Enviar textos para onde? Misantropo, imagino que a malta se conhece, que é preciso pertencer a círculos, assistir a apresentações de livros, aparecer no bar x ou na sessão de leitura y. Claro que sou ridículo e que o mundo das editoras premeia o talento. Só é recenseado o verdadeiro génio. Não é só por não conhecer ninguém que não abandono o casulo, é também por não acreditar em nada. Fará isto sentido? Um homem morre e a sua biblioteca pessoal vai parar às mãos de um carroceiro que os atira para o lixo ou vende na feira. Um escritor publica um livro e ninguém se interessa. Tolstói escreveu A Guerra e Paz mas na altura da nossa morte não haverá livro que nos salve. Nada faz sentido e quem sabe se a melhor opção não será o silêncio.